sexta-feira, agosto 29, 2008

Dia do Índio - II

Laudo e autonomia de RR dominam debate

Defensores do fim de demarcação contínua dizem que reservas transformam Estado em território da União, que contesta

Procurador-geral defende documento feito pela Funai para embasar homologação e diz que laudo tem respaldo em documentos históricos


DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Enquanto os defensores do fim da demarcação contínua argumentaram ontem, no plenário do STF, que as reservas indígenas estão acabando com a autonomia de Roraima, governo federal e Ministério Público afirmaram que, ainda assim, o Estado ainda é maior do que outros, como Sergipe e Pernambuco, por exemplo.
Os dois lados opostos -formado por arrozeiros, políticos locais e governo estadual, de um lado, e por índios, governo federal e MP, do outro- também divergiram sobre a elaboração do laudo que possibilitou a demarcação da área. O documento que baseou a homologação começou a ser elaborado em 1992, com a participação de antropólogos, sociólogos, economistas e historiadores.
Para o ex-ministro do STF e advogado de Roraima, Francisco Rezek, tal laudo foi elaborado "nos corredores do Executivo". "Relatórios foram assinados por técnicos que nem lá estiveram. O laudo foi elaborado por meio do recorta e cola dentro de gabinetes de Brasília", completou Antônio Guimarães, um dos advogados que defenderam a revisão do decreto do presidente Lula, de 2005.
O procurador-geral da República, Antonio Fernando Souza, cujo parecer foi pela manutenção da demarcação atual, refutou a tese: "O laudo da Funai encontra respaldo em todos os documentos históricos".
O advogado-geral da União, José Antônio Dias Toffoli, por sua vez, disse que Lula só homologou definitivamente a terra quase dois anos e meio depois de assumir a Presidência.
Rezek alegou que "Roraima é um Estado virtual. O governo federal vem tratando Roraima como se fosse seu quintal. Apenas 10% do território é jurisdição do Estado".
Toffoli rebateu que a média per capta de investimento do governo federal em Roraima é quase três vezes maior que a brasileira, citando o portal da Transparência. "Que sejam 10% de território sob a responsabilidade do Estado e 90% com a União. Isso é maior que um Estado como Sergipe, que é um Estado centenário", disse.
A sessão também foi marcada pela emotividade da primeira advogada índia da história a fazer uma defesa oral no STF. Joênia Batista Carvalho Wapichana surpreendeu ao começar sua fala em dialeto indígena. "A terra indígena Raposa/Serra do Sol representa a voz dos povos indígenas, que querem ver realmente aplicado o que já foi garantido há 20 anos", afirmou.
"O que nós cometemos para sermos julgados hoje? De pedaço em pedaço estão tirando nossas terras. E amanhã, como ficará isso?", questionou a índia. (FERNANDA ODILLA E FELIPE SELIGMAN)

Da Folha de São Paulo.


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Dia do Índio

Dia do Índio no Supremo

MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA

ONTEM FOI Dia do Índio no Supremo Tribunal Federal (STF). Nada impede que mais à frente o julgamento da demarcação da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol (TIRSS) acabe num Dia do Arrozeiro, mas tal desfecho parece agora menos provável.
O voto do relator Carlos Ayres Britto veio com ímpeto demolidor. Britto não se limitou a declarar a improcedência da ação popular. Tratorou, um por um, os débeis argumentos alinhavados na ação movida no interesse de meia dúzia de fazendeiros de arroz.
Para o relator, não faz sentido falar em subtração de áreas a uma unidade da Federação, pois os índios já estavam lá antes da criação do Estado de Roraima. Seu direito à terra é originário, reza a Constituição. Os rizicultores só multiplicaram plantações depois de 1992, mas o processo de demarcação começou em 1977. Os índios foram enxotados e escorraçados, no que descreveu como "espremedura topográfica".
Terras indígenas não são territórios, deixa claro a Constituição. Ela é que garante seu usufruto pelos índios brasileiros, que não precisam de uma Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas. Demarcação e homologação são meros atos declaratórios, reconhecimento de um direito preexistente.
O laudo antropológico que atesta a ocupação contínua e pacífica pelas cinco etnias não merece ser qualificado como fraude ou generalidade. Toda a metodologia prescrita na legislação foi seguida. O contraditório e o direito de defesa foram amplamente exercidos.
Índios não atrapalham o desenvolvimento. Não impedem a defesa de fronteiras -ao contrário. E por aí foi...
O ponto alto do relatório, porém, foi o reiterado elogio à generosidade da Constituição de 1988 com os índios. Britto afirmou que ela se encontra na vanguarda mundial por "não antagonizar colonização e indigenato" e pautar-se por um espírito fraternal e solidário, contra o "ignominioso preconceito" antiindígena.
Encarando de frente aqueles que vêem nos índios um sinônimo de atraso, disse que a Constituição nos redime perante nós mesmos de uma insensatez histórica, só comparável à escravidão. Disse mais: que nos índios está o primeiro elo da identidade nacional. E que o "doravante" de Roraima não apaga o seu "desde sempre".
Era tudo que os "civilizados com aspas" não queriam ouvir. Carlos Alberto Menezes Direito pediu vistas. O Dia do Arrozeiro fica adiado, e pode talvez nunca chegar.

Da Folha de São Paulo, de 28 de agosto de 2008.

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Aliado, mas nem tanto



Em destaque nas buscas de Brasil por Google News e Inform.com, o site da "Aviation Week" noticia que a Lockheed Martin "ofereceu uma versão do F-16" e não o F-35 "originalmente especificado no pedido de informação" enviado pelo Brasil. É a concorrência do programa F-X2, que prevê a compra de 36 jatos militares ao custo de US$ 2,2 bi.
A revista diz que a resposta da Lockheed "sugere que os EUA não estão prontos para oferecer seu jato mais moderno para além dos aliados próximos".

Este texto é parte da coluna Toda Mídia, na Folha de São Paulo, de 28 de agosto de 2008. Ou seja, não é do interesse dos Estados Unidos vender seus jatos mais modernos ao Brasil. Ou seja, este blogueiro pensa que talvez seja melhor comprar aviões russos ou franceses.

Também dá para lembrar que recentemente os Estados Unidos vetaram a exportação de aviões Tucano, por parte da Embraer para a Venezuela. O argumento estadunidense é que o avião utiliza componentes fabricados pelos Estados Unidos. E foi só uma demonstração de força; ou alguém imagina que um Tucano possa enfrentar um F-22, ou um F-35, ou mesmo um modelo defasado para os Estados Unidos, como um F-14?

A imagem do F-16 é da Aviation Week.

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Suprema Corte acusa Uribe de armar complô

Corte acusa Uribe de armar complô

Presidente do tribunal diz que há "estranha aliança" entre Bogotá e paramilitares; presidente retruca

Reportagem sobre reuniões de secretários de Uribe com enviados dos "paras", que levavam gravações contra juízes, detonou nova crise

DA REDAÇÃO

O presidente da Colômbia, Álvaro Uribe, e o presidente da Corte Suprema de Justiça, Francisco Ricaurte Gómez, voltaram a trocar duras acusações ontem sobre supostos vínculos do governo e da Justiça com chefes paramilitares, envolvidos com grupos de extermínio e tráfico de drogas.
O ressurgimento da crise entre Uribe e o principal tribunal da Colômbia foi provocado por uma reportagem da influente revista "Semana", que revelou que o secretário jurídico da Presidência, Edmundo del Castrillo, e o de Imprensa, César Velázquez, receberam, na sede de governo, emissários do ex-chefe paramilitar Diego Murillo, o Don Berna.
Os enviados de Don Berna, um dos ex-chefes das AUC (Autodefesas Unidas da Colômbia) -poderosa coalizão paramilitar que em 2005 concordou formalmente em deixar as armas-, entregaram ao governo gravações clandestinas que provariam que os juízes da Corte conspiravam contra Uribe.
O tribunal investiga laços entre cerca de 60 parlamentares, a maioria da base governista, e paramilitares, no chamado escândalo da "parapolítica". O presidente já havia acusado a Justiça de coagir testemunhas a mencioná-lo nos processos.
Ontem, o presidente da Corte Suprema reagiu à reportagem. Disse haver "uma estranha aliança" entre setores do governo e paramilitares e devolveu a Uribe a acusação de "complô": "Aqui há algo próximo, uma convivência com criminosos para fazer montagens contra a Corte".

Honra e extradição
Irritado, Uribe convocou entrevista coletiva na qual justificou os encontros com os emissários de Don Berna -um deles, integrante de uma quadrilha em atividade, foi assassinado no mês passado. "Tínhamos de escutá-los, porque aqui houve tráfico de testemunhas, que é grave." E continuou: "Tentaram enlamear o presidente, e o presidente tem direito de defender sua honra". Acusou ainda os juízes de "embebedarem-se" com testemunhas.
"Vão falar de aliança? Que tal o presidente dizer que o obstáculo da Corte à extradição era uma aliança com paramilitares?", lançou Uribe, que atacou um jornalista da "Semana".
Em maio, o governo colombiano extraditou aos EUA 14 ex-chefes paramilitares, entre eles Don Berna, para cumprir penas por narcotráfico, entre outros crimes. À época, integrantes da Corte e ONGs criticaram a decisão dizendo que ela dificultava a investigação da "parapolítica" e de crimes contra a humanidade.
O argentino Luis Moreno Ocampo, procurador do Tribunal Penal Internacional (TPI), está na Colômbia nesta semana também para avaliar o impacto das extradições. Ontem, Ricaurte disse que recorreria ao TPI contra Uribe.


Com agências internacionais

Texto da Folha de São Paulo, de 26 de agosto de 2008.

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quinta-feira, agosto 28, 2008

Cidadania Global - II

Rico também emigra, até mais do que os pobres

Escolarizados se mudam para mais longe e por mais tempo

DO ENVIADO A SANTANDER

O que complica a discussão sobre migrações é o fato de que se trata de um fenômeno multifacetado. Não são só pobres que emigram, nem a emigração se dá sempre de um país pobre para um país rico.
"O migrante deixou de ser o pobre que vinha a nossos países ganhar a vida", admite Manuel Pombo Bravo, o representante da Espanha na OIM (Organização Internacional para as Migrações). Acrescenta: "Há três ou quatro vezes mais migrantes sul-sul do que sul-norte".
Contas apresentadas por Rafael Rodríguez, o coordenador do seminário "Globalização, Migração Internacional e Desenvolvimento", em Santander, mostram que, dos migrantes que vivem nos países da OCDE (os 30 mais industrializados do mundo), só 0,5% vieram de países de renda baixa.
"Quase a metade dos migrantes asiáticos e latino-americanos têm educação terciária", completa Rodríguez.
Reforça Robert Skeldon, professor da Escola de Estudos Sociais e Culturais da Universidade britânica de Sussex: "México e Filipinas, países comparativamente pobres, têm 10% de suas populações na condição de migrantes, mas o Reino Unido [rico], tem 9,5% de sua população vivendo no exterior".
Skeldon diz que os pobres também emigram, como é evidente, "mas o fazem para mais perto e por menos tempo".

Custos
Jorge Quiroga, ex-presidente da Bolívia, explica o porquê: viajar de Cochabamba à Argentina custa ao boliviano o equivalente a US$ 38. Já viajar para os Estados Unidos, sai por US$ 740. Completa: "À Europa, vem gente que pode vender casa ou carro para custear a viagem".
Manuel Pombo joga no debate um dado que combina com a tese de que não são apenas os "pobrezinhos" que emigram: na Espanha, que passou de emissora de migrantes a importadora, as quatro comunidades maiores são, pela ordem, a romena, a marroquina, a equatoriana e a britânica -portanto, dois países muito pobres, um riquíssimo e um quarto que não é nem uma coisa nem a outra, mas agora faz parte da União Européia, o que facilita muito o trânsito de seus nacionais no continente.
Tanto facilita que há 700 mil romenos vivendo na Espanha e 900 mil na Itália, pelas contas do ex-premiê Petre Roman.
A complexidade do fenômeno fica ainda mais clara quando se fala de Equador: embora tenha expulsado tanta gente que forma a terceira maior comunidade estrangeira na Espanha, abriga também imigrantes: há 300 mil colombianos vivendo no Equador, em geral expulsos pela violência na Colômbia, um dos fatores que levam à fuga.
É também um dos fatores que dificultam ou impedem a volta: "O migrante que volta se torna alvo das quadrilhas, porque ganhou fora dinheiro suficiente para se tornar muito visível" na comparação com os demais membros de sua comunidade de origem, diz Ninna Nyberg Sorensen, chefe do programa de apoio à Democracia e aos Direitos Humanos na América Central, conduzido pelo governo dinamarquês.
Mas, às vezes, a violência é provocada pela própria migração. O ex-presidente Quiroga conta o caso de uma família de Santa Cruz de la Sierra: a mulher, enfermeira, migrou em busca de trabalho, esperando logo levar o resto da família (marido e três filhos). Conseguiu o emprego, mas conseguiu também um novo companheiro. Quando o marido original soube, matou os dois filhos mais jovens e se suicidou, deixando o filho mais velho para contar a tragédia à mãe.
(CLÓVIS ROSSI)

Da Folha de São Paulo.


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Cidadania Global

Fórum propõe cidadania global do migrante

Encontro de especialistas na Espanha defende direitos plenos para as 220 milhões de pessoas que vivem fora de seu país

Experts vêem descompasso entre políticas migratórias e globalização e lamentam que 3% da população sejam cidadãos de segunda classe

CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A SANTANDER

Kim Campbell, ex-premiê do Canadá, recorre ao poeta norte-americano Robert Frost (1874-1963) para falar da situação dos migrantes no mundo: "O que é o lar? É o lugar ao qual, quando a ele vou, eles têm que me deixar entrar".
O mundo decididamente não é um lar para os 220 milhões de pessoas que vivem fora de sua terra, cerca de 3% da população mundial, todo um Brasil e uma Argentina somados.
A essa massa, haveria que se acrescentar 815 milhões de emigrantes potenciais, apontados em estudo recente do Fundo Monetário Internacional, e 200 milhões de migrantes internos, gente que deixou a cidade mas não o país onde nasceu.
E ainda há 11,5 milhões de refugiados.
Os refugiados têm direitos específicos, entre eles o veto à repatriação, o que não acontece com os migrantes voluntários. "O refugiado precisa de proteção, mas há muita gente que não se enquadra na condição de refugiado e também necessita de proteção", constata Jeff Crisp, chefe da Unidade de Avaliação do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur). "Há um buraco na legislação internacional."
Do poema de Frost citado por Campbell e do "buraco" mencionado por Crisp nasceu a principal recomendação para o tratamento dos migrantes feita ao final do seminário "Globalização, Migração Internacional e Desenvolvimento", realizado em Santander (Espanha) na segunda e na terça-feira, sob patrocínio do Clube de Madri, instituição que reúne 64 ex-chefes de governo, do brasileiro Fernando Henrique Cardoso ao cabo-verdiano Antonio Mascarenhas Monteiro, passando pelo chileno Ricardo Lagos, seu atual presidente.
A recomendação equivale a criar a cidadania global, na medida em que prega "conceber a cidadania com base na residência e não na nacionalidade".

Direitos plenos
O brasileiro que vive em Madri, portanto, teria todos os direitos do cidadão espanhol, em vez de ser um "cidadão de segunda classe", como Kim Campbell diz ser hoje o imigrante. Ou um "sobrevivente", como prefere Petre Roman, ex-premiê romeno.
Tão de segunda classe que "não existe uma organização global para a governança das migrações, como existe, por exemplo, a Organização Mundial do Comércio para o comércio", reclama Dolores Gorostiaga Sáiz, vice-presidente do governo da Cantábria, a região de que Santander é a capital.
Reforça Jeff Crisp, do Acnur: "O capital, os bens, as informações e as idéias gozam de livre movimento, mas não é o que acontece com as pessoas. Podemos viver em um mundo em que há esse livre movimento de tudo, menos das pessoas?".
Os governos do mundo rico parecem crer que sim, tanto que estão reforçando os controles sobre a imigração, tanto na Europa como nos EUA. "Há muitos acordos sobre proteção de fronteiras e poucos sobre facilitar a emigração regular", lamenta Manuel Pombo Bravo, representante espanhol na OIM (Organização Internacional para as Migrações).
Pombo lembrou que, embora o complexo ONU inclua a OIM, esta não cria doutrina nem tem um orçamento geral, apenas para projetos específicos.
"O tratamento das migrações é a parte mais atrasada do processo de globalização", constata Rafael Rodríguez, coordenador acadêmico do seminário e diretor da cátedra de Cooperação Internacional e Comunidade Iberoamericana da Universidade da Cantábria.
Jaime Atienza, pesquisador do Departamento de Estudos e Campanhas da respeitada ONG Oxfam, também lamenta o que chama de "obsessão com o controle da imigração", ainda mais que, pelas pesquisas que menciona, "um aumento de 3% no número de imigrantes nos países desenvolvidos geraria US$ 300 bilhões adicionais para a economia, mais que os potenciais ganhos com a Rodada Doha de liberalização comercial".
Se há ganhos, se há um discurso politicamente correto a favor da imigração, onde está o problema? "Numa dupla hipocrisia", responde Jeff Crisp, do Acnur. "Os governos dos países emissores dizem que não querem que eles saiam, mas necessitam que o façam, assim como os países receptores não querem que venham, mas precisam da mão-de-obra deles."
Os números dão toda a razão a Crisp. Na ponta dos países emissores de migrantes, há o fato de que 25% da economia de Honduras, por exemplo, provêm de remessas de hondurenhos que vivem no exterior.
Na ponta dos receptores, "há 12 milhões de irregulares trabalhando nos EUA, o que equivale a 9% da população empregada; se fossem todos expulsos, o PIB despencaria", calcula Guillermo de la Dehesa, presidente do Centro para Pesquisa de Política Econômica, com sede em Londres, e autor de "Comprender la Inmigración", lançado durante o seminário.
Esses números indicam que Crisp está certo também ao prever que o fenômeno migratório vai crescer: "A menos que as disparidades [de renda] sejam enfrentadas, as pessoas vão continuar a fugir dos países mais pobres e menos estáveis".

Texto da Folha de São Paulo, de 24 de agosto de 2008.


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quarta-feira, agosto 27, 2008

Venezuela: A revolução improvisada

Revolução improvisada

A VENEZUELA foi adotada pelos órfãos do anticomunismo como a grande ameaça à estabilidade do continente. Os arroubos de Hugo Chávez, despachando tropas contra a Colômbia ou ameaçando intervir na Bolívia, alimentam a histeria. Mas, quando se deixa sua retórica de lado para examinar a gestão, surge um país mais próximo de um Estado falido do que de uma potência regional.
Em nove anos de Chávez, sobram exemplos de improvisação, aparelhamento e corrupção. Correios, emissão de documentos, hospitais, geração de estatísticas, controle das fronteiras -quase todo serviço público básico peca pela ineficiência extrema, às vezes maquiada pelos petrodólares. O descontrole mais visível talvez seja no campo econômico, onde o hiperestatismo não pára de crescer. Há tempos a Venezuela vem registrando a inflação mais alta das Américas, com um acumulado de 33,7% nos últimos 12 meses.
Como em outros países, o índice é puxado pelos alimentos. Mas, ao importar 80% do que come, a Venezuela é especialmente vulnerável aos preços internacionais e ao desabastecimento.
Um dos produtos que mais têm faltado é o açúcar. Como solução, Chávez ordenou a construção de uma usina e incentivou a cana. O resultado: mergulhada num escândalo de corrupção, a fábrica nunca ficou pronta, e dezenas de milhares de hectares de cultivo foram jogados fora desde o ano passado.
Nem o petróleo vai bem. A PDVSA aumentou sua dívida de US$ 3 bilhões para quase US$ 20 bilhões em dois anos, mas a produção vem caindo, segundo a Opep. E isso em meio a recordes do preço do barril. A administração é tão ruim que o ministro Rodolfo Sanz (Indústrias Básicas) aconselhou há pouco os trabalhadores da siderúrgica recém-nacionalizada Sidor a não imitar a PDVSA.
Outra área crítica é o sistema carcerário. Se, como diz Nelson Mandela, a melhor forma de avaliar um governo é ver como trata os presos, Chávez está reprovado. Somente no ano passado, 498 dos mais de 21 mil presos perderam a vida no país -quase todos com arma de fogo-, uma média de 23,4 mortos por cada mil detidos.
(No Brasil, a média foi de cerca de 0,7 por mil no mesmo período.) É o sistema carcerário mais violento da América Latina, segundo o Observatório Venezuelano de Prisões. O descontrole beira o surrealismo. Recentemente, descobriu-se que um estuprador condenado da Penitenciária Geral da Venezuela abusou sexualmente de cinco mulheres, entre as quais uma psiquiatra, ajudado por funcionários. As recentes nacionalizações só farão inchar um Estado já altamente incapaz. E este é o grande paradoxo venezuelano: quanto mais Chávez concentra poder, mais o país escorrega de suas mãos.

Texto de Fabiano Maisonnave, na Folha de São Paulo, de 24 de agosto de 2008.

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Jose Sarney

SALVADOR DA PÁTRIA
A socialite Maria Christina Mendes Caldeira, ex-mulher do deputado Valdemar Costa Neto, comprou seis exemplares da biografia do diplomata Sérgio Vieira de Mello. Pediu que a autora, a jornalista Samantha Power, autografasse um deles para o senador José Sarney. "Ele é o político que mais manda no país. Quero que ele obrigue as pessoas a lerem o livro sobre um brasileiro que fez política pura, desvinculada do poder", diz. "Sr. José Sarney, com a esperança de que você também possa ajudar a salvar (ou pelo menos mudar) o mundo", escreveu Samantha.

Texto da coluna de Mônica Bérgamo, na Folha de São Paulo, de 21 de agosto de 2008.

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terça-feira, agosto 26, 2008

Carta Aberta: Uma visão dos livros de Élio Gaspari sobre a ditadura militar (1964-1985)

Carta Aberta: Uma visão dos livros de Élio Gaspari sobre a ditadura militar (1964-1985)

Cara professora,

Como a senhora sabe, ou talvez presuma, estou lendo a série de livros do jornalista Élio Gaspari, sobre o nosso recente ciclo militar. Já li A Ditadura Envergonhada(1) e A Ditadura Escancarada(2). No momento estou lendo A Ditadura Derrotada(3). Ainda estou no início.

Élio Gaspari não se utiliza de nenhuma metodologia que academicamente chamássemos de histórica, e, na verdade, ele mesmo se isenta disso. Ainda no início de A Ditadura Envergonhada, ele explica que não pretende nem mesmo escrever uma “história da revolução de 1964”(1-GASPARI, p.20), mas as histórias de Ernesto Geisel, que ele chama de “o sacerdote”, e Golbery do Couto e Silva, que ele chama de “o feiticeiro”. Para isso, ele escreveu dois volumes a título de “preâmbulo”. E estes dois livros, para mim, se tornaram obras de referência obrigatória, pela sua narrativa dos eventos entre 1964 e 1974. Os livros são uma alentada crônica desde o golpe de 1964 (o “Movimento”, ou a “Revolução, ou ainda a “Redentora”) até mais ou menos o final do governo Médici. Com especial destaque para a guerrilha, e a tortura nos quartéis.

Eu ouvi alguém falar que a narração de Gaspari é tão rica que chega a contar as pausas que a tropa enviada para combater o batalhão do general Mourão Filho fez para respirar. Claro que isso é uma brincadeira, e de maneira nenhuma o livro chega a tamanho detalhismo. Assim, volto a afirmar que o conjunto destes livros é fundamental para o estudo do período, podendo se constituir em obras para consulta, qual manuais de história que vez por outra somos obrigados a consultar para saber “o que aconteceu na história”.

Dito isto, posso dizer que a proposta do autor, Gaspari, sobre a tortura é que ela se constituiu numa política oficiosa do regime. Assim, se no texto do Martins Filho (4) , o general Geisel informa que a tortura “pode ter existido”, e esta também parece a posição do coronel Jarbas Passarinho, Gaspari informa sobre a tortura nos primeiros dias da ditadura, ainda no governo Castelo Branco. Ali, talvez a tortura pudesse ser vista como um “espasmo de violência”, num momento de sedimentar o golpe, e extravasar radicalismos, rescaldos da tal “primeira operação limpeza”. Ele cita as reportagens do então jornalista Márcio Moreira Alves sobre a tortura, e a viagem de Geisel pelo Nordeste para verificar as condições dos presos políticos (A Ditadura Envergonhada, pág. 147 e seguintes). Segundo o livro, de fato, as torturas aparentemente pararam, mas o governo não puniu qualquer responsável pelo acontecido. Foi como se sinalizasse algo como “eu sei o que vocês fizeram, agora basta; se isto voltar a acontecer haverá punições”.

A situação muda de figura a partir do governo Costa e Silva, com a radicalização do movimento estudantil, o início da luta armada, e do Ato Institucional nº 5. Um marco é a “aula” sobre tortura ministrada pelo então tenente Aílton Joaquim, para uma platéia de cerca de 100 pessoas, na 1ª Companhia do Batalhão de Polícia do Exército, no Rio de Janeiro, com direito a projeção de slides sobre as “técnicas”, e exposição e uso de presos políticos como cobaias (2 - GASPARI, pág. 359 e seguintes). O livro A Ditadura Envergonhada termina com uma frase triste: “O exército brasileiro tinha aprendido a torturar” (pág. 362).

O livro A Ditadura Escancarada é iniciado com a seguinte frase: “ Escancarada, a ditadura firmou-se. A tortura foi o seu instrumento extremo de coerção e o extermínio, o último recurso da repressão política que o Ato Institucional nº 5 libertou das amarras da legalidade.” (pág.14).

A seguir, na página 21, cita uma parte de uma apostila chamada “Interrogatório”, editada pelo Centro de Informações do Exército, o CIE. “ Será necessário, freqüentemente, recorrer a métodos de interrogatório, que, legalmente, constituem violência”. “[...] Se o prisioneiro tiver de ser apresentado a um tribunal para julgamento, tem de ser tratado de forma a não apresentar evidências de ter sofrido coação em suas confissões.”

Em seguida, na página seguinte, o autor fala na Medalha do Pacificador, oferecida como recompensa a muitos torturadores. Esta condecoração era oferecida pelo Exército como reconhecimento de atos de bravura, ou serviços relevantes prestados, a militares e civis. O capitão Aílton, citado acima, recebeu a condecoração. O delegado Sérgio Paranhos Fleury, torturador reconhecido, e de triste memória, também.

E mais, na mesma página 22: “Quando ela (a 'tigrada', qualificativo dado pelo ex-ministro Delfim Netto, significando o grupo de policiais e militares que enfrentou a luta armada, e para prevalecer sobre ela usou a tortura e o assassinato. O termo é vastamente utilizado por Élio Gaspari em seus livros) mostra que pode fazer algo que o governo nega e condena, não se pode mais saber por onde passa a linha que separa o que lhe é permitido daquilo que lhe é proibido. O porão ganha o privilégio de uma legitimidade excepcional. A mentira oficial é o reverso da covardia da tortura. Através dela os hierarcas sinalizam um medo de assumir a responsabilidade por atos que apóiam e recompensam.”

A partir da página 162, de maneira ilustrativa, ele passa a contar o caso do jovem Chael Charles Schreier. Jovem, estudante de medicina, abandonou o curso, e entrou para a luta armada, militando na VAR-Palmares. Em 1969, após confronto com policiais do DOPS, Chael foi preso com alguns companheiros, e entregues à Polícia do Exército, no Rio de Janeiro. Moído pela tortura, Chael morreu, e foi encaminhado ao Hospital Central do Exército. Os oficiais-médicos do Hospital não aceitaram receber o cadáver como “vivo”, e o diretor do Hospital mandou que fosse feita a autópsia do morto. A certidão de óbito declarou 53 marcas de pancada, hemorragia na cabeça, e sangue em todos os espaços do abdômen. Intestino rompido. Tórax deprimido, com dez costelas quebradas. Em dezembro a revista Veja publicou que “o presidente não admite torturas”. O ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, declarou que se atos de tortura chegassem ao conhecimento do ministério, os responsáveis seriam punidos. Na semana seguinte, a revista publicou o atestado de óbito de Chael. Segundo Gaspari, o então tenente-coronel Luiz Helvécio da Silveira Leite, enviou carta ao ministro da Justiça. O ministro mudou o seu discurso, adaptando-o à linha dura. E ninguém foi punido por um caso de morte sob tortura registrado por oficiais-médicos do Exército.

Num capítulo intitulado “A Gangrena”, a partir da página 359, o autor conta o caso do Capitão Aílton Guimarães Jorge, o mesmo que atualmente é um dos líderes da contravenção no Rio de Janeiro, e patrono de escola de samba. Em 1971 ele era capitão no 2º batalhão da Polícia do Exército, no Rio de Janeiro. Na Polícia do Exército, combatera a subversão, e foi ferido em um tiroteio, o que lhe valeu a Medalha do Pacificador. Contudo, resolveu se tornar protetor de contrabandistas. A Polícia Federal e o SNI investigaram e juntaram evidências do envolvimento do capitão com as ilegalidades. Assim, o coronel Aloysio Alves Borges, foi incumbido pelo comandante do I Exército, general Sylvio Frota, de resolver a situação. O coronel prendeu oficiais e sub-oficiais envolvidos com o contrabando, e obteve uma série de confissões, arrancadas sob coação (isto é, sob tortura). A Justiça Militar recusou o processo porque os réus afirmaram em juízo terem assinado suas confissões sob coação. Gaspari resumiu assim, o final do caso:

Para que o coronel Aloysio Alves Borges construísse toda a trama denunciada em seu IPM tirando de sua cabeça cada história e cada detalhe, seria necessário que tivesse raro talento de ficcionista. O que ele informou era verdade, mas reconstituíra os delitos através de um processo que violentara os direitos dos acusados e ofendera o rito da Justiça. A idéia de que a confissão é suficiente como prova e de que obtê-la pela violência anula o esforço da investigação, era estranha a ele, ao réus, ao DOI e ao regime. Agia-se com uma noção exclusiva de poder outorgando-se não só o direito de punir delinqüentes da forma que parecesse adequada, como também a prerrogativa de fechar os olhos quando se julgasse conveniente. [...]. O STM achou justo desconsiderar as confissões obtidas no DOI, mas esqueceu-se de determinar a investigação das torturas. O capuz da Justiça Militar estava torto: cego para a esquerda, enxergava à direita. Milhares de pessoas passaram pelos DOIs, mas a quadrilha de contrabandistas da PE foi o único grupo confesso na instrução policial integralmente absolvido em todas as instâncias.

Por fim, gostaria de terminar com mais uma citação. Esta do início do volume chamado A Ditadura Derrotada. Neste caso, Gaspari cita Georges Pinot, jurista francês, que estivera no Brasil na década de 1970, a pedido do Secretariado Internacional dos Juristas Católicos, investigando denúncias de tortura. As palavras dele: “A tortura, no Brasil, não é nem pode ser o resultado de excessos individuais; nem é, nem pode ser considerada, uma reação exagerada a atos terroristas para derrubar um regime em dificuldade que, por seu lado, provoca o famoso 'ciclo da violência'. Isso não sucede, porque já não existe luta armada no Brasil. A tortura é manifestação e necessidade de modelo político num contexto jurídico e socioeconômico”. Me parece que a citação resume até onde pude ler o próprio pensamento do autor, Gaspari, a respeito do assunto.

NOTAS:

1. GASPARI, Elio. A Ditadura Envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

2. GASPARI, Elio. A Ditadura Escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

3. GASPARI, Elio. A Ditadura Derrotada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

4. MARTINS FILHO, João. A guerra da memória: a ditadura militar nos depoimentos de militantes e militares.

Varia História, Belo Horizonte, n.28, p. 178-201, 2003.


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Fim da Privacidade

Sabe aquilo que chamávamos privacidade?

FÁBIO ULHOA COELHO

A PRIVACIDADE acabou. Câmaras de vídeo estão espalhadas por estacionamentos, lojas, bancos, edifícios, ruas, por todos os lugares. Sofisticados apetrechos eletrônicos gravam conversas à distância, dispensando a implantação de microfones no ambiente monitorado.
Telefonemas e mensagens transmitidas pela internet são interceptados sem dificuldade. Já se organizam gigantescos bancos de dados reunindo simplesmente todas as informações existentes sobre todos nós.
Nem mesmo nossos pensamentos e desejos íntimos parecem estar a salvo. Está em fase de finalização para lançamento no mercado a Epoc, uma máquina que lê pensamentos. Ainda é um tanto rude e sua eficácia depende, às vezes, de movimentos "interpretativos" dos braços. Será inicialmente usada para entretenimento em jogos eletrônicos, mas, logo mais, virão o aperfeiçoamento e outros usos; nem meditando teremos sossego.
A tecnologia acabou com a privacidade e vai acabar com o direito à privacidade. Por algum tempo, legisladores e juízes ainda vão fingir que o protegem, mas esse direito, como tantos outros, não resistirá ao cerco da tecnologia. O constitucionalista norte-americano Lawrence Lessig insiste, há quase duas décadas, que a lei não é mais feita pelos legisladores, e sim pelos programadores de informática. O software ("code") é a lei. Ou, de modo mais geral, a tecnologia é a lei.
Dou dois exemplos de morte de direitos consagrados na ordem jurídica, mas que deixaram de existir porque os tribunais simplesmente não conseguem deter a avassaladora evolução tecnológica.
O primeiro é o direito de autor e conexos relacionados à obra musical.
Músicos, cantores, compositores, arranjadores e produtores não têm mais, hoje em dia, como impedir a reprodução pirateada de suas obras e interpretações pela internet. Evaporou-se em poucos anos a chance de ganho desses criadores com a venda de CDs. A lei continua a garantir o direito deles, mas, como tornar esse direito efetivo se, para tanto, seria necessário identificar e processar milhões de usuários de programas de compartilhamento?
O segundo exemplo busco na declaração de advogado da Microsoft, feita em julho de 2007, de que a empresa tinha decidido não promover ações judiciais contra o desrespeito a mais de duas centenas de suas patentes por vários programas de código livre, incluindo o Linux, em razão dos custos.
Se a poderosíssima Microsoft não vê mais vantagem econômica em acionar o aparato judicial para tentar defender suas patentes, então não existe de fato o direito que a lei teoricamente lhe concede.
O direito à privacidade terá o mesmo fim. A disseminação dos meios tecnológicos de invasão da esfera privada de nossa vida será de tal ordem que pouco ou nada poderão fazer os legisladores e juízes no mundo todo. Para muitos, um mundo sem privacidade é algo a lamentar. Os que mais reclamam do novo cenário evidentemente são os que cometem crimes, traem ou fazem algo errado.
Mas, talvez, não seja o caso de nutrir tanto pessimismo. Por paradoxal que possa parecer, um mundo sem privacidade pode ser mais seguro e tolerante.
Privacidade e segurança estão relacionadas de modo complexo. O sigilo bancário deve ser resguardado para a segurança das pessoas contra seqüestro, por exemplo. Mas não faz o menor sentido protegê-lo para dificultar a identificação e a punição de corruptos, corruptores, sonegadores de impostos ou lavadores de dinheiro.
Em termos gerais, no entanto, todos conseguem perceber que o aumento da segurança implica certa restrição à privacidade, e as câmaras instaladas nos elevadores dos prédios onde moramos e trabalhamos nos provam isso.
Além de mais seguro, o mundo sem privacidade pode ser também mais tolerante. Deixando de lado os que desejam encobrir crimes, traições ou deslizes morais, quem mais zela por sua privacidade são as vítimas de preconceito. Elas o fazem de modo legítimo. Mas, quanto menos barreiras separarem as pessoas, mais elas irão se conhecer. Quanto mais íntimos forem umas das outras, crescem as chances de se compreenderem e se aceitarem. O excessivo apego à privacidade pode nos conduzir a uma sociedade de falsos, patéticos avatares.
O fim da privacidade e do direito à privacidade talvez não seja, enfim, uma má notícia.


FÁBIO ULHOA COELHO , advogado, doutor em direito, é professor titular de filosofia do direito, direito comercial e empresarial da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).

Texto publicado na Folha de São Paulo, de 21 de agosto de 2008.


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sábado, agosto 23, 2008

A Grande Ausente

A Grande Ausente

Final de semestre da disciplina de História do Brasil. Passamos o semestre estudando o Brasil quase contemporâneo, revendo a história política do país a partir da reinstitucionalização acontecida em 1946, com a redemocratização, a deposição de Getúlio Vargas, chegando até os estertores da ditadura militar que dirigiu o país entre 1964 e 1985.

Nesta última aula a professora decidiu que a turma deveria promover um seminário, tentando resgatar junto a seus pais ou avós o que eles lembravam que havia acontecido no Brasil, quando dos governos militares. Para completar, foi solicitado aos alunos que trouxessem objetos representativos deste mesmo período. A memorabilia incluiu revistas, livros, discos, moedas, fotos, uma série de pequenas coisas que resgatavam um pouco dos anos 1960, 1970 e 1980.

Quando cada aluno e aluna teve oportunidade de expor o que tinha conseguido resgatar com seus parentes, apenas dois expuseram histórias de como a ditadura afetou efetivamente suas famílias. Talvez fosse melhor dizer que uma aluna teve condições de dizer que a mãe dela era uma pessoa que vivia com medo durante a ditadura, que a vida era afetada pelas ameaça sempre presente da prisão arbitrária, quando não do seqüestro clandestino e desaparecimento.

O outro aluno tinha o pai por militar, mas de nacionalidade uruguaia. E o pai se recusava a comentar sobre o que havia acontecido, ou o que ele fizera durante um período em que, o Brasil, e também o Uruguai (e também o Chile, e também a Argentina) foram dirigidos por regimes de exceção.

A regra entre os alunos era que o pai, ou a mãe, ou o avô, se sentiam indiferentes ao regime. Cada um estava preocupado com a sobrevivência de cada dia. A política era algo que não interessava, coisa para a qual estas pessoas não tinham tempo.

Por ser um aluno um pouco mais velho que os demais (digamos que a minha idade seja aproximadamente o dobro da faixa etária geral da turma), eu pude lembrar de minha infância nos anos 1970, dos álbuns de figurinhas, e da inflação. Relembrei que a minha mãe afirmava que votava normalmente na ARENA (Aliança Renovadora Nacional, o partido de suporte ao governo durante o regime militar), pois, segundo ela, a ARENA dera “tranqüilidade ao país”. Além disso, o regime militar havia dado aos trabalhadores férias proporcionais e o Fundo de Garantia (o FGTS). É estranho pensar isso. Antes destas “generosidades” da parte do governo militar, os trabalhadores recebiam estabilidade no emprego quando completassem dez anos de trabalho, e tinham direito a férias após um ano de trabalho. Mas pessoas com empregos precários, como era o caso do meu pai, um pedreiro, normalmente eram demitidas antes que completassem um ano de serviço para que o empregador não precisasse pagar férias ao trabalhador. Dez anos no mesmo emprego para conseguir estabilidade então, era um sonho distante, talvez inalcançável.

Eu nunca soube as preferências eleitorais de meu pai. Sei que em geral ele não gostava de soldados e de policiais, embora em particular pudesse se dar muito bem com algum, quando calhasse de tê-lo por vizinho. Isso eu pude testemunhar.

Quando pude conversar com minha irmã sobre aqueles dias, fiquei sabendo ela sempre votara no MDB (Movimento Democrático Brasileiro, a oposição consentida no regime). Nós nunca falamos muito sobre isso, mas o regime cassou-lhe o direito de eleger o presidente da república no auge da juventude dela. Ela também comentou comigo que ela havia tido a oportunidade de trabalhar com um senhor aposentado da Secretaria de Segurança do RS, que ali trabalhara entre o final dos anos 1960 e início dos 1970, e este senhor informara a ela que era comum os agentes do DOPS fotografarem os manifestantes de oposição daquela época para posterior abertura de processos e possível prisão por “dano à ordem pública”. Era medida preventiva ficar afastado de passeatas e protestos, para evitar ser confundido com “agitadores”.

Algum colega trouxe as suas próprias lembranças. Dele, me chamou a atenção de sua presença no Comício das Diretas, em Porto Alegre. Foi em 1984. E eu estive neste comício. Bem como passei, ao final de uma aula noturna, pela vigília que se fazia na Esquina Democrática, quando da votação da então chamada “Emenda Dante de Oliveira”, que pretendia emendar a constituição outorgada pelos militares, e restabelecer as eleições diretas para presidente da república. A Emenda ganhou maioria de votos, mas não a quantidade de votos necessária para emendar a constituição. Não custa lembrar que na liderança do governo naquela época, trabalhando para que a emenda não fosse aprovada estava o deputado gaúcho Nelson Marchezan.

Enfim, os mais jovens nasceram após o fim do regime militar, ou pouco antes do seu fim. Se não eram bebês na segunda metade da década de 1980, eram crianças na mais tenra idade. Os mais maduros, como é o meu caso, só tomaram consciência da ditadura, quando esta já estava se desmanchando. E vejo, após este semestre de estudos, o quão pouco eu sabia sobre este passado.

Fiquei mais ou menos como Renato Russo, que em determinada canção da Legião Urbana, dizia que “tenho Hanna Barbera, (...) tenho Guanabara, e Modelos Revell”. Certamente os desenhos da dupla William Hanna e Joseph Barbera acompanharam a minha infância pela TV. Eu não cheguei a entender a questão da Guanabara, a não ser depois de adulto, e os Modelos Revell eram “kits” para modelismo, para montar miniaturas automóveis, aviões ou navios. Eu nunca tive um, mas me lembro vivamente das propagandas nos livros de histórias em quadrinhos falando dos produtos Revell. Acho que eu imaginava como seria bom ter um.

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Tentações de uma boa inspiração

Tentações de uma boa inspiração

OSLO - Adotar o modelo norueguês como inspiração para definir as novas regras de exploração do petróleo no Brasil faz todo o sentido. Basta dar uma circulada pelo país para entender.
Baseado na criação de uma estatal totalmente controlada pelo governo, aliado à adoção de medidas para incentivar a indústria naval local, o modelo deu certo na Noruega.
País com um nível de desemprego superbaixo, na casa dos 2%, a Noruega conseguiu criar com a riqueza do petróleo toda uma cadeia de empresas no setor, evitando ficar refém unicamente da exploração do ouro negro.
Exemplo: visitando uma pequena cidade do interior, descobre-se que famílias de pescadores foram incentivadas a trocar de ramo. Passaram a construir navios para operar nas plataformas de petróleo.
Um empresário do setor entrou no negócio aos 19 anos. Recebeu do pai, um pescador, ajuda de US$ 12 mil. Hoje, controla uma empresa que vale mais de US$ 1 bilhão, desenvolvendo tecnologia de ponta própria na área.
Mas não podemos imaginar que tudo o que deu certo aqui dará também no Brasil. Na Noruega, o governo tem a última palavra para definir que companhias petroleiras vão explorar os campos na sua costa. Define inclusive em qual sua estatal vai participar.
Tenho sérias dúvidas se um esquema assim funcionaria no Brasil. País acostumado a conviver com escândalo atrás de escândalo, deixar com políticos ou tecnocratas a palavra final sobre quem vai ganhar uma mina de ouro negro é fazer um convite à tentação -para dizer o mínimo.
O fato é que, se está no caminho certo ao decidir mudar as regras de um jogo que se mostrou muito lucrativo, buscando defender os interesses do país, o governo Lula não pode a esse pretexto criar novos e perigosos privilégios.
Até aqui, não sinalizou que pretende correr tal risco. Um debate público e aberto ajudará ainda mais a afastar tais tentações.

Texto de Valdo Cruz, na Folha de São Paulo, de 21 de agosto de 2008.

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sexta-feira, agosto 22, 2008

Declaração de tortura

Declaração de tortura

O QUE HÁ DE melhor em uma democracia é que se deve obedecer à lei ao mesmo tempo em que se tem o direito de não concordar com ela. Do contrário, leis seriam eternas. Se são modificadas, é porque há discussão pública e avaliação da sua pertinência e adequação.
E, no entanto, bloquear a discussão é o que fazem sistematicamente as Forças Armadas quando o assunto é assassinato de presos e prática de tortura durante a ditadura.
A única declaração oficial é sempre a de que a Lei de Anistia de 1979 pôs um ponto final no debate.
Cabe perguntar por que e até quando as Forças Armadas vão carregar nas costas os crimes da ditadura. Sua recusa ao debate é tanto mais incompreensível porque é um tiro no pé: tem como única conseqüência prolongar uma confusão entre Forças Armadas e violência de Estado. Deveria ser do seu maior interesse mostrar que não se confundem com tortura e assassinato de presos.
A verdade só virá à tona quando se deixar de atribuir a culpa ao Estado como entidade abstrata. Não são todos os militares que torturaram e assassinaram. Cabe identificar quem praticou tais atos.
Esse é o sentido de uma ação declaratória de responsabilidade civil por tortura proposta por cinco membros de uma mesma família contra um coronel reformado do Exército. O objetivo da ação é o de declarar a responsabilidade do réu pela prática de tortura, e não de condená-lo.
É verdade que, se a ação tiver êxito, nada impedirá que os autores ingressem posteriormente com uma ação condenatória. Mas, independentemente de possíveis punições, o mais importante no momento é identificar e responsabilizar indivíduos. Separar a declaração de responsabilidade de possíveis punições é uma estratégia jurídica de vistas largas. Mostra que é possível buscar a verdade sem se enredar no bloqueio antidemocrático da discussão que fazem hoje as Forças Armadas.
Trazer a verdade à tona tem conseqüências de grande alcance. Uma das mais importantes é a de que, distinguindo militares de criminosos, será possível finalmente retirar de circulação a expressão ditadura "militar".
Não só porque as Forças Armadas vão poder enfim olhar a sociedade brasileira de frente outra vez, sem serem confundidas com arbítrio e violência, mas também porque deixar para trás a denominação "ditadura militar" vai revelar com clareza os muito mais numerosos beneficiários e colaboradores não-militares da ditadura. Que também não foram ainda declarados responsáveis por nada na ditadura que sustentaram com tanto zelo e empenho.

Texto de Marcos Nobre, na Folha de São Paulo, de 19 de agosto de 2008.

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Dever da Justiça

O dever da Justiça

BRASÍLIA - Os ex-militares em busca da insólita reparação na Justiça por danos morais, físicos e psicológicos sofridos durante o combate à guerrilha do Araguaia têm a chance de prestar um grande serviço ao país. Podem provar seus pesadelos revelando em detalhes as atrocidades cometidas durante o confronto nos anos 70, inclusive os locais onde estão os corpos de dezenas de militantes de esquerda. Reportagem de Sérgio Torres ontem na Folha informou sobre a intenção de algumas centenas de ex-militares. Eles reclamam uma indenização total de quase R$ 300 milhões. Alegam carregar "seqüelas psicológicas" por causa do envolvimento no extermínio de guerrilheiros na Amazônia, fato ocorrido há mais de três décadas. A Justiça está aí para isso mesmo. Quem se sente lesado tem o direito de reclamar. É esse também o caminho das famílias de militantes torturados, mortos e desaparecidos durante a ditadura militar (1964-1985). Mais de 130 corpos nunca apareceram. Conservador, o governo Lula se auto-excluiu do debate. "Este é um assunto do passado, que não tem nada a ver com o futuro", disse o ministro da Justiça, Nelson Jobim. Caberá agora aos juízes responsáveis pelo casos dos ex-militares fazer história. Podem determinar uma condição preliminar: os reclamantes terão de descrever minuciosamente as atrocidades praticadas -as torturas a militantes de esquerda e o trabalho de ocultação dos cadáveres de guerrilheiros. Se um ex-militar se recusar a relatar o ocorrido ou alegar amnésia, não terá como sustentar perante um juiz seus tormentos do presente. Ninguém fica abalado psicologicamente com algo já esquecido. A Justiça foi fundamental no Chile, na Argentina e no Uruguai para ajudar a cicatrizar as feridas das ditaduras locais. Agora, chegou a vez do Judiciário brasileiro.

O texto é de Fernando Rodrigues, na Folha de São Paulo, de 18 de agosto de 2008.

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quinta-feira, agosto 21, 2008

Cérebros e a "terceira onda"

Os cérebros e a "terceira onda"

SANTANDER - Vem aí o que os especialistas chamam de "terceira onda" de migrações internacionais, na forma de competição por talentos de alto nível.
O aviso foi dado ontem por Ronald Skeldon, da Escola de Estudos Sociais e Culturais da Universidade britânica de Sussex, no seminário "Globalização, Migração Internacional e Desenvolvimento". É uma promoção do Clube de Madri, centro de estudos que reúne 69 ex-chefes de governo, hoje presidido pelo chileno Ricardo Lagos.
Se a previsão estiver correta, será mais uma onda de fuga de cérebros, tema que esteve em moda não faz tanto tempo assim. O Brasil muito provavelmente será vítima, na medida em que já está havendo uma diáspora formidável de brasileiros mesmo antes de aberta a temporada de caça.
Mas Skeldon discute a idéia de fuga de cérebros: segundo ele, dos latino-americanos (brasileiros incluídos, como é óbvio) que emigraram para os Estados Unidos, 55% receberam treinamento no país de destino. Ou seja, a maioria não fugiu propriamente, mas desenvolveu-se lá mesmo. É uma tese discutível, na medida em que não leva em conta o custo da educação de base feita no país de origem.
Reforça a idéia de uma onda de caça a talentos o fato de que a União Européia aprovou, embora ainda não tenha implementado, um Pacto Migratório, que prevê buscar médicos nos países emergentes ou pobres para devolvê-los depois de devidamente treinados e aperfeiçoados. Guillermo de la Dehesa (Centro para Pesquisa de Política Econômica, de Londres), autor de um livro lançado ontem sobre migrações, avisa que, quando voltam, os médicos não vão para as áreas em que são mais necessários.
O Brasil, que permitiu uma diáspora descontrolada, pode preparar-se para a nova onda. Agora, cérebros são mais importantes na tal economia do conhecimento.

Texto de Clóvis Rossi, na Folha de São Paulo, de 19 de agosto de 2008.

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Por que esta manga é mais cara?




Você topa pagar um pouco mais por um produto feito sem danos à natureza ou exploração desumana do trabalho, sabendo que sua compra ajuda a desenvolver comunidades pobres? Milhares de consumidores no mundo topam. São a base do dito "comércio justo".
Muito mais conhecido na Europa, o "comércio justo", ou "solidário", ou ainda "ético" é um movimento social e um sistema internacional de comércio, que busca atenuar desigualdades nos países pobres, por meio da venda de produtos feitos em padrões sustentáveis.
No Brasil, produtos com o certificado do comércio justo ainda são raros em supermercados. Mas isso pode mudar a partir desta semana, quando serão lançadas as normas nacionais desse comércio.
Por aqui, o sistema começou a ganhar algum espaço no final dos anos 90 e só se tornou mais estruturado a partir de 2003. A proposta para normatizar o comércio justo no Brasil, que será levada agora, no dia 19, a um encontro internacional sobre o tema, no Rio, dá a ONGs e empresas a competência de certificar produtos, orientadas pelo Inmetro. Ela foi desenvolvida por Senaes (Secretaria Nacional de Economia Solidária), Sebrae (Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) e outras entidades da sociedade civil. Surge quase dois anos depois da criação de suas linhas gerais.
"Quando a coisa é muito "democrática", feita a 20 mãos, o processo se arrasta", diz Vanucia Nogueira, 47, superintendente do Centro de Excelência de Café do Sul de Minas, que trabalha com pequenos agricultores na região de Varginha.
Enquanto não vão para as gôndolas daqui, produtos nacionais de comércio justo já certificados internacionalmente são exportados para a Europa, como manga, suco de laranja e café. Essas mercadorias são vendidas pelo "preço justo", isto é, suficiente para que pequenos produtores consigam manter tanto um padrão de vida digno quanto os modos tradicionais de produção.
Um exemplo é o café. Em Minas Gerais, uma saca (60 kg) comum custa por volta de R$ 250, de acordo com o Centro de Excelência de Café do Sul de Minas. Já uma saca da produção "justa" rende ao pequeno produtor R$ 310, quase 25% a mais que o preço de mercado.
Isso é financiado na outra ponta da cadeia, pelo consumidor. A diferença entre o preço comum e o "justo" varia segundo o país e o produto.
Em São Paulo, o Sam's Club vende o café de comércio justo por R$ 7,38 (250 g), 17,6% mais barato que um café gourmet (R$ 8,96). Mas bem mais caro que um café comum (R$ 2,30). Apesar dos preços altos, o mercado ético mundial cresceu a uma taxa anual média de 40% nos últimos cinco anos. Em 2007, cresceu 47% e movimentou 2,3 bilhões de euros, segundo a Fairtrade, entidade que reúne 23 certificadoras internacionais e produtores da América Latina, Ásia e África. As certificadoras atestam para o consumidor que os produtos seguem os padrões do sistema.
"O comércio justo oferece aos consumidores uma poderosa oportunidade para assumir a responsabilidade pelo que compram. Cada vez mais pessoas se preocupam com a procedência da mercadoria e querem saber se os produtores envolvidos obtêm remuneração justa", diz Verónica Sueiro, coordenadora da Fairtrade.

Este texto, original da Folha de São Paulo, foi encontrado no Depósito do Maia.

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quarta-feira, agosto 20, 2008

As palavras do medo

As palavras do medo



EM TODOS OS atos e palavras que há 23 anos se contrapõem a respeito da extensão, ou não, da Lei da Anistia a militares autores de assassinatos, torturas e desaparecimentos na ditadura, os crimes figuram como os elementos mais perceptíveis, mas, a rigor, são subjacentes a um aspecto maior que encobre toda a nação. O impedimento de chegar-se à decisão definitiva da questão é uma forma de censura que nega o regime democrático e o Estado de Direito, e afirma a prevalência da força armada como uma ameaça tácita.
O reconhecimento desse estado permanente de censura e negação da democracia é explicitado por autoridades de todos os Poderes, presidente e ministros do Supremo Tribunal Federal, presidente da República, congressistas a granel: "Essa discussão não serve à estabilidade", "Não podemos ter uma conduta de escalada das tensões" (Nelson Jobim), "É preciso parar de xingar" os que "mataram estudantes e operários" (Lula), "Não é oportuno levantar esse assunto" (congressistas do governo e da oposição), conhecemos também as outras fórmulas. Nos 23 anos, nem a forma das frases variou. A única novidade foi a adesão, à corrente dos seus repetidores, de oportunistas que diziam o oposto antes de chegarem aos gabinetes ou aos banheiros do poder.
Por que, no país onde se considera a restrição à publicidade de produtos inconvenientes à infância como violação inconstitucional à liberdade de expressão, ecoam manifestações de censura como aquelas? A evidência crua é simples: expressam o medo e a convicção de que os militares, em especial os do Exército, reinstalariam a instabilidade, senão mais do que isso.
E aí está outra evidência crua: o não-argumento exposto naquelas manifestações pró-censura é uma forma de reconhecimento, por seus usuários, do Estado de democracia apenas aparente. Ou seja, da instabilidade pendente, para não se exteriorizar, de concessões que contrariam preceitos essenciais da democracia.

O truque
As palavras de Lula aos representantes da UNE têm um ar horrível de insinceridade. Se considera como "os nossos heróis" os "estudantes e operários que morreram" sob a repressão na ditadura, deveria respeitá-los, à sua memória, às suas famílias e à história de que foram personagens. Em vez de, primeiro, pôr-se no muro quando os crimes da ditadura voltam à superfície e, ao muxoxo imediato dos contrariados, abafar depressa a iniciativa de exame do assunto.
"Nossos heróis" de Lula foi um modo de neutralizar, em tempo, a esperável cobrança a respeito de mais um abafamento que fez.

Da coluna de Jânio de Freitas, na Folha de São Paulo, de 14 de agosto de 2008.


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terça-feira, agosto 19, 2008

Militares brasileiros, a lei de anistia e a tortura - Texto do Le Monde

Militares brasileiros recusam questionar a Lei de Anistia

Annie Gasnier
Correspondente no Rio de Janeiro


Um constrangimento instaurou-se entre o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e alguns oficiais militares brasileiros, a respeito dos crimes que foram perpetrados durante a ditadura militar (1964-1985). Alguns oficiais de alta patente mostram-se preocupados com o fato de que a Lei de Anistia, votada em agosto de 1979, seja questionada por membros da equipe que está no poder, e eles esperam que o presidente Lula ponha um fim a este debate quando retornar dos Jogos Olímpicos. O presidente da corte suprema brasileira (o Superior Tribunal Federal - STF), Gilmar Mendes, avaliou na segunda-feira (11/08), que era preferível encerrar um debate que comporta riscos de instabilidade institucional.

O governo, cuja orientação política é de centro-esquerda, inclui vários ministros que tomaram as armas ou que pertenceram a movimentos de oposição contra a ditadura, como o ministro da Justiça, Tarso Genro, um antigo prefeito de Porto Alegre, e o secretário para os direitos humanos, Paulo Vannuchi. No decorrer de um seminário que foi realizado em Brasília no final de julho, estes dois expoentes destacados da esquerda defenderam uma nova interpretação da Lei da Anistia. Tal como ela foi concebida, esta lei busca abranger todos os crimes que foram cometidos por razões políticas, quer eles tivessem sido atribuídos a opositores, quer a agentes do Estado.

"A tortura não é um crime político", considera o ministro Genro. Dito isso, contudo, "a abertura de processos contra militares não é da nossa competência", acrescentou.

O ministro da Defesa, Nelson Jobim, fez questão de tranqüilizar suas tropas, deixando claro que a lei não seria revista. Em 7 de agosto, militares manifestaram preocupação por meio de uma demonstração de força nos salões dourados do Clube Militar do Rio de Janeiro, uma entidade que reúne principalmente oficiais da reserva do Exército. Na ocasião, mais de 500 homens estavam presentes, do quais dois generais quatro estrelas que seguem até hoje na ativa, em postos no Rio.

Dissimular o mais importante
Embora nenhum dos presentes estivesse trajando seu uniforme, o tom das declarações era claramente belicoso. Os participantes não esconderam sua intenção de advertir as autoridades civis, que eles acusam de conduzirem um debate "fora do contexto e imoral". Um texto, que foi assinado pelos presidentes dos clubes militares das três armas, questiona, sem defender, contudo, a tortura, os motivos de se discutir "uma lei cujos efeitos positivos se fazem sentir até o presente momento".

Durante esta reunião no Clube Militar, chamou à atenção a presença entre os participantes do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um antigo chefe do DOI-Codi, um órgão de repressão criado pela ditadura em São Paulo. Este oficial vem respondendo na justiça a processos intentados por vítimas de torturas ou seus familiares. "O coronel Ustra foi um dos mais violentos repressores do regime militar, responsável por torturas e por mortes", havia afirmado o advogado e antigo ministro da Justiça, José Carlos Dias, quando as queixas foram feitas formalmente, há dois anos. Sessenta presos mortos e 502 casos de torturas que foram perpetradas nas dependências do DOI-Codi foram denunciados. O coronel alega ter obedecido a ordens, da mesma forma que fizeram militares das outras ditaduras sul-americanas no afã de terem a sua impunidade preservada.

"Este debate não passa de uma encenação dirigida à mídia", critica a presidente do grupo Tortura Nunca Mais, no Rio de Janeiro. Cecília Coimbra, que foi vítima de torturas no Rio em 1970, considera que "essa cortina de fumaça dissimula o mais importante, a saber, a recusa dos militares de entregarem seus arquivos, os quais permitiriam saber o que aconteceu exatamente, dos dois lados".

Em 2007, o presidente Lula já havia deixado os militares irritados quando apresentou o livro intitulado "Direito à Memória e à Verdade", um documento que foi elaborado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos, do qual constam os nomes de 357 pessoas mortas ou desaparecidas durante a ditadura.

Tradução: Jean-Yves de Neufville

Texto do Le Monde no UOL.


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O Financial Times vê o conflito na Geórgia

Conflito mostra primeira tentativa de ressuscitar a União Soviética

Charles Clover

Na terça-feira (12/08), o trecho de auto-estrada entre Tbilisi, a capital da Geórgia, e a cidade de Gori, que fica próxima à frente de batalha, contava a história triste do fim de um exército outrora orgulhoso.

Era possível ver dezenas de veículos vazios, que aparentemente foram abandonados quando o pânico tomou conta dos soldados georgianos durante a noite.

Equipamentos, incluindo metralhadoras, foram deixados nos veículos e espalhados ao longo da estrada. Havia pouquíssimos sinais de luta.
Somente um veículo foi atingido pelo fogo inimigo: um carro blindado retorcido e escurecido pelo fogo. O seu canhão estava jogado em um campo próximo.

O resto da destruição - dois caminhões pesados que colidiram de frente, vários tanques abandonados em depressões à beira da estrada e dezenas de caminhões vazios com as portas abertas - deveu-se ao puro medo. Os soldados que por lá circulavam evidentemente sabiam que qualquer veículo militar na estrada era um alvo potencial para a temida "aviatsia" russa. Melhor voltar a pé para Tbilisi do que morrer.

Foi o final humilhante de uma aventura militar - que teve início na última quinta-feira - espetacularmente mal concebida por Mikhail Saakashvili, o presidente georgiano. Na noite passada ele alimentou o pânico ao anunciar na televisão - falsamente, conforme ficou comprovado - que as tropas russas marchavam em direção à capital e ordenar o recuo das suas unidades.

Quando o presidente russo Dmitri Medvedev anunciou ontem a cessação das hostilidades, a Rússia estava no comando tanto da Ossétia do Sul quanto da Abkházia. Os russos destruíram a capacidade de combate georgiana e pareciam ter a intenção de derrubar Saakashvili, com uma boa chance de sucesso.

Foi o fim de uma semana de riscos sem precedentes assumidos pelos governos georgiano e russo, cada um deles tentando reescrever as regras referentes àquilo que poderiam fazer impunemente. Saakashvili apostou em uma ofensiva contra o enclave separatista da Ossétia do Sul, mas, em vez de desfechar um ataque rápido e preciso, transformou a operação em um uma balbúrdia sangrenta na noite da quinta-feira, quando tropas georgianas cercaram a cidade de Tskhinvali, bombardeando-a e matando até 2.000 pessoas.

O Kremlin também fez uma aposta quando fez com que o seu 58º exército cruzasse a fronteira para atacar um país apoiado pelos Estados Unidos.
Até mesmo as invasões soviéticas da Hungria, da Tchecoslováquia e do Afeganistão, os únicos precedentes para uma guerra deste tipo, foram feitas contra países que se encaixavam solidamente na esfera de influência de Moscou. A Geórgia é diferente: o seu governo pró-ocidental tem vínculos estreitos com Washington, conta com um presidente educado na Universidade Harvard e possui mais de cem assessores militares norte-americanos. Em termos de desrespeito flagrante ao status quo global, a operação tem poucos paralelos.

Mas enquanto a Geórgia apostou e perdeu, até o momento o cálculo da Rússia parece ter resultado em sucesso.

Ao atacar impunemente um aliado norte-americano que estava sendo cogitado para ingresso na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), o Kremlin demonstrou que a Rússia é a potência dominante na região. "Historicamente a Rússia foi e continuará sendo a garantidora da segurança dos povos do Cáucaso", afirmou Medvedev na semana passada.

Em outras palavras, parece que a Rússia subitamente passou a pertencer ao clube de elite formado pelos países que podem escrever as suas próprias regras. Da mesma forma como os Estados Unidos foram capazes de ignorar o repúdio generalizado à invasão do Iraque sob um falso pretexto - as inexistentes armas de destruição em massa de Saddam Hussein -, os líderes da Rússia puderam ignorar a pressão internacional referente a uma guerra que eles próprios ajudaram a provocar ao armarem e apoiarem os rebeldes sul-ossetianos.

"A Rússia está exigindo um papel totalmente novo, e este fato terá repercussões pelo mundo todo", afirma Dmitri Trenin, analista político do Centro Carnegie de Moscou. Ele vê como fortes provocações as recentes decisões da Otan de dar início a discussões a respeito do ingresso da Ucrânia e da Geórgia na Otan, bem como os planos dos Estados Unidos para a instalação de um sistema antimísseis na Europa Oriental. "A Rússia começará a enfrentar mais ativamente os Estados Unidos em todo o mundo. Esta atitude não existia um mês atrás - agora o clima é diferente. A Rússia deseja firmar a sua hegemonia regional".

Poucos duvidam que a ação militar na Geórgia é a primeira de uma série de medidas para reinstituir o controle de Moscou sobre a ex-União Soviética. O ingresso da Geórgia e da Ucrânia na Otan, algo que vinha sendo bastante cogitado no início deste ano, agora se tornou bastante improvável.

Tendo criado o precedente de defender os cidadãos russos com o uso de força militar - os sul-ossetianos vêm recebendo passaportes russos há dois anos - , o Kremlin poderia usar as mesmas técnicas do tipo dividir-e-conquistar na Criméia, a província ucraniana dominada por indivíduos de etnia russa, no norte do Cazaquistão, região também dominada pela etnia russa, ou nos Estados bálticos, que possuem grandes minorias russas. É quase certo que a Rússia tentará derrubar Saakashvili, tido por Moscou como um fantoche dos Estados Unidos, e substituí-lo por uma figura pró-Rússia. Viktor Yushchenko, o presidente pró-ocidental da Ucrânia tomará nota disso.

Recentemente o Kremlin procurou confrontar Washington em outras regiões, estabelecendo vínculos com regimes antiamericanos como a Venezuela, de Hugo Chávez, e Cuba, de Raúl Castro, e, ao mesmo tempo, aprofundando o relacionamento com a China para contrabalançar a força da Otan. No mês passado os dois países assinaram um acordo inédito de demarcação de fronteira.

Em face disso, a pressão norte-americana sobre a Rússia tem sido inefetiva. Moscou parece ter calculado corretamente que Washington não reagiria à sua invasão da Geórgia - já que os Estados Unidos estão emaranhados nas guerras no Afeganistão e no Iraque. Não se sabe se as "conseqüências" mencionadas em uma ameaça do vice-presidente dos Estados Unidos, Dick Cheney, alguns dia se materializarão.

Muitos acreditam que o governo georgiano também tem culpa pela guerra por ter atacado primeiro a Ossétia do Sul. "Creio que os Estados Unidos estão embaraçados pelo fato de Saakashvili ter ido além daquilo que Washington considerava uma política racional. Saakashvili tentou colocar os norte-americanos diante de um fato consumado. Mas a operação dele foi um desastre", afirma Trenin. "A resposta européia à crise da Geórgia tem sido heterogênea e marcada por críticas à Geórgia, bem como à Rússia, o que revela uma diferença profunda entre a percepção norte-americana e européia em relação à Rússia. Os europeus opõem-se às políticas de confrontação dos Estados Unidos e preferem não antagonizar Moscou. Muita gente na Europa dirá aos norte-americanos: 'Nós avisamos que vocês não podiam confiar nesse governo georgiano. Eles são como crianças brincando com fósforos no quintal, que acabaram se queimando bastante. Não faz sentido ir à guerra contra a Rússia por causa disso'".

Natalia Leschenko, da instituição de pesquisas políticas Global Insight,
afirma: "Os membros da União Européia dividem-se em duas linhas quanto à posição que a União Européia deveria adotar em relação à Rússia no que diz respeito à esta situação. Os novos membros, os Estados bálticos e a Polônia, exigiram rapidamente a imposição de regulamentações de vistos à Rússia e também a suspensão do Acordo de Parceria e Cooperação (entre a Rússia e a União Européia), que ainda não está em vigor. Já os membros mais antigos da união não vêem sentido na suspensão do diálogo com a Rússia".

Em outras palavras, Moscou obteve uma acachapante vitória militar, a um custo surpreendentemente baixo no que se refere à sua posição internacional. "Os Estados Unidos estão a ponto de perder um aliado, e não há muito que possam fazer, a menos que os russos cometam um erro mais sério como um bombardeio em grande escala contra Tbilisi ou o envio de tropas terrestres a Gori", diz Trenin, referindo-se à cidade georgiana ao sul da Ossétia do Sul. "Em tal caso os Estados Unidos teriam uma justificativa para agir. Mas do jeito que as coisas estão eles nada podem fazer".

Tal ousadia seria impensável há apenas alguns anos, logo após o colapso da União Soviética. Mas a Rússia passou por uma surpreendente transformação nos últimos oito anos sob o governo de Vladimir Putin, que neste ano deixou o cargo de presidente para tornar-se primeiro-ministro.

O liberalismo pró-ocidental da década de 1990 ficou desacreditado e os símbolos que o governo usa para se autodefinir são cada vez mais aqueles do império - a cruz ortodoxa da Rússia imperial czarista e a estrela vermelha da União Soviética. O "patriotismo" anda por toda parte como ideologia de Estado mal definida, sendo estimulado por uma mídia cada vez mais controlada pelo Estado.

Na década de 1990 o Kremlin era bem mais vulnerável às pressões internacionais, já que devia aos credores internacionais e estava ansioso para ser incluído no "Ocidente", com todas as obrigações morais implícitas em tal inclusão. Mas agora a Rússia exibe autoconfiança econômica, possuindo a terceira maior reserva de moeda estrangeira do mundo e exibindo um grande superávit da balança comercial alimentado pelo petróleo e o gás.

Enquanto isso, o relacionamento do país com o Ocidente tornou-se mais ambivalente, sendo que muita gente na Rússia acredita - de maneira similar ao movimento eslavófilo do século 19, que floresceu nos salões da São Petersburgo imperial - que o país tem uma missão própria e especial, não necessitando imitar o Ocidente.

Houve também uma transformação das forças armadas russas sob Putin, que assumiu a sua presidência no período marcado pelo episódio mais negativo referente à capacidade bélica da Rússia: o desastroso afundamento acidental do submarino nuclear Kursk, em 2000, devido a um torpedo defeituoso. A catástrofe do Kursk revelou como era grave o negligenciamento das forças armadas, e desde então o Kremlin fez do Exército uma prioridade. Há alguns anos, uma invasão da Geórgia seria simplesmente uma impossibilidade prática para um exército sucateado e desmoralizado pelas prolongadas campanhas na Tchetchênia e a falta de verbas.

O verdadeiro custo da campanha militar russa na Geórgia é desconhecido, mas ele pareceu ser um exemplo clássico de operação bélica moderna. "Os russos estão nitidamente usando o modelo da campanha dos Estados Unidos na Iugoslávia, em 1999", explica Trenin. O Kremlin efetuou bombardeios de grande altitude para castigar as forças georgianas até que elas recuassem, de forma semelhante ao que a Força Aérea dos Estados Unidos fez contra os sérvios no Kosovo.

Não há dúvida de que a Rússia espera que a imposição de uma grande derrota militar a Saakashvili jogue a opinião pública decisivamente contra ele, e que o povo georgiano faça o resto do trabalho para derrubá-lo. Sergei Lavrov, o ministro das Relações Exteriores da Rússia, disse na terça-feira que o seu país não está procurando depor Saakashvili, como o presidente georgiano alegou publicamente em uma entrevista à televisão. No entanto, ele frisou que Moscou gostaria que Saakashvili renunciasse ao cargo.

"Seria melhor se ele fosse embora" disse Lavrov em uma coletiva à imprensa. "Não confiamos na atual liderança georgiana".

Os georgianos, que inicialmente apoiaram Saakashvili, e que continuam unidos no seu ódio a Moscou, estão questionando cada vez mais o cálculo do seu presidente. Embora na terça-feira 150 mil pessoas tenham saudado Saakashvili em frente ao parlamento da Geórgia, havia gente reclamando por toda parte. "Por que fomos à guerra sem armas? Por que fomos à guerra sem sistemas anti-aéreos? Quem precisava desta guerra?", criticou Timur Goldelashvili, um morador de Gori.

Apenas algumas horas após o cessar-fogo russo ter passado a vigorar, surgiram na mídia georgiana notícias de que Nino Burjanadze, a ex-primeira-ministra que recentemente desentendeu-se com Saakashvili, indicava que pretendia desafiar o presidente.

"Este não é o momento de fazer ataques políticos... quando os russos estão a apenas alguns quilômetros da nossa capital", afirmou ela. "Mais tarde haverá tempo para determinar responsabilidades e culpas".

Tradução: UOL

O texto é do The Financial Times, reproduzido no UOL. O viés é levemente à direita, mas é um dos mais equilibrados que pude ler a respeito dos recentes episódios envolvendo Geórgia e Rússia.


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Aritmética e racismo

Aritmética e racismo

SÃO PAULO - OK, a Bolívia está dividida entre o presidente Evo Morales e um punhado de governadores provinciais. Mas vamos fazer direitinho a aritmética dessa divisão: dois terços dos bolivianos estão com o presidente, e o terço restante, com a oposição.
Jogar na aritmética o forte apoio dado ao governador oposicionista de Santa Cruz de la Sierra, Rubén Costas, é distorcer as contas. Costas só foi votado em sua terra; Evo, em toda a Bolívia.
É claro que ambos estão legitimados, como sempre acontece com os ganhadores de consultas eleitorais na democracia. Mas é justo dizer que Evo Morales está mais legitimado do que qualquer dos outros ganhadores. Afinal, o presidente obteve cerca de dez pontos percentuais a mais do que na eleição presidencial de 2005. Única leitura possível, de resto óbvia: há mais bolivianos que aprovam Evo hoje do que os que nele votaram em 2005, apesar de todo o alto grau de conflitividade em seus dois anos e meio de gestão.
Evo ganha o direito de passar o rolo compressor na oposição, como o fez, por exemplo, aprovando em um quartel -e só com sua turma- o texto constitucional? Não, mesmo que ele pudesse fazê-lo, o que não parece ser o caso.
Mas lhe dá o direito de cobrar da oposição o comportamento democrático que ela reclama de Evo. Chamar o presidente de "macaco", como o fez Rubén Costas, é tudo, menos democrático. Revela uma divergência que é não só sobre autonomias nem só ideológica mas também étnica -ou racismo em estado puro.
O fato é que a maioria dos bolivianos cabe no rótulo de "macaco" quando vistos por Costas. E maioria ganha eleição.
À oposição resta conviver com essa matemática ou partir para a separação, perdendo no percurso o direito de acusar o presidente de ter o monopólio do radicalismo.

Texto de Clóvis Rossi, na Folha de São Paulo, de 13 de agosto de 2008.


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sexta-feira, agosto 15, 2008

Alemã se reencontra com marido norte-coreano depois de 47 anos

Alemã se reencontra com marido norte-coreano depois de 47 anos

Choe Sang-Hun
Em Seul

Entre as expressões coreanas escritas a mão que ela tinha anotado em um caderno, Renate Hong havia repetido uma determinada frase inúmeras vezes no último meio século: "Dasi bopsida" ou "Vamos nos reencontrar".

É uma expressão comum na Coréia. Mas para Renate, uma avó alemã de 71 anos, expressava um desejo nunca satisfeito até 25 de julho, quando ela reencontrou o homem norte-coreano com quem se casou, mas que tinha visto pela última vez 47 anos atrás.

"Ele me perguntou por que eu demorei tanto para ir ao seu encontro", disse Renate em uma entrevista através de um tradutor, descrevendo sua reunião com Hong Ok Geun, 74.

Renate voltou à Alemanha na terça-feira (5) depois de um encontro de 12 dias com seu marido na Coréia do Norte - um episódio altamente incomum diante da política do governo comunista de proibir que a maioria da população tenha ligações por correio ou telefone com o resto do mundo, para não falar na Internet.

Viajaram com Renate seus dois filhos. Peter Hyon Zol tinha dez meses e Renate estava grávida de Uwe quando a família se separou no turbilhão da Guerra Fria.

Renate Kleinle e Hong Ok Geun se conheceram em 1955, quando freqüentaram o mesmo curso de química na Universidade Friedrich Schiller em Jena, então Alemanha Oriental. Hong era um bem-humorado estudante de intercâmbio da Coréia do Norte, na época aliada da Alemanha Oriental comunista.

Os dois se apaixonaram. Como seus governos não aprovavam os casamentos entre estudantes norte-coreanos e alemães-orientais, eles se casaram em 1960 em uma cidade rural cujas autoridades locais não conheciam a política do governo nacional. Não houve convidados.

Mas a felicidade do casal durou apenas um ano. Em 1961, o governo de Pyongyang repatriou 350 de seus estudantes da Alemanha Oriental, uma medida que teria sido causada pela deserção de alguns estudantes coreanos para o Ocidente. Hong teve 48 horas para fazer as malas.

Segurando no colo Peter, de dez meses, Renate se despediu em lágrimas de Hong na estação ferroviária de Jena.

Sua única comunicação era por carta. Mas até isso parou. Na última carta que ele enviou da Coréia do Norte, datada de 26 de fevereiro de 1963, Hong perguntava se Uwe, o filho que ele não conhecia, já sabia andar. Depois disso as cartas de Renate foram devolvidas como "destinatário não encontrado". Seus apelos à embaixada da Coréia do Norte para se reunir com o marido foram rejeitados.

Renate nunca se casou de novo.

Quando sua trágica história de amor chegou à Coréia do Sul, no ano passado, fez eco com muitas outras nessa península dividida, onde milhares de pessoas idosas anseiam há muito por reencontrar seus cônjuges no norte antes de morrer.

Renate visitou a Coréia do Sul no ano passado em uma viagem promovida pelo jornal local "JoongAng Ilbo".

Enquanto isso, ela pediu ajuda ao governo alemão e à Cruz Vermelha na Alemanha e na Coréia do Sul. No início do ano passado a Cruz Vermelha alemã descobriu que Hong Ok Geun era um cientista do governo aposentado que vivia com sua nova família em uma cidade na costa leste da Coréia do Norte.

Com a ajuda do governo alemão, Renate mandou uma carta para Hong em março do ano passado. Quatro meses depois, no aniversário dela, em 27 de julho, chegou a resposta de Hong - a primeira notícia dele em 46 anos, com fotos incluídas.

"Nosso amor internacional nos causou muito sofrimento", escreveu Hong no alemão manuscrito que Renate reconheceu. "Eu queria muito ver você e meus filhos. Nunca abandonei a esperança de que, se eu vivesse bastante, um dia poderia vê-la de novo. Eu queria que você fosse minha parceira para toda a vida", ele escreveu. "Mas a política faz coisas idiotas."

Seguindo fielmente a linha do Partido Comunista, Hong acrescentou que ele e outros norte-coreanos sofriam dificuldades econômicas por causa da política americana de "sufocar" seu país.

Ao viajar, Renate levou para Hong livros, roupas, vitaminas e uma câmera.

Seu marido lhe deu um anel e uma camisa. Eles puderam se encontrar todos os dias enquanto ela esteve em Pyongyang - e até passaram uma noite em um resort na montanha, mas se hospedaram em lugares diferentes.

"Como ele não teve a oportunidade de falar alemão durante 47 anos, no início achou difícil me compreender. Mas rapidamente recuperou sua habilidade com a língua", disse Renate. "Hoje ele está velho, mas não vi mudanças em suas maneiras e em seu modo de falar. Tivemos momentos privados só entre nós dois."

Hong teve uma filha e dois filhos com sua mulher norte-coreana. A filha participou da reunião. A mulher de Hong queria conhecer Renate, mas não pôde ir ao encontro por causa de uma doença, disseram a Renate.

Quando o casal se separou, Hong disse que queria vê-la novamente no ano que vem, mas não ficou claro se a Coréia do Norte permitirá um segundo encontro.

Por enquanto, disse Renate, seu antigo sonho se realizou: encontrar seu marido e deixar que seus dois filhos conhecessem o pai. Ela levou álbuns de fotos dos filhos para que o marido pudesse recuperar os muitos anos de vida que tinha perdido.

"Meu marido disse que sentia muito ter deixado tudo para mim e me agradeceu por criar as duas crianças", ela disse. "Ele afirmou que me conhecer foi a grande honra de sua vida."

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

Texto do The International Herald Tribune, publicado no UOL.


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A tortura é a verdadeira herança maldita

A tortura é a verdadeira herança maldita

O MINISTRO da Justiça, Tarso Genro, teve a sua hora como guardião dos direitos humanos e amarelou. Em agosto do ano passado, ele deportou os boxeadores cubanos Guillermo Rigondeaux e Erislandy Lara, que abandonaram a delegação do seu país durante os jogos do Pan.

Rigondeaux, bicampeão olímpico, foi excluído da equipe enviada a Pequim. Erislandy fugiu de novo, está na Alemanha e de lá informou: "Não tivemos nenhum apoio e, sem ninguém para contatar, fomos obrigados a pedir para voltar para Cuba".
Há algo de oportunismo e de caça ao evento na auto-investidura do comissário Genro como perseguidor de torturadores. Sua estatura como ocupante da cadeira onde sentou-se Diogo Feijó (1831-1832) cabe numa frase dita por ele: "O presidente pode dar um puxão de orelha em qualquer ministro. Isso é da sua competência, mas eu não levei puxão de orelha". Mesmo assim, Tarso Genro esteve certo em relação aos torturadores.
A tortura foi uma política de Estado durante a ditadura, particularmente entre 1969 e 1977. Como disse o general Vicente de Paulo Dale Coutinho, às vésperas de assumir o Ministério do Exército, em 1974: "Ah, o negócio melhorou muito. Agora, melhorou, aqui entre nós, quando começamos a matar". Como reconheceu um estudo do Centro de Informações do Exército, praticaram-se "ações que qualquer Justiça do mundo qualificaria de crime". Os torturadores cumpriam determinações de seus superiores. Prova disso foi a concessão da Medalha do Pacificador ao delegado Sérgio Fleury, ícone do Esquadrão da Morte e do porão paulista.
A história segundo a qual a tortura e a prática sistemática de assassinatos foi produto de excessos, indisciplina ou deformação moral de subalternos é uma patranha destinada a polir a biografia dos comandantes militares e dos presidentes da República da ocasião.
Se a família de uma vítima da máquina repressiva dos generais, almirantes e brigadeiros, vai à Justiça em busca da responsabilização dos oficiais que comandavam o porão, esse é seu direito. Caberá ao Judiciário decidir se a anistia ampara a outra parte. Pena que fiquem de fora os finados comandantes que mandaram capitães e majores torturar e matar brasileiros.
Há um aspecto relevante nesse debate. É a postura dos atuais comandantes diante da herança maldita da ditadura. Em vez de exorcizá-la, reconhecendo um erro cometido há mais de 30 anos, cavam duas trincheiras. Uma é a do debate inoportuno. Outra é a da negativa da responsabilidade dos hierarcas. Ambas são falsas, e o debate é necessário. O desconforto e a irritação dos comandantes militares com a tortura é o único tema dos anos 60 e 70 que não desaparece da agenda política nacional. O país já se livrou da inflação e da Telerj, mas a sombra soberba dos DOI-Codi continua aí.
Algo como se o doutor Henrique Meirelles fosse obrigado, hoje, a defender a inflação dos seus antecessores remotos no Banco Central.
Quem vive preso ao passado não são os órfãos do DOI, são os protetores de sua memória.
Os comandantes militares carregam na mochila crimes alheios. (A tortura, assim como o seqüestro, pode ter sido coberta pela anistia, mas crime foi.) Não são as vítimas nem seus parentes que devem calar. São os comandantes que devem se acostumar ao convívio com a história.

Texto de Elio Gaspari, na Folha de São Paulo, de 13 de agosto de 2008.


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PEC contra o trabalho escravo

PEC contra o trabalho escravo

A Wal-Mart do Brasil esteve apoiando a Proposta de Emenda Constitucional - PEC 438/2001, que determina a desapropriação de propriedades rurais onde forem encontrados trabalhadores em situação de escravidão, ou análoga à escravidão, sem indenização aos proprietários, e encaminhamento destas propriedades para reforma agrária. Cartazes na loja pediam assinaturas de apoio à PEC, e informavam que este apoio era em conjunto com o Instituto Ethos, e a agência de notícias Repórter Brasil.

A coisa aparentemente soa estranha, porque vez por outra nos chegam notícias que a rede Wal-Mart, em suas lojas nos Estados Unidos, além de oferecer produtos a preços baixos, também tem a política de praticar salários baixos, e dificultar a atividade sindical entre seus funcionários. Mas possivelmente uma coisa seja a situação e a atuação da rede nos Estados Unidos, e outra a atuação aqui no Brasil. Talvez aqui no Brasil, os salários já sejam em média tão baixos que a rede não precise praticar achatamento de salários, e repressão de sindicalistas.

Fato é que já ouvi relatos que o tratamento aos funcionários melhorou depois que a rede Wal-Mart comprou do grupo português Sonae a rede de supermercados Nacional e Big aqui no Rio Grande do Sul.

Pois ontem, quarta-feira, dia 13 de agosto, estive em uma loja da rede Nacional, e após realizar algumas compras, perguntei a uma das supervisoras de caixa da loja, onde eu deveria me dirigir para assinar. Meio surpresa, a senhora me perguntou “assinar o quê?”. E eu falei que queria assinar o abaixo-assinado referido no cartaz na entrada da loja. Ela continuou surpresa (para minha surpresa): “que cartaz?”. Eu apontei o cartaz que informava que o Wal-Mart estava recolhendo assinaturas de apoio à PEC 438, contra o trabalho escravo. Após aquela expressão de “Ah!”, sinalizando que finalmente havia entendido a minha intenção, a senhora me pediu para aguardar um minuto, que ela iria verificar.

Mais de um minuto se passou até que ela conseguisse descobrir quem estava encarregado do tal abaixo-assinado, e onde estavam as folhas para a coleta de assinaturas. Eu não contei, mas arriscaria algo como entre 5 a 10 minutos de espera. Encontrado o abaixo-assinado, pude colocar ali meus dados, e, obviamente, minha assinatura. Mas não pude deixar de achar estranho o aparente despreparo, ou desinteresse, de uma funcionária da rede com algo que eu achava muito importante.

Hoje, dia 14, voltei à loja para comprar mais algumas coisas (a gente sempre esquece algo!). Surpreendido, vi que o cartaz pedindo assinaturas de apoio à PEC havia sumido da parede próxima à entrada da loja.


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quinta-feira, agosto 14, 2008

Tira manchas

De torturas e punições

De torturas e punições

SÃO PAULO - Há duas confusões, que parecem pura má-fé, na equiparação que setores das Forças Armadas estão fazendo entre a ação dos que pegaram em armas contra o regime militar e a ação dos militares que os reprimiram.
Primeiro, agentes do Estado não podem recorrer à delinqüência para reprimir delinqüência de inimigos. Matar em combate é uma coisa, matar (ou torturar) quem já está preso é borrar a fronteira entre a civilização e a barbárie, tal como ocorre quando, em nome de um projeto político, se matam ou torturam não-combatentes.
A segunda -e principal confusão, porque não é conceitual, mas factual- trata da impunidade. Praticamente todos os que pegaram em armas contra a ditadura foram punidos. Punidos foram muitos que nem pegaram em armas (vide o caso do jornalista Vladimir Herzog, assassinado nos porões do aparelho repressivo, mesmo não tendo aderido à luta armada).
Alguns oposicionistas foram punidos no marco da lei, ainda que certas leis repressivas fossem ilegítimas, porque editadas por um governo não surgido do voto livre dos cidadãos. Mas um punhado deles foi punido muito além da lei, com assassinatos, torturas (inclusive de parentes não envolvidos na luta), desaparecimentos (caso de Rubens Paiva, que nada tinha a ver com a luta armada), banimento e por aí vai.
Do lado oposto, no entanto, ninguém foi punido. Muitos, ao contrário, foram promovidos. A impunidade deu margem, por exemplo, ao atentado do Riocentro, em que só um acidente de trabalho impediu uma tragédia inenarrável (a bomba explodiu no colo do militar que ia atacar um show musical supostamente de esquerda).
Ser contra ou a favor de punir agora torturadores do passado é questão de opinião. Mas é inquestionável que os torturados foram punidos, e os torturadores, não.

Texto de Clóvis Rossi, na Folha de São Paulo, de 12 de agosto de 2008.


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