segunda-feira, junho 30, 2008

Morreu Dona Ruth (II)...

E FHC chorou.
E o meu filho disse que ficou comovido com o choro de FHC.
Eu não diria que fiquei comovido com o choro de FHC, mas certamente fiquei tocado.
E o presidente Lula esteve no velório de Dona Ruth, e abraçou FHC. Assim são os homens, não? Se tornam amigos por algum motivo, se afastam por outros. Às vezes, algum evento os une novamente.
E, citando um lugar comum, a morte a todos busca, e a todos nivela. E a morte de um ser querido, a todos transtorna.

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Morreu Dona Ruth...

O comentário é meio atrasado.
Na semana passada faleceu Dona Ruth Cardoso, mulher do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
Não tenho, tive um afeto especial pela figura de Dona Ruth, mas a morte mais ou menos repentina dela me chocou um pouco. Na minha opinião, foi a mais notável primeira-dama que o país teve desde que me conheço por gente. E me conheço por gente, quer dizer que a primeira primeira-dama que eu soube que existia foi Dona Lucy Geisel. Depois tivemos a Sra. Figueiredo, a Sra. Sarney, a Dona Rosane Collor, Dona Ruth, e agora Dona Marisa.
Dona Ruth tinha certa independência intelectual, e chegou a causar certo constrangimento no início da campanha de seu marido à Presidência da República, quando comentou algo como "é duro se aliar com o PFL, que tem o Antônio Carlos Magalhães como membro, mas, pelo menos tem o Gustavo Krause".
Após o constrangimento de início de campanha, superou com aparente estoicismo, a campanha e o fato de se tornar "primeira-dama".
Pelo que pude ver, assim, de longe, uma grande mulher.

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Atualização de Comentários

Este blogueiro esteve atualizando os comentários neste final de semana. Fazia 3 meses que não fazia isto (fazia, fazia, ...).
O que é atualizar comentários? É ir olhando os comentários feitos no blog, e ir respondendo àqueles que não foram respondidos na época em que foram feitos. Assim, se você achava que este blogueiro não lhe dava atenção, olhe de novo, e verifique que normalmente há uma resposta para aquilo que você comentou, nem que tenha sido para dizer "ok", "certo", "então tá", o famoso "ismailei" (ou, se preferir, "smile") - aquele ajuntamento de dois pontos com aspa fechada formando um "sorrisinho" - :) , ou mesmo um "visto".
Está por aí. Confira!

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domingo, junho 29, 2008

A ditadura das trevas

A ditadura das trevas

Juan Jesús Aznárez

Um pequeno barco de tripulação pirata atracou, no final de janeiro, junto ao quebra-mar de Bata, bem perto de um banco na segunda maior cidade da Guiné Equatorial, o novo centro petrolífero da África. Dez homens fortemente armados desceram à terra, correram até o banco com manobras de comandos e dominaram os vigilantes e os clientes sem encontrar resistência. Tudo aconteceu no meio da manhã. "Foram atraídos pelo dinheiro do petróleo," imagina um comerciante, que soube da evolução do assalto por um amigo que ficou refém.

Um helicóptero do Exército perseguiu os atacantes, mas foi obrigado a retroceder, ao receber uma rajada de tiros vinda do pequeno barco, e não pôde responder, pois os policiais com metralhadoras tinham esquecido de colocar munição. Nada se publicou sobre aquele audacioso assalto e nada se sabe sobre o quanto foi roubado.

A agreste ex-colônia espanhola (1778-1968) foi cobiçada por piratas, mercenários, comerciantes e governos, desde que os barcos negreiros do século XVI zarparam de seus portos com os bantos acorrentados uns aos outros, escravos nas plantações americanas das potências coloniais. A Guiné Equatorial perdeu então boa parte de sua população, abasteceu de madeira, cacau e palmeiras a Espanha e, desde os descobrimentos da Exxon Móbil em 1999, o petróleo bruto flui graças aos cargueiros das multinacionais, que o transporta às suas refinarias do Texas ou da China. Terceiro produtor africano depois da Nigéria e de Angola, o antigo porto escravista tem uma arrecadação de 3 bilhões de euros anuais, cerca de 25% dos lucros petrolíferos, e sua economia cresce no vertiginoso ritmo de 20%.

O PIB per capita, que passou dos 430 euros anuais para 17.000 euros, esconde a dramática realidade: 80% dos 600 mil habitantes da Guiné Equatorial vivem com menos de 200 euros mensais, e sofre com as pandemias, insalubridade, favelas e frustração. A oligarquia dominante controla a riqueza de um país coberto de florestas ricas em matérias-primas, estuários e praias fantásticas e minas ainda não exploradas.

"O petróleo fez com que os países que antes nos apoiavam agora se esqueçam de nós, mas enquanto isso a ditadura se consolida e a família presidencial continua na opulência," denuncia o deputado da Convergência para a Democracia Social (CDS), Plácido Micó, simbólico opositor em um país sem democracia nem justiça eqüitativa em vigor, desde 3 de agosto de 1979, dominado por Teodoro Obiang, de 66 anos. Foi nessa ocasião que o ex-tenente-coronel, formado na Academia de Zaragoza, derrotou seu tio, o ditador Francisco Macías, posteriormente fuzilado, e ocupou seu trono na capital, Malabo.

A Espanha e outros países aplaudiram o desaparecimento do primeiro tirano da independência, protestaram contra as arbitrariedades do novo ditador, mas não tardaram em baixar o tom, quase emudecendo, quando seus poços começaram a bombear e o preço do barril explodiu nos mercados internacionais. Temeroso dos apetites territoriais dos vizinhos Gabão e Camarões, e dos ataques inesperados de mercenários, Teodoro Obiang comprou a proteção dos Estados Unidos em troca da parte do leão na exploração dos multibilionários hidrocarbonetos. O Terceiro Mundo costumava exigir 50% dos lucros de seus recursos naturais, mas os guinéus-equatorianos conformaram-se com 25%, segundo os dados disponíveis. Houston assinou embaixo.

As espanholas Repsol e Unión Fenosa brigam agora por um mercado de 810 mil barris diários, 2 bilhões mais em reservas comprovadas, e ricas jazidas de gás. As norte-americanas Exxon - com 70% da produção total, Maratón, Amerada Hess, Chevron, Vanco, Noble, Tritón e Ocean exploram os melhores poços do Eldorado africano, enquanto companhias da França, Reino Unido, Malásia, África do Sul, Japão ou China completam a relação de convidados ao bacanal de perfuração. "Obiang não precisa preocupar-se muito com os direitos humanos, tendo amigos tão influentes," ironiza um empresário argentino em um dos bares da tórrida capital africana. Não lhe falta razão: os Estados Unidos receberão do Golfo da Guiné, em 2015, 25% do óleo bruto do qual necessitam, contra os 15% importados atualmente, segundo cálculos do Pentágono. Como o portenho defensor dos direitos humanos é um homem irritável, reage diante da tranqüilidade do camareiro: "Estão começando a parecer os venezuelanos. Esperam que o petróleo lhes solucione a vida sem trabalhar."

Os contratos associados aos hidrocarbonetos e à infra-estrutura atraíram técnicos franceses, alemães, japoneses, portugueses, russos, chineses ou espanhóis, que se instalam nas limitadas acomodações de hotéis de uma cidade de 70 mil habitantes, decadente e plana, colonial na arquitetura de seu centro histórico. As estropiadas frotas de táxis das principais cidades da Guiné, sem símbolos que as identifiquem como tais, e o esquadrão de particulares ao volante de veículos de turismo japoneses da década de 1980 convivem com as modernas vans da nova plutocracia em uma agitada anarquia na circulação.

Numerosos veículos não têm placas e ninguém usa cintos de segurança. Isso não tem grande importância. O que chama atenção é a maciça entrada de financiamentos e o "boom" de construção, com as misturadoras de cimento e guindastes, que restauram os edifícios coloniais, levantam blocos de apartamentos nos bairros emergentes ou embelezam o cais de Bata. Os trabalhadores da construção civil abrem sulcos e canalizações, entram na selva para a construção de pontes e asfaltamento das estradas e abrem caminhos até os campos florestais e os trabalhos de mineração.

A más línguas atribuem o bom traçado da rodovia que vai de Bata a Mongomo ao seu caráter de cidade originária do clã esangui, que detém o aparato estatal, da etnia fang, à qual pertencem o presidente e 72% dos habitantes. A etnia agrupa 67 clãs. Quase tudo é desconcertante no tropical enclave negro: 45% dos habitantes de um país abençoado e também castigado pela descoberta do petróleo têm menos de 15 anos, e a expectativa de vida está em torno dos 50 anos.

"O governo está gastando bastante em construção, embora a saúde, a educação e a atenção social sejam um desastre", observa um empresário espanhol que há mais de dez anos está no país. As centenas de engenheiros, executivos e técnicos norte-americanos que trabalham nas plataformas marítimas vivem alheias a essa precariedade nacional, de 50% da população sem água corrente, 19% de crianças desnutridas, de 3,2% de pessoas infectadas pelo vírus da aids, ao maciço abandono escolar e outros indicadores destacados pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).

O regimento de perfuradores norte-americanos está cumprindo as ordens do subsecretário de Assuntos Africanos, Walter Kansteiner, pouco depois dos atentados de 11 de setembro do ano de 2001, durante a ofensiva da guerra do Iraque e do súbito encarecimento do óleo bruto. "Tragam esse petróleo (o da Guiné) para casa", disse supostamente o alto funcionário.

O petróleo bruto já viajava para o Texas desde a primeira perfuração no poço Zafiro, situado em alto mar, a 20 minutos por helicóptero, desde Malabo, na ilha de Bioko. Os outros barris são levados diariamente do território continental. As remessas da encomenda patriótica viajam regularmente para casa no Houston Express, um vôo de 15 horas entre Malabo e a metrópole da petroquímica. "Isso é muito fatigante e é preciso ter muito cuidado com as farras e as mulheres, porque há muita aids", diz um norte-americano de origem filipina.

Mais de 3.000 trabalhadores petroleiros moram em uma espécie de fortaleza na península de Punta Europa, abastecida por modernos supermercados, lojas, wi-fi e serviços próprios. As residências dos diplomatas e da burguesia local evitam casas pobres e os quiosques dos arredores, que oferecem as quinquilharias próprias do subdesenvolvimento: peças de reposição, pilhas, brincos, sapatos, camisetas, ventiladores, ou Rolex a dez euros.

Mas algo respinga sobre o maná negro. Os operários locais ou imigrantes das plataformas recebem salários que oscilam entre os 500 e 700 euros mensais, e outros trabalhadores desfrutam dos negócios relacionados com a extração de petróleo. Esse pelotão compra nos supermercados Martinez Hermanos, espanhóis, e nas lojas de empreendedores libaneses, importadores de produtos de primeira necessidade a preços que aqui são elevados: o litro de leite e a cerveja, um euro e a pasta dental a 2,50.

A carestia, os exíguos salários, o déficit habitacional e hospitalar, a lamentável qualidade da educação, o abandono social, no geral, continuam presentes, apesar dos multimilionários lucros e a histórica cooperação da Espanha. O trabalho dos claretianos sempre foi abnegado e o Centro Cultural Espanhol de Bata é um oásis, mas a pobreza aflige, no porto de Malabo, aos estivadores dos navios mercantes carregados em atracadores europeus ou asiáticos. Ter mais de um emprego é quase obrigatório, apesar do discurso triunfalista do governo, cuja retórica menospreza os compromissos com a modernização e o bem-estar. O progresso avança a passo de tartaruga, enquanto a corrupção, galopante, se abate como a peste sobre o Kuait africano e sobre todo o continente negro.

A Transparência Internacional colocou a Guiné Equatorial em 151º lugar na lista negra dos 163 países mais corruptos, ao lado da Costa do Marfim, Camboja, Belarus e Uzbequistão. Mas a lamentável estatística não interessa a todos.

- Por favor, onde posso comprar uma camisa como a sua?

O senhor da camisa estampada com os retratos do presidente Teodoro Obiang e de sua esposa, em tamanho gigante, responde de mau humor da cadeira onde está, na entrada de uma loja onde se faz alisamento de cabelos e manicure. O cidadão, partidário do governo, coloca os pés em uma bacia, enquanto uma jovem realiza uma cuidadosa pedicura. Isso lhe custará meio euro.

- Comprei o tecido e mandei imprimir as fotografias. Você pode fazer o mesmo.

- O senhor deve admirar muito o presidente.

- Sim. Ele trouxe muita prosperidade.

- Mas dizem que ele é muito rico e que o dinheiro do petróleo não chega até as pessoas.

- Quem foi que lhe disse isso?

- Por aí, mas estou certo de que mentiram para mim.

- Tudo isso é mentira. E você, o que veio fazer em nosso país?

O transeunte suspeito chegou à Guiné Equatorial com o visto de turista e o interesse pessoal e profissional pela história e pela revolução petrolífera de um país onde há abundância de metais preciosos e madeiras nobres, coberto por 2.200.000 hectares de densas florestas, das quais foram exploradas apenas 400 mil. O intrometido branco visitou cidades extremamente quentes, sem bancas de jornal, nem livrarias, nem debates; sem sindicatos, nem poderes independentes: um país católico e de religiões tribais, anestesiado por uma publicação mensal, três emissoras de FM estatais e um canal de televisão que se limita a transmitir propaganda do governo e programas folclóricos ou sobre temas agropecuários. Reinam nas telas Pipi Calzaslargas e Heidi, a menina dos Alpes suíços. Os vizinhos com parabólicas livram-se da desgraça.

O atrevimento do senhor da camisa, os silêncios e os esquivos raciocínios ouvidos nas ruas, lojas e mercados de Malabo e Bata atestam o temor de falar mal do regime e o compreensível analfabetismo político de uma sociedade distanciada do mundo da informação e da liberdade. As suculentas vantagens petrolíferas atiçaram a corrupção e o desencanto em uma população onde tanto abundam os telefones celulares, quanto é primitiva a vida nas comunidades de pescadores e caçadores que moram ao lado de veios de mercúrio e urânio, dos gorilas, crocodilos e do morcego da língua comprida.

Os tesouros naturais de um país onerado pelas imoralidades próprias da descolonização explicam a atitude dos Estados Unidos, França ou Espanha, e o golpe em 2004 dos 60 mercenários sul-africanos financiados por negociantes e políticos, vários deles britânicos, interessados todos nos lucros do petróleo. A fracassada tentativa de golpe demonstrou que o monopólio norte-americano estava sendo ameaçado. A Casa Branca apressou-se em fazer uma advertência contra novas aventuras. "Daí vêm a acolhida, há dois anos, do presidente Bush a Obiang, a quem chamou de amigo dos EUA", segundo destacou o professor suíço Max Lininger-Goumaz.

E a fortuna do presidente Obiang, será tão valiosa como publicou a revista Forbes há dois anos, 600 milhões de euros? Os desafetos de Obiang a multiplicaram ao infinito. "Tudo é dele. Esse bloco de apartamentos é de um filho; essa granja, de sua nora; esse hotel, de um cunhado e Teodorín passeava com uma Ferrari... Por favor, fale baixo e não tire fotografias", ele suplica ao acompanhante que teme acabar com seu esqueleto na prisão de Black Beach, na capital, da qual Obiang foi diretor quando conspirava contra seu tio Papá Macías. O executado antecessor do atual ditador espantou o mundo ao assassinar ou enviar para o exílio dezenas de milhares de pessoas da etnia bubi e crucificar vários opositores. O rude sanguinário, bem conhecido pelos espiões do almirante Carrero Blanco, glorificava Hitler, "o salvador da África", ante o corpo diplomático.

O patrimônio de Teodoro Obiang, protegido por uma força de guarda-costas marroquinos, recomendada pela monarquia de Rabat, não foi tema apenas da revista norte-americana que publica a lista dos homens mais ricos do mundo. O Sub-comitê Permanente de Investigações do Senado dos Estados Unidos rastreou mais a fundo as contas familiares, quando foi alertado sobre a maciça lavagem de dinheiro no setor de serviços financeiros. Os guardiões do sub-comitê demonstraram há quatro anos que o Banco Riggs permitiu que Teodoro Obiang e seus familiares exercessem o nebuloso manejo de mais de US$ 600 milhões, depositados em 60 contas e depósitos em dinheiro vivo. Quase todos correspondiam a pagamentos da Exxon Móbil e da Maratón, que depois foram transferidos para contas do banco dos Países da África Central.

Pelo menos metade dessas contas funcionavam como contas de pessoas física em nome do presidente, sua esposa, seu irmão, seu cunhado, seus filhos homens ou sua filha. A família comprou casas nos Estados Unidos, na Espanha e em outros países e seus gastos foram muito elevados. O banco os ajudou a criar empresas, fantasmas ou reais, e a construtora Abayak, importadora de materiais de construção e sócia de operações imobiliárias, respondia diretamente ao casal presidencial. "Essa empresa entrou com 15% em uma filial da Exxon Móbil denominada Móbil Oil Ecuatorial Guinea," revelou o informe.

Outras revelações saíram em jornais e confirmaram a inclinação de Teodoro Nguema Obiang, Teodorin, filho do presidente, à prodigalidade, às marcas de moda e aos carros de luxo. O jovem, ministro da Agricultura e Bosques, gastou cerca de 1,25 milhão de euros em hotéis, automóveis e festas, durante um fim de semana na Cidade do Cabo, segundo o jornal sul-africano The Star. No dia 20 de julho de 2005, o jornal Cape Times revelou outras das aquisições do presidente da Associação Filho de Obiang: um Lamborghini esportivo de 380.000 euros, e dois Bentley,modelos Arnage e Mulliner,por 800.000 euros. O hedonismo do filho preferido, dono da Televisão Aponga, continuou um ano mais tarde, com o desembolso de 600.000 euros, pelo aluguel do soberbo iate do então quinto homem mais rico do mundo, Paul Allen, co-fundador da Microsoft. Os gastos em bens de consumo foram tão difíceis de ocultar como as tramóias que engordaram as contas bancárias.

Uma empresa de equipamentos controlada pelo ditador e dois de seus filhos, Otong AS, recebeu US$ 11 milhões em dinheiro vivo. Funcionários de confiança de Obiang entregavam o dinheiro em maletas, ao gestor norte-americano das contas. O grosso vinha em pacotes plastificados, que não eram abertos, e o resto era contado em máquinas de alta velocidade. Para simplificar o processo de entrada, recorreu-se à pesagem dos pacotes. Um milhão de dólares em notas de cem dólares? Nove quilos e 700 gramas. Ninguém indagava qual a origem dos dólares porque isso era conhecido de todos. As pesquisas norte-americanas chegaram ao Santander que recebeu, entre 2000 e 2003, 60 transferências do Banco Riggs, no valor de US$ 26,4 milhões. Isso foi parar na conta da entidade espanhola da empresa Kalunga, do presidente. O Senado dos Estados Unidos pediu informações ao Santander, mas o banco se negou a dá-las, escudando-se na legislação espanhola.

Tampouco Obiang quis informar ao sub-comitê sobre a procedência de seus lucros, títulos e movimentação contábil. O Riggs encerrou todas as suas contas para evitar males maiores. Nada que não se pudesse contornar, pois seu principal cliente abriu novas contas no Banco dos Países da África Central, "de onde controla seus vastos bens", segundo fontes bancárias espanholas. O regime manipulou "cerca de 16 bilhões de euros, 80% dos quais vindos do petróleo, mas 80% da população vive na miséria e apenas 5% desfrutam de um nível de vida superior ao dos suíços", segundo afirma Armengol Engonga, porta-voz do denominado Governo da Guiné Equatorial no Exílio, com sede em Madri, na ausência de Severo Moto, preso da Espanha por sua suposta participação no golpe contra Obiang. O ex-embaixador norte-americano em Malabo (2004-2006), R. Niels Marquardt, não conseguiu esconder a verdade sobre a ex-colônia,em declarações à Gaceta de Guinea Ecuatorial, pró-governo, editada na capital espanhola: passou de pobre a rico, disse o diplomata, "mas muitos habitantes do país não têm mudanças em sua vida cotidiana, como nos setores de educação e de saúde."

Quando a Guiné era pobre, mas potencialmente milionária, espanhóis madrugadores urdiram uma trama para fazer negócios. "A assinatura de todos os contratos passava por ele, assinava tudo e diziam que era preciso tomar cuidado com as mulheres porque ele gostava de todas", lembra uma pessoa que viveu aqueles tempos. "Então, alguns empresários viajavam com prostitutas. Imagine-se o restante." O protagonista de uma das armações comentou com Armengol Engonga, há uns 15 anos, que "conhecendo-se o personagem, no final já levávamos profissionais e quanto mais bonitas, melhor. Nos bailes e nas festas que dava, Obiang se interessava por todas. E assim eram firmados os contratos e as concessões".

- Quantos filhos tem o presidente?

- Sessenta ou setenta.

- Estou falando sério.

- E eu também. Ele se considera proprietário do país e portanto, todas as mulheres lhe pertencem, todas as propriedades lhe pertencem e todos os recursos naturais lhe pertencem.

- E como governo?

- Ele tem a noção de Estado. É uma tribo que governa na Guiné, e com os mecanismos da tribo, em uma sociedade de analfabetos funcionais. E depois chegam os deputados espanhóis saudando-o ou rindo de suas gracinhas, querendo que acreditemos que é dia quando é noite. Seu comportamento hipoteca todo o futuro de um povo.

Os exilados mencionam com críticas a visita à Guiné Equatorial dos parlamentares do PSOE, Fátima Aburto; do Partido Popular, Francesc Ricomá e da Convergência e União, Jordi Xuclá,em uma representação de seus respectivos grupos,para observar as eleições legislativas e municipais do dia 4 de maio passado. Em um comunicado conjunto afirmam que sua presença representou "um novo passo no processo de democratização da Guiné Equatorial e um avanço em matéria de garantias eleitorais quanto às eleições realizadas em 2004, que deverá ser melhorado e completado em datas futuras." A iniciativa da viagem foi do Ministério das Relações Exteriores, cuja embaixada em Malabo, chefiada por Javier Sangro de Liniers, parece estar em sintonia com a desfaçatez de muitos guinéus-equatorianos. "O embaixador, que precisou sair para um jantar, estará encantado em recebê-lo, mas não faremos declarações," reitera o conselheiro, Javier Irazoqui. "Não quero declarações," expliquei. "Quero que conversemos um pouco, totalmente "off the record" (confidencialmente), sobre como está o país." A resposta do jovem e obediente diplomático foi patética: "Você pode se informar na internet da embaixada."

A conciliadora aproximação da Espanha com a ditadura, obviamente encaminhada para facilitar os negócios espanhóis, deixa assombrado o diretor da Associação para a Solidariedade Democrática com a Guiné Equatorial (ASODEGUE), o espanhol Adolfo Fernández Marugan. "Os três deputados reproduzem a opinião do Ministério das Relações Exteriores, que há anos diz que a Guiné está mudando. O que aconteceu no dia 4 foi uma encenação. Os três observaram as eleições sob a ótica do partido oficial, afirma o especialista. "A situação da Espanha é um mistério. Não fez nada em relação ao petróleo. Não tem nada. Não houve nem uma única concessão para a Repsol e a Unión Fenosa só firmou algo para participar da ampliação de uma fábrica de gás natural. Mas sim, a Espanha compra petróleo do país." "Eu me pergunto," disse Fernández Marugán: será que o petróleo da Guiné é tão imprescindível para a economia espanhola a ponto de transtornar a política da Espanha em relação a esse país? Isso é o que se deve avaliar."

A Repsol ambiciona por novas participações em prospecção, e a Unión Fenosa participará, junto do grupo alemão EON, da construção de uma segunda usina de liquefação em Bioko, e em três gasodutos, com um investimento de 2,035 bilhões de euros. A boa condução de tais projetos passa pela amistosa saudação a Teodoro Obiang, que sempre ganha as eleições por desistência do adversário. Seu movimento, o Partido Democrático da Guiné Equatorial (PDGE) tem coligações com nove outras formações amigas, e venceu nas eleições de 4 de maio com 99% dos votos. Ficou com 99 dos 100 assentos na Câmara dos Representantes do povo, as 36 prefeituras em jogo e com quase todos os cargos de vereador, menos três. "O PDGE ganhou de forma tão esmagadora porque é a única alternativa que resolve os problemas do país", segundo seu secretário geral, Filiberto Ntutumu. Para o porta-voz governamental, "o pluralismo nacional é válido, já que não existe um modelo único de democracia."

Obiang é mais taxativo: "O ensaio democrático da Guiné Equatorial, teoria que eu inventei, é uma realidade." O historiador Iñaki Gorozpe também é: o ditador "age como amo e senhor do país" e as eleições não passaram de uma paródia. "Aqui não há democracia, mas sim o contrário. E aqueles que qualificam as eleições de "avanço democrático" (referindo-se aos três parlamentares espanhóis) estão enganando a si mesmos," ressalta o unido deputado da oposição, Plácido Micó. "Houve mais intimidações, mais violência e mais violações das normas eleitorais que nunca."

Engendrando suas artimanhas desde 1979, incluindo a Embaixada e os jornalistas espanhóis que quiseram cobrir as eleições de 4 de maio, aos quais se prometeu um visto que nunca chegou, a Guiné Equatorial permanece ancorada ao totalitarismo e repressão, segundo a Anistia Internacional. Tudo indica que o "leopardismo" do dia 4 de maio, o formato da campanha e dos colégios eleitorais, as aparências, em resumo, são concessões aos governos ocidentais que precisam de avanços para poder defender a moralidade de suas políticas de Estado. O discurso de campanha de Teodoro Obiang estabeleceu os limites de sua democracia: "Pluralismo sim, mas sempre dentro do programa político do PDGE." Plácido Micó admite sua impotência: "É preciso viver aqui para compreender isso. Um pobre jovem interventor de meu partido pode assistir ao escrutínio, mas depois não recebe o registro das votações," explica. "Se ele fica com o presidente da mesa, do partido no poder, ele faz o que quiser com o registro. E se apresentamos um recurso, responde o ministro, porque ele não se reporta à Junta Eleitoral Nacional. E outras artimanhas. Manipulam à sua livre vontade. Essas foram as piores eleições."

Anoitece em Malabo e na casa de Antonio, que não se interessa pelas eleições. O gentil guinéu-equatoriano, com esposa e cinco filhos, carrega uma certa visão fatalista da vida. "Não posso me queixar. Ganho para minhas necessidades, mas tenho medo que algum de meus filhos fique doente. Nos hospitais é preciso levar até o travesseiro. E os remédios, é preciso comprá-los nas farmácias, e são muito caros." As crianças o rodeiam enquanto ele fala, sentado na despojada sala da casa. Antonio mostra o certificado que recebeu por ter votado no dia 4 de maio, com seu nome, sobrenome, endereço e selo oficial. "Eu o levo sempre no carro, porque podem pedi-lo nas barreiras do exército. Quem não o tiver pode levar uma multa, ser repreendido ou será preciso dar dinheiro a eles. Pode-se até perder um documento e se você for funcionário público, o trabalho. Na cidade isso não acontece. Só com quem sai em direção às rodovias." Seu agonizante Toyota Carina transporta crianças para colégios particulares em uma espécie de acerto de 400 euros. Não é ruim. "O que mais me dá raiva é que o petróleo vai acabar e não receberemos nada. Antes vivíamos melhor. Eu mandava minha mulher ao mercado e ainda sobrava dinheiro. O outro presidente era melhor." Que outro? Macías? "Sim Macías. Aquele não tocou no petróleo, embora soubesse que havia muito." O tirano Francisco Macías é a referência de Antonio, porque não existem outras. Nem para ele, nem para seus pais, nem para seus avós. Nunca houve democracia na Guiné Equatorial, que apenas conheceu o primitivismo tribal, o açoite da colônia e dos ditadores da independência. São onze da noite. Uma lona militar cobre o carro de combate estacionado na entrada de um hotel francês com quartos sem luxo, a 300 euros. Coisas do petróleo e do capitalismo selvagem.

Tradução: Claudia Dall'Antonia

Texto do El País, no UOL.

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sexta-feira, junho 27, 2008

Para uma crítica da teoria crítica

Para uma crítica da teoria crítica

Moralismo e lamúria aproximam a esquerda do pensamento conservador

UM PEQUENO teste para começar.
Leia atentamente as considerações abaixo e depois escolha o caso específico a que elas se aplicam. "No hipercapitalismo contemporâneo, em que tudo se reduz à forma da mercadoria, desaparecem os laços de solidariedade entre os indivíduos. O consumismo predomina em tudo, e com isso a busca imediata do prazer, maquinal e frenético, tem como efeito a desconsideração pelo Outro, reduzido à condição de mero objeto. O futuro deixa de ter sentido num mundo sem utopias, e os ideais coletivos são desprezados."
O trecho comenta (escolha a alternativa correta): A) Os comícios com sorteios de carro no Primeiro de Maio da Força Sindical.
B) A atitude dos plantadores de arroz com relação aos índios da Amazônia.
C) O mau desempenho da seleção brasileira de futebol nos últimos jogos.
D) O sucesso dos reality shows.
E) O assassinato da menina Isabella Nardoni.
Se você assinalou qualquer uma das alternativas, acertou. As considerações "críticas" sobre capitalismo, individualismo e consumismo, feitas a partir de um ponto de vista de esquerda, aplicam-se a qualquer um dos fenômenos que enumerei.
Mas podemos continuar o teste utilizando um vocabulário conservador. Examine o próximo trecho. "A ausência de responsabilidade e disciplina é característica do homem moderno. As falsas promessas de felicidade, difundidas a partir do século 18, nada mais criaram do que um vazio espiritual, incapaz de enfrentar o conteúdo essencialmente trágico da experiência humana. O materialismo mais grosseiro toma o lugar antes ocupado pelos valores do Sagrado, como a Família, a Vida, a Tradição, o Dever."
Desnecessário dizer que essas considerações, igualmente "críticas", mas a partir de um ponto de vista de direita, também se aplicam aos comícios da Força Sindical, à cobiça do agronegócio, ao desleixo dos craques canarinhos, ao "BBB" e ao caso Nardoni.
Claro, dirá o leitor: tanto esquerdistas quanto ultraconservadores sempre foram focos de resistência à mentalidade capitalista liberal.
O problema, a meu ver, é que nunca os discursos foram tão parecidos.
A velha lamúria da extrema direita católica, que parecia mais ou menos condenada ao esquecimento, ganha hoje em dia ares de novidade: é que muita gente já se cansou do vocabulário de esquerda.
Mas tudo se resume, a meu ver, a uma troca de vocabulário. No fundo, a atitude da esquerda, quando se exprime num tipo de crítica como a que reproduzi, tende a ser tão moralista quanto a dos teóricos conservadores.
Como foi que as coisas chegaram a esse ponto? É possível arriscar uma teoria a esse respeito.
Há coisa de 30 ou 50 anos, todas as condenações de esquerda ao consumismo, à destruição da natureza, à injustiça social, à desordem urbana, ao mundo contemporâneo em geral, tinham um horizonte muito claro: só uma mudança profunda na sociedade poderá solucionar esse conjunto de mazelas e misérias. Continua-se, com todos os motivos aliás, a desgostar do mundo contemporâneo. Mas, eliminada a perspectiva de revolucioná-lo, a crítica pode facilmente passar a ser uma simples lamúria.
Faltaria, então, recuperar a idéia de Revolução? Nunca fui entusiasta do termo e menos ainda das realidades que trazia consigo. Com revolução ou sem revolução, o pensamento de esquerda tinha entretanto outra característica.
É que a teoria não se contentava em relacionar episódios isolados a uma situação geral na sociedade (o "capitalismo tardio", a "pós-modernidade" etc.). Tratava-se de procurar, debaixo de tudo o que essa situação tem de cristalizado, as correntes que a tornam inviável.
O que pode salvar a esquerda da lamúria é procurar, segundo os velhíssimos ensinamentos de Marx, aquilo que há de diferente e de renovador, ou, vá lá a palavra, de "dialético", em cada manifestação dessa "mesma coisa" que tanto se quer criticar.
Sem ver a contradição, o que há de insustentável e de dialético na realidade, tudo (do caso Nardoni à crise do petróleo) se torna apenas "exemplo" de um esquema geral que é objeto de nosso asco; o caminho para o moralismo conservador se abrevia com isso. Sejamos mais dialéticos, companheiros.

Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo, de 25 de junho de 2008.

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quinta-feira, junho 26, 2008

O morango, o arroz e o individualismo

O arroz e o morango

SÃO PAULO - Interessante e instigante a tremenda coincidência de conceitos entre a entrevista que Sérgio Dávila fez com o jornalista norte-americano Paul Roberts e a conversa que tive com um executivo brasileiro, na semana passada, e rendeu o título "Não há arroz para todos". A propósito, fui liberado para dizer que o executivo é Fabio Barbosa, presidente do ABN-Amro e que está assumindo idêntica função no Santander.
A coincidência vai até o detalhe: Barbosa falou no arroz como símbolo de uma porção de produtos; Roberts usou o morango. Lembrou que seu filho acostumou-se a comer morango todos os 12 meses do ano, embora a fruta não esteja disponível o ano inteiro nos Estados Unidos. Com a ascensão à classe média de largas fatias da população de países como China, Índia e Brasil, não haverá qualidade e quantidade que chegue para tanta gente. "É o fim do morango 12 meses por ano", decretou na entrevista.
Pode-se olhar a coincidência com otimismo, por mostrar a tomada de consciência entre um executivo de banco que olha o mundo do 3º andar de uma avenida Paulista que é a quintessência do, digamos, "morango 12 meses por ano", e um jornalista do Estado de Washington, berço da Starbucks, a rede de cafeterias de um país que não produz café, mas o consome 12, até 13 meses por ano, se houvesse.
Dessa consciência emerge a seguinte frase de Roberts: "Não adianta falarmos que queremos que o governo, a ONU, seja quem for, resolva o problema, desde que nós possamos continuar tendo 2,5 carros, como é a média nos EUA, e comprando TV de tela de plasma".
De acordo, Roberts. De acordo, Fabio. Mas alguém aí acredita que uma fatia ponderável da humanidade aceitará deixar de comer morango 12 meses ao ano (e morango é apenas um símbolo de todo o resto) em plena era do triunfo avassalador do individualismo?

Texto de Clóvis Rossi, na Folha de São Paulo, de 24 de junho de 2008.

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Governadores recusam-se a submeter seu cargo ao referendo de Morales

Governadores recusam-se a submeter seu cargo ao referendo de Morales
Mandatários de quatro regiões desafiam a cartada do presidente boliviano


Jorge Marirrodriga
Em Tarija


Os governadores da "meia lua" boliviana - as quatro regiões que aprovaram de forma unilateral suas autonomias - não estão dispostos a aceitar o grande desafio convocado por Evo Morales para o próximo dia 10 de agosto na forma de um referendo revogatório. Reunidos na segunda-feira em Tarija, com o governador de Cochabamba, os líderes de Santa Cruz, Beni, Pando e Tarija colocaram em dúvida a participação de seus territórios na consulta sobre a qual se ampara Morales, para demonstrar que continua tendo o apoio das urnas e tem legitimidade para levar a cabo a profunda reforma institucional proposta na nova Constituição, ainda não ratificada.

Morales respondeu fazendo um apelo às bases do Movimento ao Socialismo (MaS) para que garantam a realização da votação em todo território nacional. O presidente boliviano até agora optou por aceitar o inevitável e não se opor, na prática, à realização dos quatro referendos consecutivos por autonomia, apesar de considerá-los ilegais e separatistas, já que o governo central é o único com legitimidade para convocar os cidadãos às urnas. Mas não pode permitir que a consulta crucial de agosto não seja realizada em mais da metade do território boliviano. Na prática, o novo desafio dos defensores da autonomia e a resposta do governo elevam em mais um grau a tensão entre duas visões do país totalmente contrárias e sem perspectivas até o momento, de que se chegue a um acordo.
As províncias rebeldes criaram um novo órgão: o Conselho Nacional de Defesa da Democracia e querem que Morales abra mão da consulta para firmar em troca um acordo de reconciliação nacional que reconheça os textos aprovados unilateralmente em seus respectivos territórios. O conselho de reuniu na segunda-feira em Tarija onde menos de 24 horas antes se aprovou por 80% um estatuto de autonomia embora com elevada abstenção, que oscila em torno dos 30%, segundo as autoridades locais e os 60%, defendidos pelo governo central. O presidente boliviano considera os governadores que formam o Conselho como representantes das oligarquias locais e ameaçou recorrer à "pressão social" contra eles. Pela primeira vez, desde que se desencadeou o conflito pela autonomia que tem marcado seu mandato, Morales joga com vantagem. Para ser derrotado,o presidente precisaria ter contra si uma quantidade de votos maior do que a que o elegeu. Dado que ele alcança 54% - uma das maiores percentagens jamais registradas - é improvável que venha a perder na consulta. Além disso, ele obrigou a participar do jogo os governadores das nove províncias do país, que deverão submeter-se ao veredicto popular em um referendo que promete ter participação maciça. "A votação foi pedida por pessoas que nada têm a ver com a minha administração", explicava o governador de Tarija, Mario Cossío, que também declarou "não ter medo" da convocação. De sua parte, Leopoldo Fernández, governador de Pando, disse que o referendo revogatório "não convém a ninguém porque não soluciona nada". Para o governo, essas alegações são um inequívoco sinal de medo de derrota, da parte dos governadores rebeldes. "Eles já sabem que perderão no dia 10 de agosto", ressaltou o vice-ministro da Justiça, Wilfredo Chávez.

Com uma vitória nas mãos, Morales terá luz verde para retomar a aprovação da controvertida Constituição acatada em dezembro passado no interior de um quartel e com a presença apenas dos deputados do Movimento ao Socialismo (MaS), o grupo do presidente. Para que entre em vigor, o texto - que consagra a revolução indigenista projetada por Morales - ainda precisa do apoio de um referendo popular e o mandatário quer chegar a essa outra consulta depois de uma vitória e não depois de uma série de votações que o desafiaram.

Tradução: Claudia Dall'Antonia
Texto do El País, no UOL.

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quarta-feira, junho 25, 2008

Tudo normal por aqui

Tudo normal por aqui

A "normalidade" se desmascara, revelando o poço sem fundo da violência e da barbárie

EM 29 de maio de 1942, pleno período da ocupação nazista, os judeus franceses passaram a ter de usar uma estrela amarela, "do tamanho da palma de uma mão com contorno em preto", na qual deveria estar escrita, "em letras pretas, a palavra JUDEU". Deveria ser "levada de forma bem visível no lado esquerdo do peito e costurada na roupa com força".
Em fins de junho, o senhor Raymond Berr, vice-presidente de uma grande indústria, é preso pelas autoridades numa rua de Paris. O inspetor de polícia liga para a família dele, explicando que nada teria acontecido se a estrela de Berr estivesse bem costurada.
Acontece que, em vez de costurá-la, a mulher do industrial tinha afixado a estrela com grampos e botões de pressão, para que ele pudesse usá-la em vários ternos. O inspetor acrescenta: "No campo de Drancy, as estrelas serão costuradas".
Drancy era o lugar para onde os judeus franceses eram levados, antes de embarcar para os trens a caminho de Auschwitz.
Quem conta o episódio da prisão é a filha de Raymond Berr, Hélène, num diário que está sendo publicado no Brasil pela editora Objetiva.
Os manuscritos ficaram muito tempo guardados; só em janeiro de 2008 foram lançados na França, com grande impacto. O dia-a-dia da ocupação nazista em Paris é registrado do ponto de vista de uma moça de 20 e poucos anos, bastante rica, que estuda literatura inglesa na Sorbonne e, com um grupo de amigos, reúne-se para tocar peças dos compositores Beethoven, Schubert e Bach ao violino.
O que mais aperta o coração, quando se lê "O Diário de Hélène Berr", é o fato de que sua autora só aos poucos vai tomando consciência das atrocidades que terminarão por vitimá-la.
Mesmo depois da notícia da prisão do pai, Hélène mantém suas atividades cotidianas. No dia 4 de julho, ela anota: "Dannecker [comandante da SS] ordenou a evacuação do hospital Rothschild. Todos os doentes e os recém-operados foram enviados para Drancy. Em qual estado? Com quais cuidados? É atroz.".
Logo em seguida, Hélène escreve: "Vieram Job e Breynaert. Job não quer saber de nada. Tocamos o Quinteto "A Truta". Muito bonito.".
Nesse ano de 1942, Hélène ainda está muito envolvida com seus problemas sentimentais; começa a apaixonar-se por um rapaz que, dali a alguns meses, decide abandonar Paris e ingressar na Resistência. Há leituras, piqueniques. O pai, cidadão influente, é libertado: não o levarão para Drancy; não, por enquanto.
A família teria ainda condições de fugir de Paris. Hélène acha que isso seria uma covardia, ou pelo menos uma falta de solidariedade com as demais vítimas da ocupação. Mas acrescenta: "Penso que há certo egoísmo em mim, pois todas as alegrias que experimentei estão concentradas nesta vida daqui".
Eis o que há de especialmente assustador no diário de Hélène Berr. A vida "normal", seus prazeres e rotinas, mantém-se em condições de absoluta excepcionalidade e horror.
Cada dia traz novidades hediondas, mas são poucos os que percebem a que cúmulo as coisas chegarão em breve; é como se a capacidade de toda pessoa para adaptar-se, evitando pensar no pior, e tocando a vida como dá, se revelasse decisiva para a ruína final.
Desconfiar da "normalidade", eis uma coisa que não estamos nunca preparados para fazer. E, quando a "normalidade" se desmascara de uma vez por todas, revelando o poço sem fundo da violência e da barbárie, já é tarde demais.
As deportações para os campos de extermínio começam a ser feitas. Aos poucos, Hélène se dá conta de um destino praticamente inevitável.
Cuida de crianças pequenas, cujos pais já foram levados para Auschwitz. Logo as crianças serão deportadas também. Ao mesmo tempo, Hélène continua lendo os poetas ingleses. Cita uma passagem de John Keats (1795-1821): "Esta mão viva, agora quente e capaz/ De apertar vigorosamente, iria, se se resfriasse/ no silêncio gélido do túmulo/ Tanto rondar os teus dias e gelar os teus sonhos noturnos/ que desejarias que teu coração secasse de todo o seu sangue/ Para que novamente corresse em minhas veias a vida rubra,/ E tranqüilizasse a tua consciência, vê: aqui está ela,/ Eu a estendo em tua direção".
Mais de 60 anos depois da morte de sua autora, o diário de Hélène Berr reaparece, vivo, em nossos tempos "normais"; é hora de segurá-lo em nossas mãos.

Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo, de 18 de junho de 2008.

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Oposição Incoerente e Encurralada

Incoerente, oposição foi encurralada

GUSTAVO PATU
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

A nova CPMF ainda pode ser derrubada no Congresso ou na Justiça, mas o governo já pode comemorar a vitória mais importante: como na campanha presidencial de 2006, conseguiu encurralar a oposição em sua própria fragilidade ideológica e programática.
Na falta de plataforma mais consistente, tucanos e democratas tentam se qualificar como defensores do contribuinte contra a escalada da carga tributária -iniciada, aliás, no governo FHC sustentado por ambos. Mas o passado até seria esquecido se os dois partidos estivessem de fato dispostos a assumir o complemento obrigatório da bandeira escolhida: o combate à contínua expansão do gasto público.
Logo após faturarem a extinção da CPMF no final do ano passado, PSDB e DEM embarcaram sem reservas no projeto que elevava em dezenas de bilhões de reais os gastos em saúde. Em parte, agiram rebocados pelos interesses dos parlamentares ligados ao setor; em parte, queriam criar um constrangimento político para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que seria obrigado a vetar o texto.
Com a contraproposta lulista de criar a CSS, a oposição foi levada, de um dia para o outro, do ataque à defesa. O máximo que pôde fazer, desde então, foi tentar retardar as votações na Câmara, enquanto era chamada de irresponsável pelos governistas por pretender aumentar gastos sem nomear as fontes de receita, e preferiu nem responder que o projeto era do senador acreano Tião Viana, do PT.
Enquanto criticam genericamente a "gastança" do governo, tucanos e pefelistas não se animam a votar contra nenhuma das principais propostas de aumento de despesas. Em silêncio, ajudaram a aprovar os reajustes do salário mínimo, as obras do PAC e todos os benefícios para o funcionalismo público. Já os petistas defendem a expansão dos gastos em voz alta e com plena convicção.
É a repetição da estratégia vitoriosa na última eleição presidenciável, quando Geraldo Alckmin teve de renegar em público todas as suas idéias para conter a expansão do Estado e de seus custos para a sociedade, enquanto Lula foi mais convincente, como era previsível, prometendo o continuísmo.
Qualquer que seja o destino da CSS, o Planalto já reassumiu o discurso de defesa da saúde e afastou o risco de um veto impopular antes das eleições municipais. Não há urgência nem real necessidade de aprovar o novo tributo -daqui para a frente, o que vier será lucro.

Da Folha de São Paulo, em 12 de junho de 2008.


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terça-feira, junho 24, 2008

Lei de Imigração da União Européia

Nova lei de imigração da UE: América do Sul prepara resposta conjunta contra a nova regra

Da Redação do El País

Os países sul-americanos reagiram na quinta-feira de forma unânime contra o conjunto de regras que determina a expulsão de imigrantes ilegais, aprovada na terça-feira pela União Européia, e estudam uma resposta conjunta que poderá ser firmada na reunião de cúpula do Mercosul, prevista para 1º de julho em Tucumán (Argentina).

Os protestos dos governos do Equador, Bolívia, Paraguai, Uruguai, Brasil, Argentina e Peru concordam nos mesmos pontos: a diretriz, dizem, é discriminatória e viola os direitos humanos e em particular, o direito à livre circulação. Todos lembram também das intensas relações migratórias que existem historicamente entre a Europa e a América.

O tom mais contundente foi adotado pelo presidente do Equador, Rafael Correa, que se referiu à decisão européia como "a diretriz da vergonha", mesmo termo empregado pelo boliviano Evo Morales. "Que pena que essa Europa resplandecente seja hoje um símbolo de contradições", disse Correa, que incentivará "uma frente regional" para responder a "essa barbaridade". Evo Morales havia proposto a exigência de visto para os europeus, mas na quinta-feira o vice-chanceler boliviano, Hugo Fernández, mostrou-se partidário de não "tomar decisões apressadas" e de "estudar medidas de acordo com os interesses bolivianos".

O governo brasileiro ressaltou que o preceito recém aprovado "contribui para criar uma percepção negativa da imigração". Também o ministério paraguaio das Relações Exteriores deplorou que se tenha "tornado crime o tema migratório", e disse que a diretiva "é uma incongruência nas intensas relações migratórias que a Europa e a América Latina souberam desenvolver ao longo de séculos". Também apelou para as relações históricas o ministro das Relações Exteriores do Peru, José Antonio García Belaúnde, ao afirmar que a nova norma "não condiz com a tradição européia". "A decisão deve ser revisada e formar parte de uma agenda de diálogo político entre Europa e a América Latina". Peru, Colômbia e Equador enviaram, em nome da Comunidade Andina, uma carta à UE para pedir "uma reflexão conjunta" sobre os efeitos da proposta de repatriação. O governo argentino rejeitou "o uso de conceitos tais como imigração legal e ilegal" e disse que a questão migratória "só poderá ser resolvida a partir do respeito aos direitos humanos e do incentivo ao desenvolvimento econômico e humano".

Tradução: Claudia Dall'Antonia
Texto do El País, no UOL.

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sexta-feira, junho 20, 2008

Verdades fora de moda

Verdades fora de moda

ROMA - Parecem razoavelmente mapeados os responsáveis pela disparada de preços da alimentação no mundo todo, inclusive no Brasil. Alta do petróleo (e, como conseqüência, aumentos nos fretes e no preço de fertilizantes e outros derivados); especulação nos mercados futuros; a debilidade do dólar norte-americano; a redução dos estoques mundiais; e (a parte positiva) o aumento do consumo em gigantes como China e Índia, para não falar do Brasil.
Como ninguém, salvo um ou outro tarado, pode ser contra o aumento do consumo, aos governantes restaria, em tese, enfrentar as demais causas. Não podem ou não querem. Ou as duas coisas ao mesmo tempo, como se vê com clareza na Cúpula sobre Segurança Alimentar, inaugurada ontem.
Quem manda no petróleo, na especulação e até no câmbio são os mercados. Ponto. A ActionAid, ativa organização não-governamental, calcula que a especulação nos mercados futuros movimentou US$ 1 bilhão por dia em fevereiro e março, o que criou "um divórcio" entre o que de fato é produzido na terra e o que vale a produção nos mercados futuros.
A ONG aponta o dedo também para empresas do setor agrícola que não fazem parte dos mercados financeiros. "A gigante de processamento de alimentos Archer Daniel Midland informou um aumento de quase 700% nos lucros de sua divisão de serviços agrícolas no primeiro trimestre de 2008", diz nota da ActionAid.
Conclui: "Está claro que as corporações transnacionais estão obtendo lucros recordes com alimentos enquanto as pessoas pobres pelo mundo afora não conseguem comer. É uma ilustração particularmente grotesca de como a economia mundial está organizada para o benefício dos ricos".
Muita gente vai dizer que é demagogia, que é uma retórica démodé.
Mas é mentira?

Coluna do Clóvis Rossi, na Folha de São Paulo, de 4 de junho de 2008.

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Suécia quer substituir gasolina por biogás (e isto não é uma piada!)

Suécia quer substituir gasolina por biogás

James Kanter
Em Goteborg, Suécia


Vai viajar de carro? Lembre-se de primeiro ir ao banheiro. Esta é uma das dezenas de cidades na Suécia dotadas de instalações para transformar esgoto em uma quantidade de biogás suficiente para abastecer milhares de carros e ônibus.

Os carros movidos a biogás criaram um rebuliço quando foram lançados em grande escala uma década atrás. As emissões que saem do cano de descarga são praticamente destituídas de odor, o combustível é mais barato do que a gasolina e o óleo diesel e a idéia de recuperar energia dos dejetos que descem pelo vaso sanitário atraiu os suecos preocupados com o meio-ambiente.

"Quando a pessoa está no banheiro de manhã e consegue enxergar um aspecto positivo nisto, é fácil ser conquistado pela idéia do biogás - é como uma utopia", declara Andreas Kask, um consultor empresarial que dirige um táxi em Goteborg. "Mas na realidade as coisas não funcionaram tão bem quanto se esperava".

Os motoristas reclamam de que há poucos postos de abastecimento, e que os carros só comportam uma quantidade de gás suficiente para rodar duas ou três horas. Alguns também dizem que os primeiros modelos de automóveis movidos a biogás apresentavam um mau desempenho em ladeiras inclinadas, eram lentos nas manhãs úmidas e possuíam pouco espaço no porta-malas devido aos tanques volumosos.

Os críticos também questionam a sustentabilidade dessa tecnologia, porque alguns dos sistemas utilizam tubulações de gás natural para levar o biogás aos consumidores, misturando desta forma os dois combustíveis.

Há dois anos, a Volvo, que pertence à Ford Motor, anunciou que deixaria de fabricar carros movidos a biogás, e que se concentraria na produção de veículos menos agressivos ao meio ambiente movidos a uma mistura de gasolina e etanol.

"Nós não vendemos uma quantidade suficiente de carros", afirma Maria Bohlin, porta-voz da Volvo, referindo-se ao modelo movido a biogás. "Poderemos pensar em voltar a produzir carros a biogás, mas no momento isto não está nos nossos planos".

Desde que a Volvo decidiu abandonar a tecnologia de biogás, o etanol penetrou bastante no mercado sueco, apesar das críticas de que o álcool contribui para o desmatamento e o aumento dos preços dos alimentos.

Feito com cereal ou cana-de-açúcar, o etanol também é vendido por um preço um pouco inferior ao do biogás, embora os defensores deste último digam que ele apresenta uma eficiência por quilômetro rodado bem maior.

Goran Varmby, funcionário da Business Region Goteborg, uma companhia sem fins lucrativos que promove a indústria e o comércio na região, diz que espera que a Volvo volte a produzir automóveis movidos a biogás.

"Mas existem muitos interesses econômicos de grande dimensão por trás do etanol", afirma Varmy. Ele refere-se aos generosos subsídios que os agricultores e os produtores de biocombustíveis na Europa e nos Estados Unidos recebem para plantar e processar culturas para a produção de biocombustíveis.

Sob o ponto de vista químico, o biogás é idêntico ao gás natural obtido dos combustíveis fósseis, mas a sua produção baseia-se em um processo no qual bactérias alimentam-se de dejetos fecais durante aproximadamente três semanas em uma câmara sem oxigênio. Dois terços de metano e um terço de dióxido de carbono saem como resultado, bem como um resíduo rico em nutrientes que pode ser utilizado para fertilizar o solo ou como material de construção.

Após ser purificado, o metano é bombeado pela rede de gasodutos de Goteborg até estações especializadas de abastecimento, nas quais o gás é pressurizado para ser distribuído aos consumidores. Qualquer veículo dotado de motor e tanque configurados para receber gás natural comprimido pode usar o biogás.

Após cada abastecimento, a quantidade correspondente ao biogás utilizado é injetada na rede de distribuição de gás natural como compensação, afirma Bo Ramberg, diretor-executivo da FordonGas, uma empresa com sede em Goteborg que opera a maior rede de postos de abastecimento de biogás na Escandinávia.

A idéia é que a quantidade de gás utilizada pelos veículos seja compensada pelo gás produzido a partir de resíduos orgânicos.

Ramberg, que já foi um executivo da Volvo, conta que deixou a companhia há cerca de uma década para fundar a FordonGas, ao identificar uma oportunidade para criar a infra-estrutura necessária para o fornecimento de biogás aos motoristas.

"Nós queremos certificar as emissões presentes no ciclo de vida inteiro do biogás, da produção ao uso", afirma Ramberg. "Mas já acreditamos que o biogás seja o melhor combustível para reduzir as emissões - não há discussão quanto a isso".

Metade das ações da empresa pertence à Dong Energy, uma companhia dinamarquesa. Segundo Ramberg, a FordonsGas obtém um pequeno lucro com a atividade e continua investindo nos postos de abastecimento de biogás.

Os defensores do biogás admitem que a decisão da Volvo de deixar de produzir carros movidos a biogás foi um sério golpe desferido contra esta tecnologia.

Mas eles afirmam que a decisão da Mercedes e da Volkswagen no sentido de lançar novos modelos de carros movidos a biogás neste ano na Suécia e os abatimentos de impostos concedidos aos motorista poderão provocar um aumento das vendas destes carros e do combustível.

"O biogás, como combustível de automóveis, também está disponível na Suíça, na França, na Alemanha e na Áustria, mas a Suécia é o maior usuário na Europa", afirma Irmgard Herold, analista da New Energy Finance, em Londres.

Muitas pessoas em Goteborg continuam otimistas em relação ao vínculo que criaram entre dejetos e reservas seguras de energia.

Ola Fredriksson, engenheiro na Gryaab, a estação de tratamento de esgoto em Goteborg, diz que a quantidade média anual de dejetos eliminados por cada pessoa nas descargas do vaso sanitário cria biogás suficiente para que um automóvel rode 120 quilômetros.

"Se o preço do petróleo continuar subindo, e as pessoas estiverem preparadas para pagar mais por energia renovável, isso fará com que a nossa companhia se interesse pela produção de mais biogás", afirma Fredriksson. "Nós contamos com capacidade para isso."

Tradução: UOL
Texto do International Herald Tribune, publicado no UOL.

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quinta-feira, junho 19, 2008

TSE quer controlar propaganda eleitoral na Internet

A RESOLUÇÃO 22.718

Os primeiros sinais de alerta saíram em março, em blogs como o de Sergio Amadeu, avisando que a Justiça Eleitoral "quer controlar a campanha na internet". Era a resolução 22.718, em que "o TSE legisla sobre como deve ser a campanha no cyberespaço transnacional". Desde então, Amadeu detalha o processo "kafkiano" que levou à decisão e o que resultou dela, com veto a blog e até Orkut.
Consultados dias atrás, os ministros até concordaram que não é possível controlar a web. Mas nada de alterar a resolução, que se estende sobre o YouTube e proíbe, entre outras coisas, o uso de internet 48 horas antes da votação.
Minha sugestão: mandem desligar todas as transmissões de dados no país.

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Turquia planeja modernizar o Corão

Turquia planeja modernizar o Corão
Turquia quer reinterpretar o islamismo e aproximá-lo da modernidade


Juan Carlos Sanz
Enviado especial a Istambul


As convulsões que a Turquia vive devido ao confronto entre o aparelho laico do Estado e o governo de base islâmica parecem ocultar um dos mais ambiciosos projetos de modernização da religião muçulmana. Nesta semana, o diretor de Assuntos Religiosos, Ali Bardakoglu, anunciou na rede CNN-Turk que antes do fim do ano terminará o trabalho de uma centena de teólogos turcos para reinterpretar os "hadiths", atos e frases do profeta Maomé segundo os quais os fiéis devem reger sua conduta.

"Devemos reinterpretar a prática da religião. O Corão não defende a poligamia. Também não é pecado namorar, mas os casamentos combinados em idade precoce não estão de acordo com a religião", afirmou o responsável islâmico máximo da Turquia em sua entrevista televisiva, na qual se referiu aos casamentos de meninas e adolescentes como um mal endêmico nas áreas rurais do oeste da Anatólia.

As declarações de Bardakoglu ocorreram pouco depois que a imprensa turca divulgou o conteúdo de um manual sobre conduta sexual para fiéis, publicado no site da Internet da Direção de Assuntos Religiosos, um órgão do governo turco do qual dependem os imãs.

Esse manual condena as relações como "o flerte, que pode levar a cometer adultério". Mas também adverte: "As mulheres devem ser mais cuidadosas, vestir-se adequadamente e não mostrar o corpo". Até o perfume pode ser imoral, na opinião dos religiosos turcos: "O profeta Maomé não aprovava que as mulheres usassem perfume fora do lar". A polêmica serviu para atirar mais lenha à fogueira da briga entre os setores laicos turcos, nos quais se inclui uma grande parte da imprensa, e o governo islâmico.

Estudiosos do islã, como o professor da Universidade de Oxford Tariq Ramadan, afirmam que os muçulmanos podem fazer uma "leitura aberta e reformadora da religião para situá-la em seu contexto histórico e cultural". O chefe da equipe de teólogos de Ancara, Mehmet Gormez, parece compartilhar dessa tese. "Cada um dos 170 mil hadiths tem seu próprio contexto cultural e geográfico. A proibição às mulheres de viajar sozinhas poderia ter sentido por motivos de segurança na época do profeta Maomé", explica Gormez, que também é subdiretor de Assuntos Religiosos.

Enquanto no Ocidente se observa com interesse a revisão dos hadiths, na Turquia (diante do imobilismo de países como a Arábia Saudita, que proíbe que as mulheres dirijam carros), a reforma do islã que os teólogos de Ancara preparam passa quase despercebida na vida cotidiana dos turcos, que transcorre entre as dificuldades da crise econômica e os sobressaltos políticos. Ontem mesmo o presidente do Parlamento, o islâmico Koksal Toptam, pediu uma redução da autoridade do Tribunal Constitucional, que na quinta-feira anulou uma reforma legal do governo que autorizava que as jovens cobertas com o véu islâmico estudassem nas universidades turcas.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
Texto do El País, no UOL.

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Podres...

Estados e Estado podres

FORA DO RIO , causou apenas alguma e rápida comoção o fato de um ex-governador do Estado ter sido denunciado por formação de quadrilha armada. O apodrecimento do relativamente civilizado Rio Grande do Sul chamou a atenção nacional apenas pela história sensacional do vice-governador que grampeou um secretário de governo que admitia a corrupção no Estado.
Parece um dado da natureza que Alagoas possa passar mais de meio ano sem polícia, hospitais e escolas enquanto a Assembléia Legislativa se candidata à difícil disputa pelo título de a mais corrupta do Brasil. Alagoas, lembre-se, cujo patrão político é Renan Calheiros.
O comendador Arcanjo, chefe do crime organizado no Centro-Oeste, preso, continua a agir na região, com especial interesse no governo distrital de Brasília e em Mato Grosso, onde ganhou o título (tornou-se "comendador" graças à Câmara de Cuiabá) e tem placa de homenagem no Fórum de Rondonópolis. Governadores e ex-governadores de Alagoas, Maranhão e Sergipe foram denunciados por corrupção. Uma múlti francesa, a Alstom, diz na Europa que corrompeu parte do governo paulista. Etc. Um enorme etc.
O governo federal envolveu-se em outro caso de tráfico de influência -no mínimo. Trata-se da Varig, mas já houve a história da Brasil Telecom. Como o governo Lula mais e mais torna-se negociador e financiador de fusões & aquisições, isso tende a dar em mais besteira.
Segundo uma idiotice que circula na praça, o rolo da Varig decorreria da razia nas agências reguladoras, como se "agências técnicas" fossem imunes à bandalha. A politização dos negócios e a negociata política não derivam daí. O privatista governo FHC politizou a privatização das teles, na prática fechou a Aneel durante o apagão e nunca explicou o rolo da licitação do Sivam.
O Congresso investiga bandalhas, mal e mal, quando o escândalo se presta à picuinha política imediata.
Mas o Legislativo mesmo é parte do problema. Assembléias já têm bancadas do crime organizado ou os deputados eles mesmos organizam o crime. Segundo a Transparência Brasil, mais de 35% do Congresso responde a processos na segunda ou terceira instâncias ou já foram condenados até pelos ausentes Tribunais de Contas. No Rio, mais de metade da Assembléia é caso de polícia.
Em Goiás, três quartos. Em Rondônia e Alagoas, cerca de 60%. Gente como Arcanjo e máfias do jogo já entraram no Parlamento, financiam campanhas e capturam setores dos governos. Nem se mencionem os velhos porém vivos esquemas de corrupção armados pelos grandes fornecedores do governo.
Nas bancadas do crime, tráfico, jogo, contrabando, grupos de extermínio e a corrupção de pagamentos públicos começam a se cruzar, em certos casos com apoios no Judiciário.
O Estado entrou em falência imunológica de justiça. Ainda que Ministério Público e Polícia Federal estejam ativos, os processos redundam em raras condenações, e tais instituições têm mais papel reativo.
O problema principal é que o trânsito da bandalha está livre no núcleo dos Poderes, os quais regulam as demais instituições e deveriam ser quase imunes à expansão criminosa, mas que agora são dela cúmplices.

Texto de Vinicius Torres Freire, na Folha de São Paulo, de 10 de junho de 2008.

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Quem te viu e quem te vê, Itamaraty

Quem te viu e quem te vê, Itamaraty

DANIEL MACK e DENIS MIZNE

O Itamaraty, por duas vezes nos últimos dias, fez o Brasil passar vergonha em temas ligados a armamentos

O MINISTÉRIO das Relações Exteriores brasileiro definitivamente teve uma semana para esquecer. Reconhecido internacionalmente por seus pares como um dos quadros diplomáticos mais profissionais do mundo, o Itamaraty, por duas vezes nos últimos dias, fez o Brasil passar vergonha em temas ligados a armamentos.
No dia 30/5, sexta-feira, a diplomacia brasileira esteve ausente -como tem sido praxe no processo- no desfecho histórico do que foi considerado o "mais importante tratado de desarmamento" dos últimos dez anos.
Lamentavelmente, o Brasil não estava entre os 111 países que se reuniram em Dublin (Irlanda) para determinar o total banimento das bombas "cluster", armamento moral e tecnologicamente obsoleto considerado o grande vilão humanitário de todos os conflitos em que foi utilizado.
Na sua ausência, o Brasil escolheu ficar ao lado de Estados Unidos, Rússia, China, Israel e Paquistão, em vez de apoiar seus tradicionais aliados regionais, como Argentina, Chile, Paraguai, Uruguai e México.
O Brasil produz, exporta e estoca bombas "cluster", que, além de atingirem áreas de até quatro campos de futebol quando arremessadas, muitas vezes falham ao tocar o solo e tornam-se pequenas minas terrestres à espera de uma criança que as detone sem intenção e sofra morte ou mutilação.
Apenas dois dias depois, lemos reportagem no "Estado de S. Paulo" afirmando que o Itamaraty e o Ministério da Defesa teriam permitido a exportação de uma aeronave Super Tucano da Embraer para uma subsidiária da empresa norte-americana Blackwater, conhecida como o maior exército mercenário do mundo e sob investigação do Congresso dos Estados Unidos por supostas graves violações cometidas nas suas atividades na Guerra do Iraque.
A notícia foi confirmada por executivos da Embraer e da Blackwater, mas não mereceu nenhum comentário oficial do Itamaraty e da Defesa -instâncias responsáveis por liberar as exportações bélicas do país-, após meses de negativas sobre o negócio.
É especialmente incompreensível que o Brasil viesse a armar uma empresa que participa ativamente de uma guerra que nosso governo repudiou fortemente, usando de posições diplomáticas e retóricas das mais contundentes para reiterar sua oposição à ação dos EUA no Iraque.
Onde fica o princípio de não-intervenção, tão caro à nossa diplomacia?
Vende-se a liderança moral do país na região -suposto pilar da política externa brasileira- pela bagatela de US$ 4,5 milhões, valor do contrato com a Blackwater?
Se confirmada, tal exportação é imoral e irresponsável, mesmo que venha a ser tecnicamente legal (sobre o que há dúvidas). É exatamente esse tipo de exportação que a sociedade civil organizada ao redor do mundo tem lutado para evitar quando apóia na ONU o Tratado de Controle do Comércio de Armas (ATT, na sigla em inglês), que não permite exportações bélicas que serão usadas contra civis ou em conflitos deflagrados.
O ATT é um mecanismo imprescindível para impedir que transferências irresponsáveis de armas alimentem os conflitos, a pobreza e as violações graves dos direitos humanos em todo o mundo.
No caso das bombas "cluster", ao Brasil resta fazer um mea-culpa e concluir que o mercado de exportação internacional para o armamento está em via de extinção, que o argumento diplomático do "fórum inadequado" caducou com a aceitação quase universal de processo alternativo (como foi no caso das minas terrestres) e abandonar o frágil argumento militar de "dissuasão estratégica" (será que o Paraguai vai invadir o Brasil se o país não tiver bombas "cluster"?).
O Brasil pode assinar o tratado em dezembro, em Oslo (Noruega).
Quanto à exportação da aeronave da Embraer, esperamos urgentemente algum tipo de explicação para tão controvertida decisão, mesmo temendo que não exista uma que seja minimamente razoável.
Que a proteção e a venda de armamento sejam as prioridades do Ministério da Defesa (e das indústrias bélicas brasileiras), vá lá. Mas o Itamaraty, a cara do Brasil frente ao mundo, não pode ficar completamente prostrado, permitindo que interesses comerciais e militares determinem as posições de nossa renomada diplomacia em temas de tal importância.


DENIS MIZNE, 32, advogado e "world fellow" da Universidade Yale (EUA), é diretor-executivo do Instituto Sou da Paz.
DANIEL MACK, 33, mestre em relações internacionais pela Universidade Georgetown (EUA), é coordenador da área de controle de armas do Instituto Sou da Paz.

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terça-feira, junho 17, 2008

Vocabulário do jornalismo israelense

Vocabulário do jornalismo israelense

Yonatan Mendel

Há um ano, me candidatei à vaga de correspondente do jornal israelense Ma´ariv nos territórios ocupados. Falo árabe, lecionei em escolas palestinas e participei de muitos projetos judaico-palestinos. Na entrevista, o chefe perguntou como eu poderia ser objetivo. Eu havia passado tempo demais com os palestinos, e acabaria sendo tendencioso em favor deles. Não consegui o emprego. Minha entrevista seguinte foi no Walla.com, o site mais popular de Israel. Dessa vez, consegui o emprego e me tornei correspondente do Walla no Oriente Médio. Logo entendi o que Tamar Liebes, diretor do Instituto Smart de Comunicação da Universidade Hebraica de Jerusalém, quis dizer quando afirmou que "os jornalistas e editores se vêem como atores dentro do movimento sionista, e não como observadores críticos".

Isso não significa que o jornalismo israelense não seja profissional. A corrupção, as mazelas sociais e a desonestidade são perseguidas com louvável determinação por jornais, tevês e rádios. O fato de os israelenses terem sido informados do que o ex-presidente Moshe Katsav [que renunciou após ser acusado de estupro] fez ou deixou de fazer com suas secretárias prova que a mídia desempenha o papel de cão de guarda, mesmo sob risco de causar constrangimento nacional e internacional. O nebuloso contrato imobiliário de Ehud Olmert, os negócios da misteriosa ilha grega de Ariel Sharon, o romance secreto de Binyamin Netanyahu, a conta bancária secreta de Yitzhak Rabin nos Estados Unidos: tudo isso é livremente discutido na imprensa israelense.

Quando se trata de "segurança", não há tal liberdade. Só há "nós" e "eles", as Forças de Defesa de Israel, FDI, e "o inimigo". O discurso militar, o único discurso permitido, triunfa sobre qualquer outra narrativa. Não que os jornalistas israelenses cumpram ordens ou um código escrito: apenas preferem pensar coisas boas das suas forças de segurança.

Morte por engano

Na maioria das matérias sobre o conflito há duas partes em luta: as Forças de Defesa de Israel de um lado e os palestinos de outro. Quando um incidente violento é relatado, as FDI confirmam ou o Exército diz, mas os palestinos alegam: "Os palestinos alegaram que um bebê ficou gravemente ferido pelos disparos das FDI." Isso é alguma invenção? "Os palestinos alegam que colonos israelenses os ameaçaram." Mas quem são os palestinos? Todos os palestinos - cidadãos de Israel, habitantes da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, as pessoas em campos de refugiados de Estados árabes vizinhos e aquelas vivendo na diáspora - fazem a alegação? Por que então uma reportagem séria relata uma alegação feita pelos palestinos? Por que tão raramente há um nome, um departamento, uma organização ou uma fonte dessa informação? Será porque isso lhe daria um aspecto mais confiável?

Quando os palestinos não estão fazendo alegações, seu ponto de vista simplesmente não é ouvido. O Keshev (Centro para Proteção da Democracia em Israel) analisou como os principais canais de televisão e jornais israelenses cobriram as vítimas palestinas num determinado mês - dezembro de 2005. Foram encontradas 48 matérias sobre a morte de 22 palestinos. Apenas oito desses relatos, no entanto, traziam a versão das FDI e uma reação palestina. Nos outros quarenta exemplos, o fato foi relatado apenas do ponto de vista dos militares israelenses.

Outro exemplo: em junho de 2006, quatro dias depois de o soldado israelense Gilad Shalit ser seqüestrado no lado israelense da cerca de segurança de Gaza, segundo a imprensa israelense, Israel deteve cerca de sessenta integrantes do Hamas, entre os quais trinta membros eleitos do Parlamento e oito ministros do governo palestino. Numa operação bem planejada, Israel capturou e encarcerou o ministro palestino para Assuntos de Jerusalém, os ministros de Finanças, Educação, Assuntos Religiosos, Assuntos Estratégicos, Assuntos Domésticos, Habitação e Prisões, além dos prefeitos de Belém, Jenin e Qalqilya, o presidente do Parlamento palestino e um quarto dos seus integrantes. Que essas autoridades tenham sido tiradas de suas camas tarde da noite e transferidas para território israelense, provavelmente para servir (como Gilad Shalit) de moeda de barganha, não fez da operação um seqüestro. Israel nunca seqüestra. Israel detém.

O Exército israelense nunca mata ninguém intencionalmente, muito menos comete homicídio - uma situação a qual qualquer outra organização armada invejaria. Mesmo quando uma bomba de 1 tonelada é jogada sobre uma densa área residencial de Gaza, matando um homem armado e catorze civis inocentes, inclusive nove crianças, ainda assim não são mortes intencionais nem homicídios: são assassinatos dirigidos. Um jornalista israelense pode dizer que os soldados das FDI atingiram palestinos, ou que os mataram, ou que os mataram por engano, e que os palestinos foram atingidos, ou foram mortos ou mesmo que encontraram a morte (como se estivessem procurando), mas homicídio está fora de cogitação. A conseqüência, quaisquer que sejam as palavras usadas, foi a morte, nas mãos das forças de segurança israelenses, desde o início da segunda intifada, de 2 087 palestinos que nada tinham a ver com a luta armada.

Sangue nas mãos

As Forças de Defesa de Israel, tal como são mostradas na mídia israelense, têm outra estranha capacidade: a de nunca iniciar ou decidir um ataque, nem de lançar uma operação. As FDI simplesmente respondem. Elas respondem aos foguetes Qassam, respondem aos ataques terroristas, respondem à violência palestina. Isso torna tudo tão mais lógico e civilizado: as FDI são forçadas a lutar, a destruir casas, a balear palestinos e a matar 4 485 deles em sete anos, mas nenhum desses fatos é responsabilidade dos soldados. Eles estão enfrentando um inimigo abjeto, e reagem de acordo com seu dever. O fato de suas ações - toques de recolher, prisões, cercos por mar, tiros e mortes - serem a principal causa da reação palestina não parece interessar à mídia. Como os palestinos não podem responder, os jornalistas israelenses escolhem outro verbo de um léxico que inclui vingar, provocar, atacar, incitar, apedrejar e disparar os mísseis Qassam.

Entrevistando Abu-Qusay, porta-voz das Brigadas de Al-Aqsa em Gaza, em junho de 2007, perguntei a ele sobre a razão para disparar mísseis Qassam contra a cidade israelense de Sderot. "O Exército pode responder", disse eu, sem perceber que já estava influenciado. "Mas nós estamos respondendo aqui", disse Abu-Qusay. "Não somos terroristas, não queremos matar... estamos resistindo às contínuas incursões de Israel na Cisjordânia, aos seus ataques, ao seu cerco em nossas águas e ao fechamento das nossas terras." As palavras de Abu-Qusay foram traduzidas para o hebraico, mas Israel continuou entrando todas as noites na Cisjordânia, e os israelenses não viram mal nenhum nisso. Afinal de contas, era só uma resposta.

Numa época em que havia muitas incursões israelenses em Gaza, perguntei o seguinte aos meus colegas: "Se um palestino armado cruza a fronteira, entra em Israel, dirige até Tel Aviv e atira em pessoas nas ruas, ele será o terrorista, e nós seremos as vítimas, certo? Porém, se as FDI cruzam a fronteira, dirigem vários quilômetros Gaza adentro e começam a disparar contra os atiradores palestinos, quem é o terrorista e quem é o que resiste? Como é possível que os palestinos que vivem nos territórios ocupados nunca possam recorrer à autodefesa, enquanto o Exército israelense é sempre o defensor?" Meu amigo Shay, da editoria de arte, esclareceu as coisas para mim: "Se você for à Faixa de Gaza e atirar nas pessoas, você será um terrorista. Mas quando o Exército faz isso, é uma operação para deixar Israel mais seguro. É a implementação de uma decisão do governo!"

Outra distinção interessante entre "nós" e "eles" apareceu quando o Hamas exigiu a libertação de 450 prisioneiros ligados ao grupo, em troca do soldado Gilad Shalit. Israel anunciou que libertaria prisioneiros, mas não aqueles com sangue nas mãos. São sempre os palestinos - nunca os israelenses - que têm sangue nas mãos. Isso não quer dizer que os judeus não possam matar os árabes, mas eles não terão sangue nas mãos, e se forem presos serão soltos depois de poucos anos. Sem falar naqueles que têm sangue nas mãos e chegaram a primeiro-ministro. Somos não só mais inocentes quando matamos, como também mais suscetíveis quando feridos. Em geral, a descrição de um míssil Qassam que atinja Sderot será mais ou menos assim: "Um Qassam caiu ao lado de uma residência, três israelenses tiveram ferimentos leves e dez outros sofreram um choque." Não se deve minimizar tais males: um míssil atingindo uma casa no meio da noite de fato deve causar um grande choque. Deve-se lembrar, no entanto, que o choque só vale para os judeus. Os palestinos aparentemente são uma gente muito calejada.

Detenção administrativa

As Forças de Defesa de Israel, num outro motivo de inveja para todos os outros Exércitos, matam só as pessoas mais importantes. "Um membro de alto escalão do Hamas foi morto" é quase um coro na mídia israelense. Membros de baixo escalão do Hamas nunca foram achados ou nunca foram mortos. Shlomi Eldar, correspondente de uma estação de televisão na Faixa de Gaza, escreveu bravamente sobre esse fenômeno no livro Eyeless in Gaza [Sem Olhos em Gaza], de 2005. Quando Riyad Abu Zaid foi assassinado, em 2003, a imprensa israelense fez eco ao anúncio das FDI de que o homem seria o chefe da ala militar do Hamas em Gaza. Eldar, um dos poucos jornalistas investigativos de Israel, descobriu que o homem era apenas um secretário do clube de prisioneiros do Hamas. "Foi uma das muitas ocasiões em que Israel 'incrementou' um ativista palestino", escreveu Eldar. "Depois de todo assassinato, cada pequeno ativista é `promovido´ a grande."

Esse fenômeno pelo qual as declarações das FDI imediatamente se traduzem em reportagens é resultado tanto da falta de acesso à informação quanto da má vontade de jornalistas em provar que o Exército está errado, ou em mostrar soldados como criminosos. "As FDI estão agindo em Gaza" (ou em Jenin, ou em Tulkarm, ou em Hebron) é a expressão oferecida pelo Exército e adotada pela mídia. Por que dificultar a vida dos ouvintes? Por que lhes contar o que os soldados fazem, descrevendo o medo que geram, o fato de que eles vêm com armas e veículos pesados e esmagam a vida urbana, aumentando o ódio, a dor e o desejo de vingança?

Em fevereiro, para tentar conter os militantes que disparavam foguetes Qassam, Israel decidiu interromper a eletricidade em Gaza durante algumas horas por dia. Embora isso significasse, por exemplo, que a energia deixaria de chegar a hospitais, foi dito que "o governo israelense decidiu aprovar essa medida como outra arma não-letal". Outra coisa que os soldados fazem é limpar - khisuf. Em hebraico comum, khisuf significa expor algo oculto, mas no linguajar das FDI significa limpar uma área de esconderijos em potencial para atiradores palestinos. Durante a última intifada, escavadeiras israelenses D9 destruíram milhares de casas palestinas, arrancaram milhares de árvores e deixaram um rastro de milhares de estufas danificadas. É melhor saber que o Exército limpou a área do que enfrentar a realidade de que o Exército destrói as propriedades, o orgulho e a esperança dos palestinos.

Outra palavra útil é coroamento (keter, que também pode ser traduzida como "cerco"), eufemismo para um cerco no qual quem sair de casa se arrisca a ser baleado. Zonas de guerra são lugares onde os palestinos podem ser mortos, mesmo as crianças que não sabem que entraram numa zona de guerra. Crianças palestinas, aliás, tendem a ser promovidas a adolescentes palestinos, especialmente quando são acidentalmente mortas. Mais exemplos: postos avançados e isolados dos israelenses na Cisjordânia são chamados de postos ilegais, talvez em contraste com os assentamentos israelenses, que são aparentemente legais. Detenção administrativa significa prender pessoas que não foram levadas a julgamento e nem mesmo receberam acusação formal (em abril de 2003, havia 1.119 palestinos nessa situação). A OLP (Ashaf) é sempre citada por sua sigla, e nunca por seu nome completo, Organização para a Libertação da Palestina: Palestina é uma palavra que quase nunca é usada - há um presidente palestino, mas não um presidente da Palestina.

O que o público quer

"Uma sociedade em crise forja um novo vocabulário para si", escreveu David Grossman no livro The Yellow Wind [O Vento Amarelo], "e gradualmente uma nova linguagem emerge, cujas palavras não mais descrevem a realidade, mas tentam, em vez disso, escondê-la." Essa "nova linguagem" foi adotada voluntariamente pela mídia, mas se alguém precisar de um conjunto oficial de diretrizes ele pode ser encontrado no Relatório Nakdi, um documento redigido pelo órgão público Autoridade de Radiodifusão Israelense. Divulgado inicialmente em 1972, e atualizado três vezes desde então, o relatório se destinava a "esclarecer algumas das regras profissionais que regulam o trabalho de uma pessoa da imprensa". A proibição do termo Jerusalém Oriental era uma delas.

As restrições não se limitam à geografia. Em 20 de maio de 2006, a emissora mais popular da televisão israelense, o Canal 2, noticiou "outro assassinato dirigido em Gaza, um assassinato que pode atenuar os disparos dos Qassam" (376 pessoas já morreram em assassinatos dirigidos, sendo 150 delas civis que não eram alvos de assassinatos). Ehud Ya'ari, um conhecido correspondente israelense que cobre assuntos árabes, no estúdio, disse: "O homem que foi morto é Muhammad al Dahdouh, da Jihad Islâmica... Isso é parte da outra guerra, uma guerra para diminuir o número dos ativistas que disparam os Qassam." Nem Ya'ari nem o porta-voz das FDI se preocuparam em noticiar que quatro civis palestinos inocentes também foram mortos na operação, e que três outros ficaram feridos, inclusive uma menina de 5 anos chamada Maria, que ficará paralítica do pescoço para baixo. Esse "descuido", revelado pela jornalista israelense Orly Vilnai-Federbush, só mostra o quanto não sabemos sobre aquilo que julgamos saber.

Uma coisa interessante é que, desde que o Hamas tomou a Faixa de Gaza, um dos novos xingamentos na mídia israelense é Hamastão, palavra que aparece no noticiário "quente", a parte supostamente sagrada dos jornais, que deveria apresentar os fatos sem editorializá-los. O mesmo vale para movimentos como Hamas ou Hezbollah, descritos em hebraico como organizações, e não como partidos ou movimentos políticos. Intifada nunca recebe o seu significado árabe de "revolta"; e Al-Quds, que quando usada por políticos é uma palavra que se refere apenas aos "lugares sagrados de Jerusalém Oriental", ou a "Jerusalém Oriental", é entendida pelos correspondentes israelenses como Jerusalém, o que efetivamente implica uma determinação palestina em tomar a capital inteira.

Foi curioso observar as reações dos jornais ao assassinato de Imad Moughniyeh, na Síria, em fevereiro. Eles competiram entre si quanto à maneira de designá-lo: arquiterrorista, mestre-terrorista, maior terrorista da Terra. A imprensa israelense levou alguns dias para deixar de louvar os assassinos de Moughniyeh e começar a fazer o que deveria ter feito inicialmente: perguntar quais as conseqüências da morte dele. O jornalista Gideon Levy acha que essa é uma tendência israelense: "A cadeia de `chefes terroristas´ liquidados por Israel, de Ali Hassan Salameh a Abu Jihad, passando por Abbas Musawi e Yihyeh Ayash até o xeque Ahmed Yassin e Abdel Aziz Rantisi (todas elas "operações" que celebramos com grande pompa e circunstância por um doce e inebriante momento), até agora apenas provocou ataques duros e dolorosos de vingança contra Israel e os judeus mundo afora."

Repórteres israelenses especializados em assuntos árabes devem evidentemente falar árabe - muitos deles, de fato, estudaram o idioma nas escolas do aparato de segurança - e precisam conhecer a história e a política do Oriente Médio. E têm de ser judeus. Visivelmente, a mídia israelo-judaica prefere contratar jornalistas com um conhecimento mediano do idioma árabe a falantes nativos, pois estes seriam cidadãos palestinos de Israel. Aparentemente, jornalistas judeus são mais bem equipados que os árabes israelenses para explicar "o que os árabes pensam", quais são "os objetivos árabes" e "o que os árabes dizem". Talvez seja assim porque os editores sabem o que o seu público quer ouvir. Ou, mais importante, o que o público israelense prefere não ouvir.

Sem licença

Se as palavras ocupação, apartheid e racismo (sem falar em cidadãos palestinos de Israel, bantustões, limpeza étnica e Nakba ["catástrofe", a palavra com a qual os palestinos se referem à criação de Israel, em 1948]) estão ausentes do discurso israelense, os cidadãos de Israel podem passar a vida inteira sem saber com o que estão convivendo. Por exemplo, racismo (Giz'anut, em hebraico). Se o Parlamento israelense legisla que 13% das terras do país só podem ser vendidas para judeus, então ele é um Parlamento racista. Se em sessenta anos o país só teve um ministro árabe, então Israel tem tido governos racistas. Se, em sessenta anos de manifestações, balas de borracha e munição de verdade só foram usadas contra manifestantes árabes, então Israel tem uma polícia racista. Se 75% dos israelenses admitem que se recusariam a ter um árabe como vizinho, então é uma sociedade racista. Ao não reconhecer que Israel é um lugar onde o racismo molda as relações entre judeus e árabes, os judeus israelenses se tornam incapazes de lidar com o problema, ou mesmo com a realidade das suas próprias vidas.

A mesma negação da realidade está refletida na recusa ao termo apartheid. Devido à sua associação com a África do Sul branca, os israelenses acham muito duro usar a palavra. Isso não quer dizer que exatamente o mesmo tipo de regime vigore hoje nos territórios ocupados, mas um país não precisa ter bancos de praça "apenas para brancos" para ser um Estado que pratica o apartheid. Afinal, apartheid significa "separação", e, se nos territórios ocupados os colonos têm uma estrada, e os palestinos precisam usar estradas alternativas ou túneis, então é um sistema rodoviário de apartheid. Se o muro de separação construído sobre centenas de hectares de terra confiscada na Cisjordânia separa as pessoas (inclusive palestinos de ambos os lados do muro), então é um muro de apartheid. Se nos territórios ocupados há dois Judiciários, um para colonos judeus e outro para os palestinos, então é uma Justiça de apartheid.

Há também os próprios territórios ocupados. Notavelmente, não há territórios ocupados em Israel. O termo é ocasionalmente usado por algum colunista ou político de esquerda, mas no noticiário ele inexiste. No passado, foram chamados de territórios administrados, para esconder o fato real da ocupação. Foram então chamados de Judéia e Samaria. E, na grande imprensa israelense de hoje, são chamados de os territórios (Ha-Shtachim). O termo ajuda a preservar a noção de que os judeus são as vítimas, o povo que age apenas em autodefesa, a metade moral da equação, e que os palestinos são os agressores, os caras ruins, as pessoas que lutam por razão nenhuma. O exemplo mais simples explica isso: "Um cidadão dos territórios foi apanhado contrabandeando armas ilegais." Poderia fazer sentido que os cidadãos de um território ocupado tentassem resistir ao ocupante, mas não faz sentido se eles forem apenas dos territórios.

Os jornalistas israelenses não estão incrustados no aparato estatal de segurança, e nunca ninguém lhes pediu que fizessem seu público se sentir bem a respeito da política militar de Israel. As restrições às quais eles se submetem são observadas voluntariamente, quase inconscientemente - o que torna sua prática ainda mais perigosa. Apesar disso, a maioria dos israelenses acha que sua mídia é esquerdista demais, insuficientemente patriota e que não está do lado de Israel. E que a imprensa estrangeira é pior. Durante a última intifada, Avraham Hirchson, então ministro de Finanças, exigiu que as transmissões da CNN a partir de Israel fossem interrompidas, sob a alegação de que eram "transmissões distorcidas e programas tendenciosos que são nada mais que uma campanha de incitação contra Israel". Manifestantes israelenses pediram o fim da "cobertura indigna de confiança e provocadora do terror feita pela CNN", reclamando em seu lugar a cobertura da Fox News. Israelenses com até 50 anos são obrigados a prestar um mês de serviço militar reservista por ano. "O civil", disse certa vez Yigael Yadin, um dos primeiros chefes das FDI, "é um soldado com licença anual de 11 meses." Para a mídia israelense, não existe licença.


Texto do Observatório da Imprensa.


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segunda-feira, junho 16, 2008

"Alô! Presidente"

Conheça o "Alô! Presidente", o programa de televisão de Chávez

Jean-Pierre Langellier

Primeiro, há o cenário. Uma austera escrivaninha de madeira, instalada, ao ar livre, na frente da câmera. Sobre o móvel, foram colocados um potinho repleto de lápis e de canetas esferográficas, um copo de água e uma xícara para café; além de fichas cobertas de anotações, mapas, dossiês, livros e de um volume da Constituição. Atrás, como pano de fundo, uma usina.

Em segundo lugar, há o público. Todas as pessoas presentes estão vestidas de vermelho. Elas foram escolhidas a dedo e estão devidamente identificadas com um crachá. Há algumas centenas de militantes; sentados, eles parecem ser disciplinados, e sempre prontos para aplaudir, em meio a um ambiente descontraído. Alguns operários exibem sobre a cabeça o seu capacete de trabalho. Várias mães de família merecedoras estão aparentemente encantadas por estarem ali. Todas as autoridades locais compareceram em peso; no caso, são aquelas do Estado de Falcon, no nordeste da Venezuela, além de um destacamento de militares de uniforme. Na primeira fileira estão um ou dois ministros, além de visitantes notáveis: o embaixador da China, aquele do "valente povo antiimperialista" do Irã, e ainda a embaixadora da Argentina, que traja uma japona militar.

Por fim, e, sobretudo, há o personagem central do espetáculo, sentado atrás da escrivaninha, ao mesmo tempo o ator e o encenador do seu próprio ego: Hugo Chávez, o presidente da República Bolivariana da Venezuela. Ele traja uma camisa por cima de uma camiseta, ambas vermelhas. Assim como Fidel Castro, o seu modelo, Chávez é um comunicador brilhante, um orador incansável. Ele mostra-se claro, pedagógico, caloroso, e não raro engraçado. Ele se expressa na linguagem simples e direta do povo.

São 11 horas, neste domingo, 8 de junho. O 312º episódio da novela política dominical, "Alô! Presidente" pode começar. Ele será transmitido ao vivo pela VTV, o canal público de televisão, totalmente devotado ao poder, e também nas ondas da Rádio Nacional.

Chávez aquece a platéia por meio de alguns comentários mordazes. Dirigindo-se aos Estados Unidos, ele dispara o bordão: "Yankees, go home! Gringos, nós somos livres!" Ou, numa reflexão endereçada a Fidel Castro, a quem ele envia "un abrazo profundo": "Fidel, how are you?" (Como vai você?). Então, ele faz referência a Che Guevara, "o gigante argentino". Em seguida, Chávez apresenta para a platéia as pessoas que contam. Este ritual revela ser bastante demorado. O microfone circula. Todas elas fazem questão de agradecer ao anfitrião.

Passamos agora à lição de história, ilustrada por um pequeno filme. O tema do dia: a vida e a obra do marechal Antonio José de Sucre (1795-1830), um tenente do "libertador" Simon Bolívar. O glorioso morto é gratificado por Chávez com a honra suprema: Sucre era um "socialista".

Retornamos agora à atualidade recente. Uma conexão por satélite com a cidade de Puerto Cabello permite que um oficial se dedique a explicar, com um mapa nas mãos, as manobras aeronavais que possibilitaram o lançamento, dois dias antes, dos primeiros mísseis a partir de um navio patrulheiro e de cinco aviões Sukhoi 30. Os pilotos haviam recebido ordens para "abrirem fogo à vontade, em nome da dignidade da Venezuela". Uma seqüência mostra a organização da defesa civil, posicionada nas praias em caso de ataque marítimo. Chega então o prato de resistência político, aquele que irá proporcionar as manchetes dos jornais no dia seguinte. Chávez pede à guerrilha colombiana para libertar todos os reféns e entregar as armas.

O programa passa a abordar as realizações concretas da "pátria socialista". O quadro se inicia com aquela usina de "pedra moída", de onde Chávez está falando, onde rochas são trituradas para serem transformadas em areia. O "batalhão" dos operários se levanta. Chávez se permite uma brincadeira irônica sobre George W. Bush, que ele gostaria muito de ver "passar no triturador". Ele pega então os seus marcadores, e, com a sua mão esquerda, tira traços, em primeiro plano nas imagens, reproduzindo os esquemas da produção, a qual, segundo ele, traz a promessa de um futuro grandioso. Este é o seu lado meio professor de curso primário, meio estrategista em campanha. Em seguida, ele passa para os exercícios práticos, montando durante alguns minutos numa bicicleta "Atômica", fruto recém nascido da cooperação com o Irã.

O programa "Alô! Presidente" não é apenas um exercício de comunicação, ou um instrumento do desejo reivindicado de "hegemonia" frente ao "terrorismo" dos veículos de comunicação de oposição. É um ato de governo por meio do qual Chávez anuncia importantes decisões: a mobilização das suas tropas na fronteira colombiana, no início de abril; a nacionalização de uma empresa; a expropriação de uma fazenda; a demissão de um ministro. É a partir deste palanque que ele interpela um determinado comentarista, ou tal outro caricaturista: "Então, quanto foi que você recebeu do império?", ou ainda certo ministro: "Até que eu gosto de você, mas se você não tiver um desempenho à altura, serei obrigado a substituí-lo".

Passando por cima das administrações, cuja ineficiência é proverbial, o que ele deplora, Chávez dirige diretamente ao povo a sua boa palavra, ilustrada com slogans, longe do palácio presidencial. A grande maioria desses programas é realizada em localidades da província, seja numa escola, num centro de produção agrícola, num parque nacional, num complexo petroquímico, numa academia militar, e até mesmo num sítio arqueológico pré-colombiano. E ainda, em certos casos, no exterior, como foi o caso quando a filmagem aconteceu na frente do mausoléu do Che, em Santa Clara, um local histórico da revolução cubana.

A segunda parte do programa é constituída por um diálogo entre o presidente e alguns ouvintes que o entrevistam a respeito de diversos problemas da vida cotidiana. A esta altura, Chávez já está tomando seu décimo cafezinho. A cada meia-hora, um membro da produção lhe traz uma xícara de guayoyo, um café leve e muito açucarado. Quando o show se encerra, Chávez declama uma última vez o slogan em voga: "A pátria, o socialismo ou a morte!", e convida a platéia para cantar alegremente, enquanto uma orquestra entra em cena.

Neste domingo, a maratona presidencial durou cerca de 6 horas. O recorde, que foi alcançado em 23 de setembro de 2007 - 8 horas e 8 minutos -, ainda está por ser batido.

Tradução: Jean-Yves de Neufville
Texto do Le Monde, publicado no UOL.

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