As palavras do medo
As palavras do medo
EM TODOS OS atos e palavras que há 23 anos se contrapõem a respeito da extensão, ou não, da Lei da Anistia a militares autores de assassinatos, torturas e desaparecimentos na ditadura, os crimes figuram como os elementos mais perceptíveis, mas, a rigor, são subjacentes a um aspecto maior que encobre toda a nação. O impedimento de chegar-se à decisão definitiva da questão é uma forma de censura que nega o regime democrático e o Estado de Direito, e afirma a prevalência da força armada como uma ameaça tácita.
O reconhecimento desse estado permanente de censura e negação da democracia é explicitado por autoridades de todos os Poderes, presidente e ministros do Supremo Tribunal Federal, presidente da República, congressistas a granel: "Essa discussão não serve à estabilidade", "Não podemos ter uma conduta de escalada das tensões" (Nelson Jobim), "É preciso parar de xingar" os que "mataram estudantes e operários" (Lula), "Não é oportuno levantar esse assunto" (congressistas do governo e da oposição), conhecemos também as outras fórmulas. Nos 23 anos, nem a forma das frases variou. A única novidade foi a adesão, à corrente dos seus repetidores, de oportunistas que diziam o oposto antes de chegarem aos gabinetes ou aos banheiros do poder.
Por que, no país onde se considera a restrição à publicidade de produtos inconvenientes à infância como violação inconstitucional à liberdade de expressão, ecoam manifestações de censura como aquelas? A evidência crua é simples: expressam o medo e a convicção de que os militares, em especial os do Exército, reinstalariam a instabilidade, senão mais do que isso.
E aí está outra evidência crua: o não-argumento exposto naquelas manifestações pró-censura é uma forma de reconhecimento, por seus usuários, do Estado de democracia apenas aparente. Ou seja, da instabilidade pendente, para não se exteriorizar, de concessões que contrariam preceitos essenciais da democracia.
O truque
As palavras de Lula aos representantes da UNE têm um ar horrível de insinceridade. Se considera como "os nossos heróis" os "estudantes e operários que morreram" sob a repressão na ditadura, deveria respeitá-los, à sua memória, às suas famílias e à história de que foram personagens. Em vez de, primeiro, pôr-se no muro quando os crimes da ditadura voltam à superfície e, ao muxoxo imediato dos contrariados, abafar depressa a iniciativa de exame do assunto.
"Nossos heróis" de Lula foi um modo de neutralizar, em tempo, a esperável cobrança a respeito de mais um abafamento que fez.
Da coluna de Jânio de Freitas, na Folha de São Paulo, de 14 de agosto de 2008.
Marcadores: ditadura, ditadura militar, Golpe de 1964, Jânio de Freitas, tortura, torturadores
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