sexta-feira, janeiro 29, 2010

A "ocupação eterna" interessa a Israel

Porque a "ocupação eterna" interessa a Israel

Atualizado em 24 de janeiro de 2010 às 08:55 | Publicado em 24 de janeiro de 2010 às 08:42

Lieberman+Barak: animal bicéfalo

E uma 'universidade da ocupação'

23/1/2010, Uri Avnery, Gush Shalom [Grupo da Paz], Telavive


Parece ser governo de Benjamin Netanyahu. Mas não é.

Netanyahu jamais passou de vendedor ambulante de remédios. Aquele tipo que se vê nos filmes western americanos, que vende elixires que curam tudo: de gripe a tuberculose, de ataques cardíacos a miolo mole. A principal arma desse tipo de vendedor é a língua: uma catarata de palavras que inventa castelos no ar, libera bolhas luminosas e silencia qualquer dúvida.

Desde a eleição, há quase um ano, seu maior (literalmente) feito foi ter conseguido montar um gabinete: 30 ministros e um punhado de deputados, a maioria dos quais incapazes de produzir uma dúvida criativa sobre coisa alguma, alguns encarregados de ministérios para os quais foram os candidatos menos qualificados que se poderia imaginar. Dali em diante, Netanyahu só se ocupou na tarefa para a qual tem talento especial: sobreviver no mundo político.

Nesse zoológico governamental, a única criatura realmente importante chama-se [Avigdor] Lieberman, o-Barak-que-fala, o Lieberman-Barak – um monstro bicéfalo que mantém aterrorizados todos os demais animais. Esse monstro bicéfalo é 50% Lieberman, 50% Barak, 0% humano.

Quando Lieberman pela primeira vez apareceu em cena, muitos o olharam com desprezo. Tal ser, decidiram, não teria futuro na política israelense.

Por dez anos esteve sob investigação policial suspeito de prática de corrupção, de ter recebido dinheiro de misteriosas fontes estrangeiras e outros crimes.

Não bastasse, é a figura menos israelense que se possa imaginar, aos olhos de muitos israelenses. Então foi rotulado como “imigrante novo”, embora tenha imigrado há mais de 30 anos. Muitos israelenses “lêem” sua linguagem corporal e seu modo de agir e de ser como flagrantemente “não-israelenses”, um tipo de homem que “não é um de nós”. Como, então, os israelenses, de repente, elegeram tal figura?

Lieberman é colono e vive em Nokdim, uma colônia exclusiva para judeus próxima de Belém; os colonos de Nokdim não são populares em Israel. É racista declarado, odeia árabes e despreza a paz, homem cujo projeto declarado é “limpar Israel”, o que significa tirar de lá todos os árabes. Sim, há em Israel (como em todos os países) muito racismo latente, em parte inconsciente, mas esse racismo não é ostentado. Em Israel sempre foi impensável que os israelenses algum dia elegessem um racista declarado.

As últimas eleições puseram fim a essa certeza. O partido de Lieberman obteve 15 votos no Parlamento, dois a mais que o partido de Barak, e tornou-se a terceira força no Parlamento. Não poucos “verdadeiros” jovens israelenses, muitos Sabras votaram em Lieberman. Viram aí um bom destino para seus votos de protesto.

O establishment não pareceu muito chocado. OK, era apenas um voto de protesto. Em todas as campanhas eleitorais em Israel sempre aparece uma lista eleitoral de última hora, que some no dia seguinte, como o pé de hera do profeta Jonas. Onde andarão hoje todos aqueles candidatos?

Mas Lieberman não é o general Yigael Yadin, que criou o partido Dash, ou Tommy Lapid, líder do Shinui. É homem de poder brutal, sem qualquer tipo de escrúpulo, homem sempre rápido a apelar – nas palavras de Joseph Goebbels – aos instintos mais primitivos das massas.

Já se vê em Israel uma coalizão dos insatisfeitos com os furiosos, como a Bíblia diz de David, ao fugir do rei Saul: “E todos os homens que estavam em dificuldades, ou com dívidas, ou insatisfeitos também foram, e Davi se tornou o chefe deles” (1 Samuel 22:2). O grupo original de Lieberman é a comunidade de russos emigrados da ex-URSS que não foram absorvidos na sociedade israelense e que continuam a viver num gueto espiritual e social. Outros se juntam a eles: os colonos, os judeus orientais que se sentem traídos pelo partido Likud, jovens para os quais Lieberman manifesta abertamente o que eles só pensam em segredo: que os árabes devem ser expulsos do Estado e de todo o país.

Os ares não-israelenses de Lieberman são, em certo sentido, uma vantagem para ele. Alguém bem pouco israelense pode ser o líder ideal de um campo no qual se reúnem os que são movidos pelo ódio contra as “elites”, a Corte Suprema, a polícia, a imprensa e outros pilares da democracia israelense.

O fato de ser objeto de investigações policiais, também, o eleva aos olhos desse tipo de público. Crêem que esteja sendo perseguido pelas elites hipócritas. Nem a nuvem escura de suspeita que sempre acompanha Lieberman impediu Netanyahu de dar-lhe controle completo sobre dois ministérios – o ministério que controla a polícia interna e o ministério da Justiça, os dois ministérios aos quais compete preservar a lei, e que, hoje, estão entregues aos lacaios de Lieberman.

Esse perigo é terrível e não se o deve subestimar. Outros líderes históricos dessa mesma cepa, também foram ridicularizados, vistos como palhaços, antes de chegarem ao poder e a desgraça estar completa.

Mas a segunda cabeça do monstro Barak-Lieberman é ainda mais perigosa que a primeira. A metade Lieberman do monstro representa perigo futuro; a metade [Ehud] Barak do monstro representa perigo imediato e real.

Essa semana, Barak fez algo que obriga a acender mais um alarme vermelho. Atendendo a pedido de Lieberman, Barak promoveu a Escola da Colônia em Ariel ao status de universidade.

Ao contrário de Lieberman (que é “estrangeiro”), Barak é nascido no epicentro do Israel “dos velhos tempos”. Foi criado num kibutz, foi comandante no comando de elite do Estado-maior israelense, fala hebraico perfeito, com o sotaque ‘certo’. Como ex-comandante do Estado-maior e atual ministro da Defesa, Barak representa a elite do mais poderoso setor em Israel: o exército.

Lieberman ainda não conseguiu ferir de morte toda e qualquer possibilidade de fazer-se a paz, senão em discursos. Barak está agindo. Uma vez o chamei de “criminoso de paz”, como variedade de “criminoso de guerra”; hoje, já faz jus aos dois títulos.

O golpe fatal com que Barak feriu de morte as chances de paz aconteceu depois da conferência de Camp David em 2000. Relembrando, para atualizar: quando foi eleito em 1999 com ampla maioria, na onda de entusiasmo no campo da paz, e com a ajuda de slogans declaradamente pacifistas (“Mais Educação, Menos Colônias!”), Barak induziu os presidentes Bill Clinton e Yasser Arafat a reunirem-se em conferência com ele.

Com mistura típica de arrogância e ignorância, Barak acreditava que, se oferecesse aos palestinos a chance de fundar um Estado, eles abririam mão de todas as demais exigências. O que ofereceu então foi de fato mais do que seus antecessores haviam oferecido, mas ainda muito menos do que o mínimo que os palestinos poderiam cogitar de aceitar. E a conferência fracassou.

Na volta de Camp David, Barak não fez o comunicado de praxe (“Avançamos muito e as conversações continuarão”), nem algum jamais acontecido “Desculpem, errei, não tinha nem ideia do que se discutiria lá”. Em vez disso, Barak cunhou um mantra que, incansavelmente repetido depois, se tornou o centro de um consenso nacional, como se fosse verdade indiscutível:

“Levantei cada pedra que encontrei na estrada da paz. / Ofereci aos palestinos tudo que poderiam desejar. / Rejeitaram tudo. / Não temos parceiros para a paz.”

Essa declaração, feita pelo líder do partido Trabalhista, que se intitula “líder do campo da paz”, foi golpe mortal contra as forças da paz em Israel – que tanto haviam esperado de Barak. A vasta maioria dos israelenses creem hoje, de todo o coração, que “não temos parceiros para a paz”. E assim Barak abriu caminho para a ascensão ao poder, de Ariel Sharon e Benjamin Netanyahu.

Durante todo o seu governo, Barak só fez criar e ampliar colônias exclusivas para judeus. Sob suas ordens, o Oficial Comandante do Comando Central autorizou a instalação de uma estação de rádio exclusiva para os colonos judeus (mais tarde convertida em rede nacional, depois que o Grupo da Paz perdeu longa luta de oposição à ampliação dessa rádio). Nesse ponto, também agiu “como um Lieberman”. A decisão de criar a universidade Ariel exclusiva para colonos judeus encaixa-se nesse padrão.

“Mas...calma lá” – dirão as almas sensíveis. “O que tem isso a ver com Barak? Barak é ministro da Defesa, não é ministro da Educação!”

Ariel é Território Ocupado. Nos Territórios Ocupados, o exército é o único poder soberano. Barak manda no exército. A ordem para converter o Colégio Ariel, numa colônia exclusiva para judeus, em universidade Ariel exclusiva para judeus foi ordem dada por Barak ao comandante do exército em Ariel. Como disse Yossi Sarid, ex-ministro da Educação, “a Universidade Ariel é a única universidade civil, no mundo democrático, criada pelo exército”.

Em Israel, uma instituição acadêmica tem de percorrer longo caminho e satisfazer vários requisitos antes de receber status de universidade pelas autoridades competentes. Há inúmeras escolas em Israel muito mais bem qualificadas que o Colégio Ariel, e que aspiram à promoção ao status de universidades. Mas, nos Territórios Ocupados, basta que um general ordene.

Esse fato lança luz sobre fato que é invenção sem precedentes, criação completamente israelense: a Ocupação Eterna.

Regimes de ocupação são, pela própria natureza, situação precária, temporária. Há ocupação quando um dos lados em guerra conquista território do adversário. O poder ocupante passa então a governar territórios ocupados, mas deve respeitar legislação internacional específica, até o final da guerra – quando se espera que o acordo de paz decida quanto ao futuro do território ocupado.

Guerras podem durar anos, até muitos anos, mas a ocupação não se torna ‘eterna’, a menos, é claro, que alguém aceite a ideia de uma guerra eterna. Aí está: vários governos israelenses estão convertendo tanto a ocupação quanto a guerra, em situação normal, permanente.

Por quê? No início da ocupação da Palestina, o ministro da Defesa, Moshe Dayan, descobriu que a ocupação é, de fato, uma situação perfeita! Pelas suas contas, a ocupação daria à potência ocupante poder absoluto, sem qualquer dever em relação à população que viva na área ocupada, sem que nada obrigue a respeitar quaisquer direitos!

Se Israel decidisse anexar os territórios, algo teria de ser feito com os seres humanos que lá viviam. A coisa poderia complicar… Os habitantes de Jerusalém Leste, por exemplo, formalmente anexada por Israel em 1967, não ganharam a cidadania israelense; são apenas “residentes”. De fato, há muitos anos os governos israelenses temem que o mundo não reconheça como “Estado democrático”, uma Israel na qual 1/3 da população não tem qualquer tipo de direitos.

A situação de 'ocupação eterna' resolve todas essas dificuldades. Quem viva nos territórios ocupados não tem, de fato, absolutamente direito algum – nem direitos nacionais, nem direitos civis, nem direitos humanos. O governo de Israel constrói colônias exclusivas para judeus onde bem queira – o que também é expressamente proibido pelas leis internacionais. Assim como implanta colônias, agora decidiu implantar também uma universidade exclusiva para judeus. (...)

O governo espanhol já declarou boicote ao Colégio Ariel e cancelou sua participação num concurso de arquitetura que a Espanha patrocina. Espero que mais governos e instituições acadêmicas sigam esse exemplo e boicotem a nova “universidade da ocupação eterna”.

Claro, o animal bicéfalo Lieberman+Barak, não se incomoda; as duas cabeças são indiferentes a boicotes. Mas se a comunidade acadêmica israelense não se erguer contra esse tipo de prostituição dos ideais acadêmicos – a criação de uma universidade exclusiva para colonos judeus, patrocinada pelo exército de ocupação na Palestina – bem pode ser o caso de que todas as universidades do mundo devessem boicotar todas as universidades israelenses.

Texto visto no Vi o Mundo.

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Não vai dar no Jornal Nacional: Aparece uma vala comum na Colômbia com 2 mil cadáveres

Os corpos sem identificação foram depositados pelo Exército a partir de 2005

do jornal espanhol Público, sugerido por um leitor anônimo

por Antonio Albiñana, Bogotá, 26/01/2010

No pequeno povoado de Macarena, região de Meta, 200 quilômetros ao sul de Bogotá, uma das zonas mais quentes do conflito colombiano, está sendo descoberta a maior vala comum da história recente da América Latina, com uma cifra de cadáveres enterrados sem identificação, que poderia chegar a 2.000 segundo diversas fontes e os próprios residentes. Desde 2005 o Exército, cujas forças de elite estão baseadas nos arredores, depositou atrás do cemitério local centenas de cadáveres com a ordem para que fossem enterrados sem nome.

Trata-se do maior túmulo de vítimas de um conflito de que se tem notícia no continente. Seria preciso ir ao Holocausto nazista ou à barbárie de Pol Pot no Camboja para encontrar algo desta dimensão.

O jurista Jairo Ramírez é o secretário do Comitê Permanente pela Defesa dos Direitos Humanos na Colômbia e acompanhou uma delegação de parlamentares ingleses ao lugar faz algumas semanas, quando começou a se descobrir a magnitude da cova de Macarena. "O que vimos foi estarrecedor", declarou ao Público. "Infinidade de corpos e na superfície centenas de placas de madeira de cor branca com a incrição NN e com datas desde 2005 até hoje".

Desaparecidos

Ramírez acrescenta: "O comandante do Exército nos disse que eram guerrilheiros, baixas em combate, mas as pessoas da região dizem que são líderes sociais, camponeses e defensores comunitários que desapareceram sem deixar rastro".

Enquanto a Promotoria anuncia investigações "a partir de março", depois das eleições legislativas e presidenciais, uma delegação parlamentar espanhola integrada por Jordi Pedret (PSOE), Inés Sabanés (IU), Francesc Canet (ERC), Joan-Josep Nuet (IC-EU), Carles Campuzano (CiU), Mikel Basabe (Aralar) e Marian Suárez (Eivissa pel Canví) chegou ontem à Colômbia para estudar o caso e fazer um informe para o Congresso e a Eurocâmara. Para investigar a situação da mulher como vítima e os sindicalistas (somente em 2009 foram assassinados 41), também vão trabalhar em outras regiões do país.

Mais de mil covas

O horror de Macarena trouxe de volta o debate sobre a existência de mais de mil covas comuns de cadáveres sem identificar na Colômbia. Até o final do ano passado, os legistas haviam contados cerca de 2.500 cadáveres, dos quais haviam conseguido identificar 600 para entregar os corpos a seus familiares.

A localização destes cemitérios clandestinos foi possível graças a declarações dos chefes de médio escalão dos paramilitares desmobilizados, anistiados pela controvertida Lei de Justiça e Paz que garante a eles pena simbólica em troca da confissão de seus crimes.

A últimas destas declarações foi de John Jairo Rentería, o Betún, que acaba de revelar à Promotoria e aos familiares das vítimas que ele e seus sequazes enterraram "mais ou menos 800 pessoas" na fazenda Villa Sandra, em Porto Asís, região de Putumayo. "Era preciso esquartejar as pessoas. Todas as Autodefesas [grupo paramilitar] tinham que aprender isso e muitas vezes se fazia com as pessoas vivas", confessou o chefe paramilitar ao promotor de Justiça e Paz.

Notícia do Vi o Mundo.


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quinta-feira, janeiro 28, 2010

A Ascensão do Kibutz Capitalista

A ascensão do kibutz capitalista

Tobias Buck

As fazendas coletivas de Israel eram originalmente baseadas em ideais socialistas e igualitários. Hoje, muitas se transformaram em grandes empresas privadas

Situado em meio às colinas na região central de Israel, o Kibutz Nachshon é um aglomerado de casas simples à sombra de pinheiros e cercadas por jardins e plantações. A calma da metade do dia é quebrada apenas ocasionalmente, quando um trator se dirige de forma barulhenta para um silo de grãos ou quando crianças passam a caminho da creche.

Para um visitante casual, Nachshon passou os últimos quatro anos em meio a uma revolução social e econômica que varreu grande parte dos ideais socialistas e práticas igualitárias que marcaram este experimento em vida comunal. Os prédios e campos ainda são os mesmos, as inclinações esquerdistas ainda estão ali, assim como um senso de solidariedade. Mas em termos práticos, as vidas de moradores do kibutz como Jane Ozeri mudaram até ficarem irreconhecíveis.

Ozeri, 55 anos, chegou do Reino Unido a Nachshon há 30 anos, atraída pela mistura única de socialismo e sionismo do movimento kibutz. "Eu me apaixonei por toda esta ideia de todos serem iguais, de todos cuidando uns dos outros", ela recorda.

Ao mesmo tempo, ela trabalhava sempre que o kibutz precisava dela: na cozinha comunal, nos campos, no galinheiro ou na escola. Moradores do kibutz como ela não recebiam salário, apenas um magro estipêndio mensal que era "mais como um trocado". Em troca, a comunidade fornecia moradia gratuita, alimento, educação, roupas, atendimento de saúde, transporte e até cigarros. Se Ozeri quisesse visitar sua família no Reino Unido, a assembleia do kibutz discutia os méritos de seu caso e então votaria pelo pagamento ou não de sua passagem.

Hoje, Ozeri possui um cartão de visita que a identifica como "coordenadora global de vendas" da Aran Packaging, uma empresa que produz embalagens para líquidos para a indústria alimentícia. Localizada no kibutz e de propriedade de seus membros, a empresa conta com vendas de quase US$ 40 milhões por ano e envia seus produtos para 35 países ao redor do mundo. Ozeri recebe um salário do qual pode fazer uso livre, mas que também é consideravelmente mais alto do que aquele que é pago aos operários na linha de montagem e aos trabalhadores no campo. Ela diz que a divisão salarial na Aran é semelhante ao de outras empresas do setor privado.

A igualdade, antes no centro da ideologia do kibutz, também foi violada de outras formas. Tarefas que costumavam ser realizadas pelos moradores do kibutz independentemente de seu grau de escolaridade e formação -como lavar os pratos- são hoje realizadas por empregados contratados de fora da comunidade.

As posturas em relação aos negócios também mudaram radicalmente. Nos anos 80, os membros do Nachshon votaram contra um plano para abertura de um posto de gasolina na estrada próxima, porque forçaria os moradores orgulhosos do kibutz a "servirem" os motoristas.

Hoje, muitos dos moradores de kibutz não apenas possuem negócios prósperos -inclusive na indústria de turismo- que funcionam exatamente como outras empresas privadas, como também decidiram abraçar o mercado de capital: 22 empresas de kibutz estão atualmente listadas nas bolsas de valores de Tel Aviv, Nova York e Londres. Com vendas anuais no valor de US$ 10 bilhões de dólares (cerca de R$ 18,2 bilhões), as empresas de kibutz representam cerca de 10% da produção industrial de Israel.

A agricultura ainda é importante para a maioria dos moradores dos kibutzim, apesar de que menos do que durante seus primórdios. De fato, a mudança para a indústria que teve início nos anos 60 e 70 foi um fator importante que persuadiu os moradores dos kibutzim a mudarem de ideia: eles perceberam que uma fábrica, diferente de uma fazenda, é difícil de ser dirigida de modo igualitário. Resumindo, alguém tinha que dirigir e alguém tinha que permanecer na linha de montagem.

Mas a transformação do kibutz de bastião socialista em cooperativa capitalista é, acima de tudo, um reflexo de uma mudança muito mais ampla na sociedade israelense. À medida que o país começou a prosperar durante os anos 80, os israelenses começaram cada vez mais a abandonar o etos socialista frugal que dominou os primeiros anos do Estado.

Foi um desdobramento que não deixou os kibutzim intocados. "O kibutz nunca foi isolado da sociedade", diz Shlomo Getz, diretor do Instituto para Pesquisa do Kibutz, na Universidade de Haifa. "Ocorreu uma mudança de valores em Israel e uma mudança de padrão de vida. Muitos moradores de kibutz agora queriam as mesmas coisas que seus amigos de fora do kibutz."

Ozeri diz: "As pessoas queriam mais controle sobre suas próprias vidas e economias. Elas queriam tomar suas próprias decisões, ter seu próprio carro e seu próprio telefone. É muito difícil viver nesta forte vida comunal. É cansativo".

Enquanto essas tendências sociais ganhavam força, o movimento kibutz recebeu um golpe de nocaute de uma direção diferente. Buscando uma diversificação longe da agricultura, mais e mais moradores começaram a se interessar pela indústria, montando empresas que -frequentemente sobrecarregadas pela falta de experiência administrativa e de capital- davam enormes prejuízos.

O resultado foi uma crise de dívida, um resgate por parte do governo em 1985 e todo um reexame da filosofia econômica do kibutz.

"A sociedade israelense sempre viu os moradores de kibutz como uma elite. Mas agora eles eram considerados um mero grupo de interesse que dependia do dinheiro do Estado", diz Getz.

A resposta para o dilema -e para as dificuldades financeiras das comunidades- veio na forma da privatização -um processo que começou lentamente nos anos 90 e vem ganhando força desde então.

Nachshon, por exemplo, finalmente decidiu abandonar o coletivismo em 2006. Em um chamado "kibutz privatizado", os membros podem fazer uso livre de seus salários, mas em troca eles têm que pagar por todos os bens e serviços que o kibutz antes costumava fornecer gratuitamente.

Com frequência cada vez maior, os moradores descobriram que preferiam preparar sua própria comida, lavar sua própria roupa e ter seu próprio carro do que fazer uso das instalações comunais. Até mesmo o refeitório -antes o coração de cada comunidade, onde os membros costumavam se reunir, comer e conversar diariamente- se tornou vítima da privatização: em alguns kibutzim, a frequência caiu tanto que o refeitório foi totalmente abandonado.

Omer Moav, um ex-morador de kibutz que agora ensina economia na Royal Holloway University de Londres e presta consultoria ao ministro das Finanças de Israel, argumenta que o movimento kibutz estava destinado a fracassar. Ele funcionou, ele diz, apenas enquanto seus membros desfrutavam de um padrão de vida comparável, se não melhor, ao da média israelense. "As pessoas respondem a incentivos. Nós ficamos felizes em trabalhar arduamente para nossa própria qualidade de vida, nós gostamos de nossa independência", ele diz. "Tudo se trata da natureza humana -e um sistema socialista como o kibutz não se encaixa na natureza humana."

Mas nem todo o velho etos do kibutz desapareceu. Casas, terras e instalações de produção, por exemplo, ainda são mantidos coletivamente. Todos os kibutzim privatizados operam uma chamada "rede de proteção", que faz uso de contribuições individuais para assegurar que os membros tenham um padrão de vida mínimo -mas não mais igual. E apesar de seu número estar caindo rapidamente, dos 262 kibutzim existentes em Israel atualmente, cerca de 65 ainda funcionam do modo tradicional, enquanto 188 foram totalmente, e nove parcialmente, privatizados.

Mas poucos discordariam do resumo de Ozeri para a transformação. Em grande parte, ela diz, "nós agora somos iguais a todo mundo".

Tradução: George El Khouri Andolfato

Texto do Financial Times, reproduzido no UOL.


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quarta-feira, janeiro 27, 2010

Vestígios da Operação Condor na fronteira da Argentina com o Brasil

Escavações revelam detalhes da repressão na Operação Condor

Antiga fazenda na fronteira com a Argentina foi um centro de detenção clandestino para opositores de ditaduras nos anos 70

Local passou a ser usado em 1976 para que suspeitos de atuar em grupos de esquerda pudessem ser interrogados, torturados e executados

ANA FLOR
ENVIADA ESPECIAL A URUGUAIANA (RS)

Novas escavações em uma fazenda na fronteira entre Brasil e Argentina trouxeram à tona detalhes das atividades da repressão no fim dos anos 70 na chamada Operação Condor -ação das ditaduras militares dos países da América do Sul.
A Estância La Polaca, a 15 km de Paso de Los Libres (Argentina) e às margens do rio Uruguai, foi um centro de detenção clandestino para onde eram levados opositores das ditaduras. Em dezembro, a Justiça argentina determinou nova busca de corpos no local. Acredita-se que lá possam estar enterrados militantes de esquerda.
Antiga fazenda de gado, La Polaca é um local sem moradores. Sua existência como centro de detenção foi confirmada em 2005, pelo depoimento de um ex-agente de inteligência do Exército argentino, Carlos Waern. O local começou a ser usado em 1976. Para lá eram levadas pessoas suspeitas de pertencer a grupos de resistência que passavam por Uruguaiana -fronteira binacional- para ir a Brasil, Argentina e Uruguai.
Segundo a pesquisadora Sabrina Steinke, da PUC-RS, de 1976 a 1978 várias fazendas foram tomadas por empréstimo na Argentina. Serviam de prisão onde os detidos eram interrogados, torturados e executados. "A prisão clandestina de estrangeiros na Argentina mostra que esses centros não serviam apenas ao governo argentino, mas sua manutenção estava relacionada à Condor."
La Polaca surgiu na contraofensiva da ditadura argentina para deter montoneros, grupo de origem peronista que tentou fazer um levante contra o regime no país no final dos anos 70. Ao menos dois deles foram detidos pela Argentina em Uruguaiana -procedimento ilegal que a Condor tornou rotineiro.
A partir de 1978, a Argentina passou a usar os presos, depois de torturados, como "marcadores". Tornavam-se informantes da repressão e, levados à ponte onde fica a fronteira de Libres e Uruguaiana, delatavam companheiros da esquerda que tentavam cruzar de ônibus.
Lorenzo Ismael Viñas e Jorge Oscar Adur, detidos em Uruguaiana em 26 de junho de 1980, teriam sido identificados por marcadores. O desaparecimento dos dois em solo brasileiro, reconhecido pelo Brasil, é investigado pela Procuradoria da República de Uruguaiana, que pretende denunciar os responsáveis criminalmente.
Segundo depoimentos, Adur teria passado por La Polaca.

Copa
La Polaca e os outros centros podem ter sido usados para esconder do mundo a repressão no país durante a Copa de 1978. Com o campeonato, foi necessário tirar presos ou sessões de interrogação de Buenos Aires.
Em documento obtido pelo Movimento de Justiça e Direitos Humanos de Porto Alegre, a polícia argentina pede ajuda ao Brasil para "localizar e deter montoneros" que eram uma ameaça para a "tranquilidade" da Copa do Mundo. "A busca dessas pessoas, consideradas inimigas do governo, era feita em conjunto e sistematicamente", afirma Jair Krischke, presidente do movimento.

Ministério Público investiga dois desaparecimentos na fronteira

DA ENVIADA A URUGUAIANA (RS)

Com base em uma ação da Justiça italiana que responsabiliza militares sul-americanos pelo desaparecimento de militantes de esquerda de origem italiana durante as ditaduras militares, o Ministério Público Federal investiga o sumiço de duas pessoas em Uruguaiana.
No único inquérito aberto no país para apurar criminalmente ações do regime militar, o procurador da República da cidade, Ivan Cláudio Marx, solicitou à Polícia Federal a investigação do desaparecimento do ítalo-argentino Lorenzo Ismael Viñas e do padre argentino Jorge Oscar Adur.
Os dois sumiram no mesmo dia, em ônibus diferentes, quando cruzavam a fronteira entre Paso de Los Libres (Argentina) e Uruguaiana.
Os crimes ocorreram por conta da Operação Condor. O caso de Viñas, por ser de origem italiana, faz parte do processo do país europeu. A Justiça da Itália indiciou 13 militares brasileiros. Em 2007, o país pediu ajuda ao Brasil para que os acusados ainda vivos fossem julgados. Entre eles, responsáveis à época pelo SNI (Serviço Nacional de Informações) e um ex-secretário de Segurança do Rio Grande do Sul.
Tanto o caso de Viñas quanto o de Adur foram reconhecidos pelo governo brasileiro, que pagou indenização às famílias.

Notícias da Folha de São Paulo, de 25 de janeiro de 2010: 1 e 2.

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terça-feira, janeiro 26, 2010

Do Chile ao Brasil

Do Chile ao Brasil

A DITADURA liderada pelo general Pinochet no Chile manteve controle estrito sobre o processo de transição para a democracia, durante a década de 1980. No Brasil, pode-se dizer que os militares conseguiram manter relativo controle do processo até a eleição indireta de Tancredo Neves à Presidência, em 1985. Mas não depois disso.
Para derrotar Pinochet, os mais variados partidos de oposição fizeram um grande acordo para as eleições presidenciais de 1989. Foi um movimento que ficou conhecido como "Concertación" e que se manteve no poder por 20 anos. Até a derrota do último domingo, com a eleição do candidato de direita Sebastián Piñera.
O Brasil da redemocratização foi marcado por pelo menos dez anos de disputa selvagem entre grupos e partidos políticos, sem que nenhum deles conseguisse se impor sobre os demais. Até que a coalizão do Plano Real conseguiu impor um modelo de desenvolvimento para o país. E, como consequência, estabeleceu o PT como o líder do segundo polo do sistema político.
O curioso é que, apesar dessa polarização a partir de 1994, também o Brasil acabou por construir a sua Concertación. Os 16 anos de Lula e FHC representam o estabelecimento de um acordo de base extenso e detalhado entre os dois polos da política brasileira. A tal ponto que vai ser difícil ver reais diferenças entre as campanhas de Serra e de Dilma, por exemplo.
No último domingo, a Concertación no Chile foi derrotada duplamente. Em primeiro lugar, por Marco Enriquez-Ominami, candidato de 36 anos que alcançou nada menos que 20% dos votos no primeiro turno das eleições presidenciais. Saído do interior da Concertación, Ominami posicionou-se à esquerda do candidato da situação.
Sua votação mostrou que o modelo chegou a seu limite.
A Concertación chilena foi derrotada também porque sua estratégia de longo prazo para neutralizar a direita se esgotou. A ideia de incorporar seletivamente ao grande acordo temas e grupos da direita deixou de funcionar. O eleitorado optou pela polarização e acabou dando a vitória a uma direita que ainda mantém laços e bases importantes no período Pinochet.
Ao dizer que nas eleições de 2010 não haverá candidaturas truculentas, Lula apenas colocou em palavras a Concertación brasileira. Também usa todo o seu poder para manter essa Concertación sob a forma curiosa da polarização PT-PSDB. Pode ser que ainda dure algum tempo. Mas o fato é que, se não fizer nada para mudar, a Concertación brasileira estará se preparando tanto para o seu Ominami como para o seu Piñera.

Texto de Marcos Nobre, na Folha de São Paulo, de 19 de janeiro de 2010.


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segunda-feira, janeiro 25, 2010

Democracia no Haiti

O Brasil deve defender a democracia no Haiti

MARK WEISBROT

MUITO TEMPO antes do terremoto, a situação do Haiti já era comparável à de muitos sem-teto nas ruas de grandes cidades dos EUA: pobres demais e negros demais para ter os mesmos direitos concretos que outros cidadãos.
Em 2002, quando um golpe militar que teve o apoio dos EUA afastou temporariamente o governo eleito da Venezuela, a maioria dos governos no hemisfério reagiu rapidamente e ajudou a forçar o retorno do governo democrático. Mas, dois anos mais tarde, quando o presidente haitiano democraticamente eleito, Jean-Bertrand Aristide, foi sequestrado pelos Estados Unidos e levado de avião para o exílio na África, a reação foi fraca.
Diferentemente dos dois séculos de saque e pilhagem do Haiti desde sua fundação graças a uma revolta de escravos em 1804, da ocupação brutal por fuzileiros navais dos EUA entre 1915 e 1934 e das incontáveis atrocidades cometidas sob ditaduras auxiliadas e apoiadas por Washington, o golpe de 2004 não pode ser relegado ao esquecimento, visto como nada mais que "história antiga". Aconteceu há apenas seis anos e é diretamente relacionado ao esforço de ajuda e reconstrução que o presidente Obama está propondo agora.
Os Estados Unidos, ao lado de Canadá e a França, conspiraram abertamente durante quatro anos para derrubar o governo eleito do Haiti, cortando quase toda a ajuda internacional ao país com o objetivo de destruir sua economia e torná-lo ingovernável. Eles conseguiram.
Para aqueles que se indagam por que não existem instituições governamentais haitianas para ajudar com os esforços de socorro e ajuda às vítimas do terremoto, essa é uma das grandes razões. Ou o porquê de haver 3 milhões de pessoas amontoadas na área atingida pelo terremoto.
A política dos EUA ao longo dos anos também ajudou a destruir a agricultura haitiana, por exemplo, ao forçar a importação de arroz americano subsidiado e eliminar milhares de plantadores de arroz haitianos.
O primeiro governo democrático de Aristide foi derrubado após apenas sete meses, em 1991, por oficiais militares e esquadrões da morte que, mais tarde, se descobriu estarem a soldo da Agência Central de Inteligência dos EUA. Agora Aristide quer retornar a seu país, algo que a maioria dos haitianos reivindica desde sua derrubada.
Mas os EUA não o querem ali. E o governo Preval, que é completamente dependente de Washington, decidiu que o partido de Aristide -o maior do Haiti- não será autorizado a concorrer nas próximas eleições (previstas originalmente para fevereiro).
O medo que Washington tem da democracia no Haiti talvez explique o porquê de os Estados Unidos agora estarem enviando 10 mil soldados e priorizando a "segurança", em lugar das necessidades de vida ou morte dos milhares de pessoas que precisam de atendimento médico urgente.
Na manhã de domingo, o mundialmente renomado grupo humanitário Médicos Sem Fronteiras queixou-se que um avião transportando sua unidade hospitalar móvel foi obrigado pelos militares americanos a mudar de rota, passando primeiramente pela República Dominicana. Isso custaria 24 horas cruciais e um número desconhecido de vidas.
Essa ocupação militar por tropas dos EUA vai suscitar outras preocupações no hemisfério, dependendo de quanto tempo elas permanecerem -assim modo como a ampliação recente da presença militar dos Estados Unidos na Colômbia vem sendo recebida com insatisfação e desconfiança consideráveis.
Organizações não governamentais vêm levantando outras questões sobre a reconstrução proposta: compreensivelmente, querem que a dívida remanescente do Haiti seja cancelada e que sejam feitas doações ao país, e não empréstimos (o FMI propôs um empréstimo de US$ 100 milhões). As necessidades da reconstrução chegarão a bilhões de dólares.
Será que Washington vai incentivar o estabelecimento de um governo que funcione? Ou vai impedi-lo, canalizando a assistência por meio de ONGs e assumindo ele próprio várias outras funções, devido a sua oposição de longa data à autonomia do Haiti?
O Brasil não segue a linha de Washington na América do Sul nem, mais recentemente, o fez em Honduras, "quintal" dos Estados Unidos -onde o governo brasileiro defendeu em vão a restauração da democracia após o golpe de 28 de junho, e a administração Obama, não.
Por que não defender a democracia também para o Haiti, mesmo que Washington seja contra?


MARK WEISBROT, doutor em economia pela Universidade de Michigan, é codiretor do Centro de Pesquisas Econômicas e Políticas, em Washington ( www.cepr.net ). Tradução de Clara Allain .

Texto publicado na Folha de São Paulo, de 19 de janeiro de 2010.

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quinta-feira, janeiro 21, 2010

Cuba e Alemanha

Revolução Cubana e Alemanha reunificada

DOIS LIVROS do historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira acabam de ter nova edição: "A Reunificação da Alemanha" e "De Marti a Fidel". O título do primeiro livro é autoexplicativo; o do segundo é uma análise da Revolução Cubana até hoje.
O que há de comum entre os livros é o fato de os dois países terem vivido a experiência do estatismo ou do socialismo real; o que há de diferente é o fato de que, na antiga Alemanha Oriental, como nos demais países do Leste Europeu, não há mais comunismo, enquanto em Cuba o regime autoritário continua forte. Como explicar esse fato?
Moniz Bandeira naturalmente não se coloca essa questão, mas é possível perceber sua atitude favorável a Cuba e contrária à experiência comunista na Alemanha. No prefácio à segunda edição de "De Marti a Fidel", ele ressalta a violência dos EUA em relação ao regime cubano, as tentativas explícitas de sua desestabilização e, depois que Fidel Castro, doente, se afastou do governo, o número de vezes que a diplomacia e o sistema de inteligência americano "mataram" Fidel e o regime. Por que essa diferença de atitude?
Há uma diferença fundamental entre os países do Leste Europeu e Cuba. Naqueles países, inclusive na Alemanha Oriental, não houve uma revolução de independência nacional após a Segunda Guerra Mundial, mas sua submissão forçada ao imperialismo da União Soviética, enquanto, em Cuba, o imperialismo anterior e posterior à revolução foi sempre dos EUA, e a Revolução Cubana foi uma revolução de libertação nacional, que, depois, buscou se associar à União Soviética.
Isso faz uma imensa diferença, porque os europeus, ao se livrarem do comunismo, estavam se livrando também de uma potência imperial vizinha, enquanto os cubanos, se decidirem terminar sua experiência de socialismo real, provavelmente alienarão sua independência real aos Estados Unidos. A "democracia" significará o retorno ao poder das elites anticastristas de Miami.
Entretanto o fracasso do sistema comunista na Europa oriental, como o colapso da União Soviética, foi também um fracasso econômico. O sistema planejado revelou-se incapaz de coordenar com eficiência sistemas econômicos que já haviam ultrapassado o estágio da industrialização pesada e requeriam a criatividade e a inovação que só os mercados garantem. Conforme afirma Moniz Bandeira no final de seu livro sobre Cuba, "o que a Revolução Cubana promoveu, não obstante alguns dos seus feitos, como a melhoria dos níveis de saúde, baixando significativamente a mortalidade infantil, e a eliminação do analfabetismo, foi a socialização da pobreza".
Não será esse fato que levará também a experiência cubana ao fracasso? É possível. No momento, os cubanos estão apostando na via chinesa, ou seja, na abertura para o capitalismo antes da abertura para a democracia. Na China, a estratégia foi bem-sucedida; em Cuba, as condições são muito diferentes e as resistências ao aumento das desigualdades que essa opção representará são grandes, mas é preciso aguardar.
O que é certo é que os cubanos não querem novamente se subordinar aos EUA e às elites cubanas corruptas e autoritárias que os americanos apoiam. Querem o desenvolvimento econômico e a democracia e sabem que a dependência em relação ao vizinho não é o melhor caminho nessa direção. Será o chinês? Ou haverá uma alternativa de desenvolvimento independente, mas democrática? Apenas os próprios cubanos poderão responder a tais perguntas.

Texto de Luiz Carlos Bresser-Pereira, na Folha de São Paulo, de 18 de janeiro de 2010.


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A Força Unilateral do Bem

Assim o Comando Militar Sul dos Estados Unidos propagandeia sua própria atuação em 2009

"Virtualmente todos os povos com vizinhos mais fracos atacaram e saquearam os vizinhos e quando possível os subjugaram, às vezes os dizimaram. Competição por poder e riqueza sempre esteve interligada com as outras forças que movem a História". Victor Kiernan em Impérios e Exércitos Coloniais, 1815-1960.

por Luiz Carlos Azenha

Diz-se, nos Estados Unidos, que a política externa de Washington é ditada pelas necessidades domésticas do ocupante da Casa Branca. É verdade.

O presidente Barack Obama acaba de resgatar George W. Bush das trevas para encarregá-lo, ao lado de Bill Clinton, de liderar uma campanha nacional para levantar fundos e dirigir a aplicação do dinheiro no Haiti.

Os Estados Unidos são o único país do mundo com o poder logístico suficientemente sofisticado para atender aos milhões de haitianos que tiveram as vidas completamente devastadas por um terremoto. Dispõem de alta tecnologia, de Forças Armadas numerosas e do poder político necessário para deslocá-las para qualquer parte do mundo.

O constrangimento a que o Brasil foi submetido nas últimas horas é natural em circunstâncias extraordinárias como as atuais. Washington pode deslocar com facilidade 10 mil soldados para o Haiti em algumas horas, mais do que todo o contingente da Missão de Estabilização das Nações Unidas, a Minustah, presente no país.

O Exército americano dispõe de tradutores, de equipamento e de provisões para cumprir todas as tarefas necessárias em um desastre como o do Haiti, ou pelo menos cumprí-las melhor que uma tropa da ONU que fala diversos idiomas, tem dificuldades para se comunicar em francês com os haitianos ou não dispõe de um porta-aviões com aeronaves que facilitam o transporte.

Mais do que isso, é preciso considerar que o Pentágono passou a enfatizar as ações humanitárias para dar cobertura ao seu envolvimento na política interna de seus vizinhos de Hemisfério.

Durante o governo de George W. Bush, houve um deslocamento da política externa dos Estados Unidos dos diplomatas do Departamento de Estado para os militares e os formuladores do Pentágono, com grande ênfase em ações humanitárias. Os fuzileiros navais desembarcariam não mais para trocar governos ou matar a população civil, mas em nome de salvá-las de desastres naturais, ecológicos, caos social ou outras emergências do gênero.

Os dois maiores projetos militares dos Estados Unidos para a América Latina são apresentados com um tom humanitário e/ou policial: o combate ao narcotráfico na Colômbia e a Iniciativa Mérida, no México.

Para combater as consequências da desigualdade social resultante da política de governos que tiveram o apoio dos Estados Unidos, Washington não prega reformas econômicas ou sociais, nem o atendimento das demandas políticas da população local. Propõe uma política salvacionista, que aprofunda a dependência das elites locais da benesse dos Estados Unidos.

Podem chamar de imperialismo com outro nome. É este o sentido da oposição dos Estados Unidos a Hugo Chávez: o presidente venezuelano representa o ressurgimento do nacionalismo na América Latina e a pregação dele em defesa da soberania local se contrapõe diretamente ao controle dos Estados Unidos sobre o hemisfério que é extensão do território estadunidense.

Embora Washington tenha se "distraído" durante o governo Bush com aventuras militares no Oriente Médio, razão pela qual concordou em dividir com o Brasil algumas das atribuições de patrulhar a América Latina, os formuladores da política externa americana se deram conta de que é preciso assumir o controle regional, especialmente num quadro de escassez de recursos energéticos, da invasão de sua zona de influência por paises como a China e a Rússia e da ascensão de um modelo alternativo expresso por Chávez-Morales-Correa.

Chávez está sentado sobre gigantescas reservas de petróleo. Morales, sobre gigantescas reservas de gás. Correa desmantelou uma base militar importante para os Estados Unidos na costa da América do Sul.

É nesse quadro que devemos entender o comportamento dos Estados Unidos em Honduras, na ampliação de sua presença militar na Colômbia e agora, diante do terremoto no Haiti.

A proposta do presidente francês Nicolas Sarkozy de uma reunião entre Brasil, França e Estados Unidos para discutir o futuro do Haiti foi descartada por Washington em um primeiro momento.

Para se contrapor ao controle dos Estados Unidos sobre a América Latina o Brasil tem tentado atrair a França para uma parceria militar estratégica. A França, além de ter um território ultramarino na América do Sul, a Guiana Francesa, tem interesses no Caribe (Martinica, Guadaloupe, San Martin) e uma história (trágica) no Haiti.

Para além dessas considerações geopolíticas, no entanto, é preciso considerar a política doméstica dos Estados Unidos.

Barack Obama, depois de aprovar uma reforma do sistema de saúde que reduziu a sua aprovação interna junto ao eleitorado, especialmente depois de ter usado bilhões em dinheiro público para resgatar os bancos -- 117 bilhões de dólares, pelas contas da Casa Branca --, precisa urgentemente de "vitórias políticas" que sustentem a coalizão que pode levá-lo à reeleição.

No Haiti, ele só tem a ganhar. Primeiro, por se tratar de uma ação humanitária que poderá reconstruir a imagem dos militares dos Estados Unidos diante do mundo ocidental -- depois dos desastres que resultaram da invasão do Iraque e do escândalo da tortura em Guantánamo e outras instalações.

Segundo, pela demonstração de interesse pelo destino de milhões de negros como ele, Obama, embora seja conveniente esquecer aqui que eles são vítimas de regimes políticos que tiveram pleno endosso dos Estados Unidos -- Papa Doc e Baby Doc, os ditadores do Haiti, foram anticomunistas sanguinários que serviram quando foi preciso conter a "infecção" cubana.

O presidente "populista" e "autoritário" do Haiti, Jean Bertrand Aristide, foi uma espécie de Hugo Chávez antes-da-hora: foi eleito justamente quando as políticas neoliberais propostas por Washington como saída para a América Latina estavam no auge. Talvez isso ajude a explicar porque ele curte exílio na África do Sul e o partido dele foi banido no Haiti.

Ao resgatar George W. Bush das trevas, Obama agora pode posar de "caminho do meio" diante do eleitorado dos Estados Unidos, como homem que não guarda ressentimentos, que coloca o interesse humanitário acima das disputas políticas. Num quadro político altamente polarizado como é o dos Estados Unidos hoje, o presidente fica bem na fita tanto com republicanos moderados quanto com a centro-esquerda do Partido Democrata da qual havia se afastado para salvar os banqueiros. Coloca os pés firmemente no centro político, entre George W. Bush e Bill Clinton, onde estão os independentes sem os quais jamais conseguirá se reeleger.

Obama resgata George W. Bush da mesma forma que resgata os haitianos e será o caudatário da gratidão de ambos. Através dos dois ex-presidentes, que com certeza levantarão milhões de dólares para aplicar no Haiti, os Estados Unidos farão esse resgate dentro de um modelo político e econômico aceitável para seus próprios interesses.

Nesse momento, não interessa a Washington atuar através da ONU ou de supostos parceiros. Faz muito mais sentido para o governo dos Estados Unidos, tão castigado nos últimos anos pelo recurso unilateral à força para matar, saquear e controlar outros povos, agir agora como uma força unilateral do bem.

O futuro do Haiti pertence ao Clinton-Bush Fund e ao Comando Militar Sul dos Estados Unidos.

PS: Para quem quer ajudar o Haiti a melhor forma de fazê-lo agora é através de doações em dinheiro para órgãos vinculados às Nações Unidas, como essa conta da Caixa Econômica Federal.

Texto do Vi o Mundo.

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Bolsa Família: uma obra para a história

Prestes a deixar o cargo – para ser candidato a candidato ao governo de Minas Gerais pelo PT – o Ministro do Desenvolvimento Social Patrus Ananias deixa em seu currículo a montagem do mais bem sucedido programa social do país – depois do SUS (Sistema Único de Saúde) -, o Bolsa Família, considerado o mais bem sucedido programa de massificação de políticas sociais já tentado no mundo.

Levará algum tempo para se produzir a obra definitiva sobre o programa, os desafios iniciais, a consolidação do corpo técnico, a montagem das redes com movimentos sociais, prefeituras, demais ministérios, para o feito de levar políticas compensatórias a 50 milhões de pessoas, 12 milhões de famílias, um quarto da população brasileira.

***

Antes do Bolsa, os teóricos de políticas sociais se dividiam em duas linhas. De um lado os focalistas, especialistas em indicadores e estatísticas que centravam seus estudos na identificação dos segmentos mais necessitados da população. De outro lado, os universalistas, defensores das políticas sociais universais.
Havia uma dissonância invencível entre eles. As técnicas estatísticas são fundamentais para se conseguir otimizar a aplicação dos recursos. Mas o discurso focalista era utilizado para impedir a ampliação dos gastos sociais.

Por outro lado, os universalistas, embora mais generosos na distribuição de recursos, tendiam a considerar que qualquer forma de controle e acompanhamento prejudicaria os objetivos finais dos programas sociais.

***

Oriundo dos movimentos sociais, mas com uma passagem executiva como prefeito de Belo Horizonte, Patrus soube juntar o que de melhor havia nas duas linhas.

Dos focalistas trouxe o maior nome – o técnico do IPEA (Instituto de Pesquisas Econômico Aplicadas) Ricardo Paes de Barros, referência internacional – e as técnicas para hierarquizar a pobreza, permitindo chegar de forma mais eficiente nos segmentos de miséria absoluta. Dos universalistas, trouxe a convicção de que políticas sociais têm que ser universais – mas sem abdicar da ciência dos indicadores e acompanhamentos.

***

O passo seguinte foi definir as prioridades dos programas sociais. O MDS toca vários programas, do Bolsa Família aos Benefícios Continuados (como aposentadoria para idosos). Mas o desafio maior, o ponto inicial de qualquer política social, é o atendimento da mais básica das necessidades, a fome. Esse foi o foco, que fez com que o programa substituísse seu antecessor, o desastrado Fome Zero.

***

O desafio seguinte era montar a rede de parceiros, para garantir a estrutura mais enxuta possível na sede. O programa é tocado por 1.500 pessoas, estrutura mínima para a população atendida.

Na ponta recorreu-se aos movimentos sociais e, especialmente, às prefeituras – incumbidas de cadastrar os beneficiários. Para prevenir fraudes, foram montados convênios com Ministérios Públicos Federal e Estaduais, visando a criminalização das fraudes. Depois, tratou-se de fortalecer os conselhos municipais e regionais.

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Ainda há um longo caminho pela frente. Mas caminha-se para a constituição de uma rede social, um processo em construção, que tornará o programa irreversível.

Coluna do Luís Nassif.


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quarta-feira, janeiro 20, 2010

A tragédia do Haiti

Haiti, que ajuda?

OMAR RIBEIRO THOMAZ
OTÁVIO CALEGARI JORGE
ESPECIAL PARA A FOLHA, EM PORTO PRÍNCIPE

O TERREMOTO no Haiti, que afetou de forma particularmente arrasadora sua capital, foi há cerca de uma semana. O pouco de um Estado já frágil foi destruído, a missão das Nações Unidas foi incapaz de ir além de resgatar seus próprios mortos e feridos, a ajuda internacional tarda, e o que vemos são haitianos ajudando haitianos.
Entre quarta-feira e sábado, caminhar pelas ruas do centro de Porto Príncipe e de Pétionville era observar o civismo dos haitianos que, muitas vezes, e como nós, sem entender claramente o que havia acontecido, procuravam cuidar dos feridos, resgatar aqueles que ainda estavam vivos sob os escombros, e dispor de seus mortos. O que vimos foi, de um lado, solidariedade, de outro a ausência quase que total e absoluta das forças da ONU e da ajuda internacional.
Por quê? Afinal, a Minustah não estava no Haiti há cerca de seis anos e não dizia estar agindo no sentido de estabilizar o país e reconstruir o Estado haitiano? Quando nos perguntávamos do porquê da demora de disponibilizar comida e remédios já no aeroporto de Porto Príncipe para as centenas de milhares de pessoas que se aglomeravam nos campos de refugiados improvisados por todos os lados, a resposta era que não existiam canais locais capazes de serem mobilizados para a tarefa.
Homens e mulheres que tinham vindo para ajudar, e as coisas que traziam, se aglomeravam num aeroporto controlado por forças militares americanas, como se de uma operação de guerra se tratasse.
Após seis anos no Haiti, aqueles que diziam que estavam ali para reconstruir o país, não tinham entendido nada, ou muito pouca coisa. Quando fomos às praças e campos de futebol transformados em campos de refugiados, eram as "dame sara", mulheres que controlam as redes comerciais existentes no país, que garantiam o acesso dos haitianos a produtos; eram aquelas que cozinham na rua, "chein jambe", que ofereciam galinha, espaguete, arroz, feijão e verduras aos haitianos e haitianas aglomerados; eram caminhões pertencentes a empresários locais que distribuíam água potável. Haitianos ajudando haitianos.
Por que não aproveitar esta energia e estas redes existentes para fazer chegar a ajuda? Por desconhecimento, talvez, ou talvez por duvidar de sua eficácia, ou da possibilidade de uma vítima ser mais do que uma vítima passiva à espera de ajuda.
O desconhecimento, no entanto, é duvidável. Em nossa visita ao batalhão brasileiro da Minustah, horas antes do terremoto, pudemos ver na apresentação do coronel João Bernardes um extremo conhecimento do funcionamento da sociedade haitiana. Infelizmente, a falta de ajuda parece estar mais ligada às disputas internacionais pelo controle do futuro do povo haitiano do que à emergência da situação.
Sim, os haitianos são vítimas, mas estão longe da passividade: pra cima e pra baixo, entre as "dame sara" e o "chein jambe", vimos jovens escoteiros removendo entulho, jovens pedido ajuda com alto-falantes, médicos haitianos dando atendimento aos feridos nas ruas, freira haitianas prestando os primeiros socorros quando possível. Paralelamente, o aparato da Minustah, cerca de 5.500 militares de diferentes nacionalidades, ou estava parado, ou mobilizado na atenção dos próprios quadros da ONU.
Os haitianos ajudam haitianos, a ONU ajuda a ONU.

Culpas internacionais
Duas reações foram recorrentes nos dias que se seguiram aos terremotos. Uma, talvez a mais primária, era a de responsabilizar a natureza. A outra, a de responsabilizar os próprios haitianos pelo caos que sucedeu ao cataclismo. Afinal, foram incapazes de construir um Estado e, por isso, são incapazes de reagir.
Ambas as reações são perversas. Não estamos só diante de um cataclismo natural, mas também de uma catástrofe social. E o desmantelamento do Estado haitiano não é responsabilidade exclusiva dos haitianos, muito pelo contrário. País com pouca margem de manobra no contexto caribenho ao longo das décadas de Guerra Fria, viu as grandes potências apoiarem uma ditadura regressiva e particularmente violenta; concomitantemente, e especialmente a partir do fim dos anos 1970 e ao longo dos anos 1980, o Haiti, como tantos outros países, foi vítima de profissionais engravatados que aplicavam a mesma receita em qualquer lugar: desregulamentação, estado mínimo, livre comércio.
Foram as pressões do FMI e do Banco Mundial que obrigaram o Haiti a desproteger a produção de arroz no início dos anos 1980. O Haiti era, até então, autossuficiente em arroz.
Em pouco tempo não só se viu obrigado a importar este produto, como massas de camponeses foram expulsas do campo para a capital do país, aglomerando-se em habitações precárias, as mesmas que foram abaixo com o terremoto. Tal como ocorreu com o arroz, o cimento também foi afetado. Antes era produzido no país, e desde finais de 1980 foi importado dos EUA, o que obrigou os haitianos a fazerem uso de tijolos pobremente produzidos com areia. Tais tijolos são frágeis e acabam afetando a própria condição das construções. E podemos seguir adiante para demonstrar que o desmantelamento do Estado haitiano foi obra da "comunidade internacional".
Somente uma crítica sistemática ao próprio caráter da ajuda internacional nas últimas décadas poderá ajudar o Haiti a sair de um atoleiro que não foi construído apenas por ele. O que pudemos observar, além da passividade da própria comunidade internacional, capaz de mobilizar mundos e fundos, mas incapaz de conversar com as "dame sara" para imaginar uma saída criativa para a distribuição da ajuda, foi um movimento mais do que preocupante.
Milhares de soldados americanos ocupam, mais uma vez, o país, como se houvesse uma situação de guerra civil, e o Brasil, já imerso há seis anos em toda essa lama, entra no circo das potências que querem "ajudar" o Haiti.
Sem termos presente o fato de que o Haiti é um país soberano, e que os haitianos não são vítimas passivas de catástrofes naturais, dificilmente sairemos do circulo de pobreza e miséria criada pela própria "comunidade internacional", no qual o Brasil ocupa um trágico lugar central.

OMAR RIBEIRO THOMAZ, 44, é professor de antropologia da Unicamp; OTÁVIO CALEGARI JORGE , 21, é estudante de ciências sociais na mesma universidade.

Terremoto pode ser uma oportunidade

Para cientista político haitiano, auxílio deveria ser dirigido a criar e fortalecer as instituições nacionais, e não ONGs que atuam no país

A DESTRUIÇÃO provocada pelo terremoto pode ser transformada em oportunidade para um novo "contrato social" entre os haitianos e para a mudança das políticas prescritas ao Haiti pelos doadores internacionais e organismos multilaterais, afirma Robert Fatton Jr.
Na avaliação do cientista político haitiano radicado nos EUA, essas políticas reforçaram a debilidade das instituições nacionais e contribuíram para o declínio da agricultura local, obrigada a concorrer com importações subsidiadas em seus países de origem.

CLAUDIA ANTUNES
DA SUCURSAL DO RIO

Robert Fatton Jr. é professor da Universidade da Virgínia e autor de "A República Predatória do Haiti: a Transição sem Fim para a Democracia" (sem tradução no Brasil), entre outros textos sobre o país onde nasceu e viveu até o final da adolescência, quando deixou Porto Príncipe para estudar na França, a antiga metrópole colonial, e depois nos EUA.
Escreveu ainda quatro livros sobre política africana, entre eles "Consciência Negra na África do Sul" (1986) e "Revolução Passiva no Senegal" (1987). Quando conversava com a Folha, o professor foi interrompido pela ligação de um sobrinho que mora em Miami. "Nos falamos há três horas, mas ele queria saber se há mais notícias. A comunicação está difícil." Por mensagens curtas de celular ou e-mail, Fatton Jr.
soube que sua família, que vive em Pétionville, subúrbio nobre da capital haitiana, havia sobrevivido. "Tiveram sorte. Mas há amigos que não sei se estão vivos ou mortos."

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/images/ep.gif

FOLHA - Como avalia a situação do Haiti antes do terremoto e o que pode mudar agora?
ROBERT FATTON JR.
- A situação política havia se estabilizado, a violência havia diminuído, mas a situação como um todo ainda era muito precária. Eleições estavam programadas para este ano [legislativas em fevereiro e presidencial em novembro], mas não imagino que possam ser realizadas. O terremoto pode ser um desastre completo ou uma oportunidade para mudar algo. O fato de que todos os haitianos estão diante da catástrofe pode levar a um contrato social diferente, numa sociedade muito dividida. Do seu lado, a comunidade internacional precisa mudar algumas políticas, que em última instância limitaram a capacidade do Estado haitiano. Hoje, nas operações de socorro, você pode ver que não há instituições nacionais, só ONGs. Espero também que a ajuda internacional dê mais ênfase à área rural. Embora ela não tenha sido tão afetada pelo tremor, 60% da população ainda vive lá. O fato de quase 3 milhões de pessoas se aglomerarem em Porto Príncipe em condições terríveis é consequência de não haver política agrícola.

FOLHA - Uma das críticas à política dos EUA para o Haiti é a de que, quando Jean-Bertrand Aristide foi reconduzido à Presidência com apoio militar americano (1994), uma das condições foi que ele implantasse uma política econômica liberalizante. Isso teria dizimado a agricultura. É uma crítica correta?
FATTON
- Isso é absolutamente verdade. Mesmo antes da volta de Aristide, os militares começaram a abrir a economia, em particular para o arroz americano. Esse arroz, que é subsidiado, era vendido muito mais barato do que a produção local, que entrou em declínio. Quando Aristide voltou, ele assinou um acordo com o FMI e o Banco Mundial consolidando o projeto neoliberal. A abertura teve um impacto devastador na produção de comida e nas pequenas indústrias que produziam para o mercado interno. A estratégia continua sendo a mesma, voltada para a criação de núcleos urbanos de confecção de produtos baratos para exportação aos EUA, principalmente têxteis.

FOLHA - Como as maquiladoras mexicanas?
FATTON
- É o modelo. Na minha visão, não funciona. Já foi tentado sob [o ditador] Jean-Claude Duvalier [1971-1985] e levou a uma catástrofe. Não é que o Haiti não tenha que ter uma base exportadora, mas ela não deve ser o motor do desenvolvimento do país. Se esse rumo for mantido, haverá pequenos encraves, com trabalhadores mal pagos, e o campo continuará negligenciado.

FOLHA - O Haiti é dependente de ajuda internacional. Por que esse dinheiro não produziu resultados na redução da pobreza, por exemplo?
FATTON
- Se você olhar os últimos 15, 20 anos, muito dinheiro foi enviado ao Haiti, mas boa parte dele ligado a companhias americanas. Há um círculo vicioso, porque o dinheiro volta para os EUA. Em meados dos anos 90, os EUA davam anualmente US$ 3 bilhões ao Haiti, mas uma parte significativa ia para os soldados americanos que estavam lá, para os assessores americanos e para a compra de produtos americanos. As doações também evitavam o Estado e eram dadas a instituições não governamentais, porque a premissa era a de que o governo era corrupto e ineficaz. O problema é que ONGs em geral têm base local, e suas atividades não são filtradas através de um programa nacional abrangente. E, apesar de haver ONGs que prestam ótimos serviços a pessoas pobres, há outras que são igualmente corruptas. E não se sabe o quanto do que recebem vai de fato para ajuda ao desenvolvimento.

FOLHA - A debilidade do Estado é fenômeno recente no Haiti ou sempre foi assim?
FATTON
- A ideia de um Estado fraco é complicada. Sob os Duvalier [1957-1985] havia um Estado incompetente e corrupto, mas forte na repressão. Após a queda da ditadura, houve uma série de crises, com eleições fracassadas e golpes, que minaram o Estado por dentro. Essa tendência se agravou sob a orientação dos principais doadores, que viam o Estado como um problema. Agora, se a comunidade internacional tem intenções sérias de reconstruir o país, deve contribuir para a implantação de um serviço público efetivo. Do contrário, haverá alívio, mas não desenvolvimento.

FOLHA - Como avalia o trabalho da Minustah, a força de paz da ONU?
FATTON
- Se não fosse pela Minustah, o país estaria sob caos ainda maior. Goste-se ou não, ela é elemento essencial da situação atual. Foi criticada às vezes por ser muito violenta, outras vezes por não ser violenta o suficiente. Não é surpreendente que os haitianos tenham uma relação de amor e ódio com a Minustah. Não gostamos de tropas estrangeiras em nosso solo, mas sabemos que não podemos ficar sem ela. O ponto-chave é como fazer a transição da Minustah para uma força local.

FOLHA - Países como o Brasil, com posição de comando na Minustah, podem influenciar políticas de instituições multilaterais para o Haiti?
FATTON
- Tenho a esperança de que possam mover os EUA para uma orientação diferente da política econômica prescrita para o Haiti. Se têm o poder para fazer isso, é outra questão. A Minustah é em grande parte um assunto latino-americano, com o Brasil no centro. Os EUA gostam disso, porque não precisavam mandar seus próprios soldados. Isso dá peso ao Brasil. Mas, pelo discurso de [Barack] Obama [na última quinta-feira], haverá de novo um enorme envolvimento americano no Haiti.

FOLHA - O senhor disse que o terremoto poderia produzir um novo contrato social no Haiti. Por quê?
FATTON
- O terremoto afetou a todos, pobres e ricos. Claro que muitos dos ricos têm mais condições de reagir à catástrofe, mas há outros que perderam tudo. Acho que isso pode forçar a minoria rica a ver a situação do país com olhos diferentes, com mais simpatia pelos haitianos comuns. Claro, a experiência histórica não recomenda otimismo, mas a catástrofe é tão grande que talvez possa mudar percepções e a maneira como as pessoas se tratam.

FOLHA - A clivagem entre pobres e ricos é a principal na sociedade haitiana?
FATTON
- Certamente, é a chave. Estamos falando de 5% a 10% da população com algum recurso, 5% que vão muito bem e 70%, 80% que não têm nada. Temos divisões de cor, mas elas são menores se comparadas à clivagem entre pobres e ricos.

FOLHA - Mas os ricos ainda controlam o sistema político?
FATTON
- Agora não há mais sistema político, não há governo. A comunidade internacional está no comando, o aeroporto está sob controle dos americanos. Antes do terremoto, apesar de o governo ter algumas tendências populistas, a situação estava claramente nas mãos da minoria rica.

FOLHA - Grupos ligados a Aristide haviam sido excluídos das eleições deste ano. Como vê isso?
FATTON
- Acho que o presidente [René] Préval conseguiu dividir o Lavalas [movimento de Aristide] de tal forma que ele não pode mais mobilizar grandes segmentos da população. Aristide continua sendo popular, mas o movimento foi dizimado. Ao mesmo tempo, é improvável que as principais potências, EUA e França, aceitem a volta de Aristide.

FOLHA - E isso o senhor considera positivo ou negativo?
FATTON
- Difícil dizer. Aristide é uma figura muito carismática, mas ao mesmo tempo há hoje uma forte oposição a ele, que não vem só da elite, mas de setores que costumavam apoiá-lo. Seu poder diminuiu. Por outro lado, o terremoto pode dar a ele uma chance de se reafirmar, o que vai depender do resultado da operação de socorro e do que virá depois dela. Se a operação for mal administrada, pode haver uma reemergência do Lavalas, se não necessariamente da figura de Aristide.

FOLHA - Se Préval foi tão hábil em dividir o Lavalas, por que seu governo é instável, já no terceiro premiê?
FATTON
- O governo se tornou instável depois dos distúrbios contra o aumento do preço dos alimentos [em março de 2008]. Foi um momento de crise. Mas não acho que você deva olhar para as trocas de primeiro-ministro como sintoma de instabilidade. Elas geralmente significam apenas transferir pessoas para novos cargos, mas não mudam a estrutura.

Texto e entrevista publicados na Folha de São Paulo, de 18 de janeiro de 2010.


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Haiti: quem é que privatizou o Estado?

por Bill Quigley, no Huffington Post
Posted: January 14, 2010 08:45 PM

What the Mainstream Media Will Not Tell You About Haiti: Part of the Suffering of Haiti is "Made in the USA"
(O que a mídia corporativa não vai te contar sobre o Haiti: Parte do sofrimento é Made in USA)

Parte do sofrimento no Haiti é "Feito nos Estados Unidos". Se um terremoto pode danificar qualquer país, as ações dos Estados Unidos ampliaram os danos do terremoto no Haiti.

Como? Na última década, os Estados Unidos cortaram ajuda humanitária ao Haiti, bloquearam empréstimos internacionais, forçaram o governo do Haiti a reduzir serviços, arruinaram dezenas de milhares de pequenos agricultores e trocaram apoio ao governo por apoio às ONGs.

O resultado? Pequenos agricultores fugiram do campo e migraram às dezenas de milhares para as cidades, onde construiram abrigos baratos nas colinas. Os fundos internacionais para estradas e educação e saúde foram suspensos pelos Estados Unidos. O dinheiro que chega ao país não vai para o governo mas para corporações privadas. Assim o governo do Haiti quase não tem poder para dar assistência a seu próprio povo em dias normais -- muito menos quando enfrenta um desastre como esse.

Alguns dados específicos de anos recentes.

Em 2004 os Estados Unidos apoiaram um golpe contra o presidente eleito democraticamente, Jean Bertrand Aristide. Isso manteve a longa tradição de os Estados Unidos decidirem quem governa o país mais pobre do hemisfério. Nenhum governo dura no Haiti sem aprovação dos Estados Unidos.

Em 2001, quando os Estados Unidos estavam contra o presidente do Haiti, conseguiram congelar 148 milhões de dólares em empréstimos já aprovados e muitos outros milhões de empréstimos em potencial do Banco Interamericano de Desenvolvimento para o Haiti. Fundos que seriam dedicados a melhorar a educação, a saúde pública e as estradas.

Entre 2001 e 2004, os Estados Unidos insistiram que quaisquer fundos mandados para o Haiti fossem enviados através de ONGs. Fundos que teriam sido mandados para que o governo oferecesse serviços foram redirecionados, reduzindo assim a habilidade do governo de funcionar.

Os Estados Unidos tem ajudado a arruinar os pequenos proprietários rurais do Haiti ao despejar arroz americano, pesadamente subsidiado, no mercado local, tornando extremamente difícil a sobrevivência dos agricultores locais. Isso foi feito para ajudar os produtores americanos. E os haitianos? Eles não votam nos Estados Unidos.

Aqueles que visitam o Haiti confirmam que os maiores automóveis de Porto Príncipe estão cobertos com os símbolos de ONGs. Os maiores escritórios pertencem a grupos privados que fazem o serviço do governo -- saúde, educação, resposta a desastres. Não são guardados pela polícia, mas por segurança privada pesadamente militarizada.

O governo foi sistematicamente privado de fundos. O setor público encolheu. Os pobres migraram para as cidades.

E assim não havia equipes de resgate. Havia poucos serviços públicos de saúde.

Quando o desastre aconteceu, o povo do Haiti teve que se defender por conta própria. Podemos vê-los agindo. Podemos vê-los tentando. Eles são corajosos e generosos e inovadores, mas voluntários não podem substituir o governo. E assim as pessoas sofrem e morrem muito mais.

Os resultados estão à vista de todos. Tragicamente, muito do sofrimento depois do terremoto no Haiti é "Feito nos Estados Unidos".


Texto visto no Vi o Mundo.

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Quem tem medo da verdade?

DIREITOS HUMANOS
Quem tem medo da verdade

Por Luiz Cláudio Cunha em 13/1/2010

no Observatório da Imprensa

Sugestão do leitor Mário Macaíba

Só as feridas lavadas cicatrizam. (Michelle Bachelet, médica, torturada em 1975, presidente do Chile em 2006)


Na antevéspera do Natal, quando já bimbalhavam os sinos, o presidente Lula ouviu em seu gabinete um tropel distante. Não eram as renas do bom velhinho. Era o som metálico dos cascos das montarias de seu ministro da Defesa e dos chefes das Forças Armadas, em marcha batida para emparedar o presidente na mais grave crise militar da República desde 1977, quando o presidente Ernesto Geisel demitiu o então ministro do Exército Sylvio Frota, num gesto implacável e temerário para conter o radicalismo da linha-dura do regime – que no espaço de três meses matou, sob torturas, o jornalista Vladimir Herzog e o operário Manoel Filho no DOI-CODI do II Exército, em São Paulo.

Desta vez ocorre o contrário. Os comandantes militares é que tentam enquadrar o presidente da República, ameaçando uma demissão coletiva contra o decreto presidencial que cria a Comissão Nacional da Verdade, destinada a investigar violações de direitos humanos e casos de tortura durante a ditadura militar (1964-1985).

Durante duas décadas, um aparato repressivo estimado em 24 mil agentes prendeu por razões políticas cerca de 50 mil brasileiros e torturou algo em torno de 20 mil pessoas – três a cada dia. Os militares já tinham reagido mal, em agosto de 2007, quando o Palácio do Planalto lançou o livro Direito à Memória e à Verdade, um corajoso trabalho de 11 anos da Secretaria de Direitos Humanos, iniciado ainda no governo FHC, reconhecendo pela primeira vez a responsabilidade do governo na violência oficial, com a lista de 339 mortos e desaparecidos pela repressão política. Acintosamente, nenhum chefe militar compareceu à cerimônia presidida pelo comandante-em-chefe das Forças Armadas, o presidente Lula.

Paz de cemitérios

O azedume das casernas, antes e agora, já era esperado. Mas o que surpreendeu, de fato, foi o cerrado bombardeio que o Plano Nacional de Direitos Humanos atraiu de setores tradicionalmente mais esclarecidos da opinião pública nacional. Editoriais da grande imprensa, articulistas de renome e blogueiros influentes cerraram fileiras contra a idéia da Comissão da Verdade, vocalizando sem ressalvas os temores soprados, em tom de velada ameaça, pelos quartéis e suas vivandeiras de sempre.

O quadro alarmista desenhado pela reação em bloco exibia um futuro preocupante: um Brasil outra vez conflitado, dividido, mergulhado no revanchismo, tentando acertar as contas do passado com uma calculada revisão da Lei da Anistia de 1979, manipulada por ex-terroristas hoje encastelados no governo em busca de vingança pessoal contra os responsáveis pelos maus-tratos sofridos na prisão. Placas de ruas e escolas com nomes de torturadores seriam varridos do mapa nacional e agentes da Polícia Federal invadiriam quartéis em busca de covas clandestinas de mortos pela repressão. Tudo isso conspirando contra o pacto de concórdia estabelecido há três décadas para consagrar o Brasil tolerante e pacífico que prefere perdoar e esquecer. Será?

A alvoroçada mídia nacional deixou passar, em branco, algo bem mais grave: a tripla transgressão funcional do presidente, do ministro e dos chefes militares. Lula pela omissão: mais preocupado com o degelo do planeta em Copenhague do que com o aquecimento dos quartéis em Brasília, reconheceu não ter lido a lei que assinou – uma versão escrita do tradicional "eu não sabia". Nelson Jobim como trapalhão: apesar do corpanzil de quase 1,90m, não cresceu o bastante para entender o papel institucional de seu posto, como ministro da Defesa que deve exercer a autoridade da sociedade civil sobre as Forças Armadas, e não o contrário. Os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica pela insubordinação: peitaram uma decisão de governo anunciada em ato público por seu comandante-em-chefe, a quem devem irrestrita obediência por imposição constitucional.

Trombaram de frente com os fatos e com colegas de governo. O secretário de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, foco central da ira militar, explicou: "O PNDH não é contra a Anistia. Não anula, nem revisa a lei. O projeto diz que a Comissão da Verdade será definida `nos termos definidos pela Lei da Anistia´. Está lá na ação 23 do texto. Basta ler", diz Vannuchi.

Seu chefe e principal aliado, o ministro Tarso Genro, da Justiça, ecoa: "No regime militar nenhuma norma, nem o AI-5, permitia a tortura. Este delito não é político, é comum". Esse é o miolo da divergência, que justifica a ação da Ordem dos Advogados do Brasil no Supremo Tribunal Federal para definir o alcance da anistia. "O Brasil não pode se acovardar e querer esconder a verdade. Anistia não é amnésia", ensina Cézar Britto, presidente da OAB.

O jurista Paulo Brossard discorda: "Os efeitos da anistia se fizeram sentir quando a lei entrou em vigor. O próprio delito é apagado". O ex-ministro do STF, que foi um bravo senador do MDB na sangrenta década de 1970, nem sempre foi tão legalista. "Nunca desejei [o golpe de] 1964, mas achei que foi absolutamente normal, porque foi a legítima defesa de uma sociedade então diretamente ameaçada", admite ele em seu livro de memórias, Brossard – 80 anos na história política do Brasil (Artes & Ofícios, 2004, p. 126). No artigo publicado em Zero Hora na semana passada, Brossard explica porque considera a anistia irreversível: "Anistia pode ser mais ou menos injusta, mas não é a justiça seu caráter marcante. É a paz".

Paz de quem, cara-pálida? Certamente não é a paz de cemitério dos mortos pela tortura, nem a paz de espírito dos parentes de desaparecidos políticos, muito menos a paz da consciência de quem sobreviveu aos suplícios e aos gritos de dor nas masmorras.

"Responsabilidade do Estado"

A lei de anistia que Brossard tanto preza não é fruto do consenso de um país sentado em torno da mesa do entendimento. É mais a entrega dos anéis da ditadura para não perder os dedos manchados de sangue. Pressionado pelo clamor cada vez mais forte das ruas em 1979, o general João Figueiredo negociou, de cima para baixo, a anistia que parecia mais conveniente ao regime. A esquerda, derrotada na luta armada, presa ou exilada, não tinha muito o que exigir, a não ser a benevolência do regime militar, que ainda duraria mais seis anos. Engoliu uma anistia enxertada pelos quartéis com uma blindagem ampla e vaga, diluída na expressão "crimes conexos", que deveria cobrir os delitos de sangue dos torturadores.

Um dos ministros de Figueiredo que assina a lei, em 29 de agosto daquele ano, é o general Octávio Aguiar de Medeiros, chefe do SNI, que ainda sonhava com a sobrevida do regime e sua unção como o sexto presidente da ditadura. O terrorismo que se via no país, naqueles dias, era só o da direita, que incendiava bancas de jornais e explodia bombas em organizações que clamavam por democracia, como a sede nacional da OAB.

Na véspera do Dia do Trabalho de 1981, dois anos após a promulgação da anistia, um Puma explodiu antes da hora no Riocentro. Tinha a bordo dois agentes terroristas do Exército: um sargento que morreu com a bomba no colo e um capitão do DOI-CODI que sobreviveu impune e virou professor do Colégio Militar em Brasília. Um inquérito policial-militar do Exército apurou que o atentado foi planejado pelo chefe da agência do SNI no Rio, coronel Freddie Perdigão. Outras vítimas daquele desastrado `acidente de trabalho´ ficaram pelo caminho: o projeto presidencial de Medeiros, o coração enfartado de Figueiredo e as chances de prorrogação da ditadura.

Figueiredo e a ditadura saíram do Palácio do Planalto pela porta dos fundos, em 1985, para não devolver a faixa presidencial usurpada ao poder civil em 1964. O novo presidente, José Sarney, assinou em 1989 a adesão do Brasil ao tratado internacional que considera a tortura um crime de lesa-humanidade e, como tal, imprescritível. Apesar disso, ninguém passou pelo dissabor de uma condenação que hoje é comum nos outros países do Cone Sul.

A única exceção é o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, condenado em primeira instância em São Paulo numa ação que pretende apenas declará-lo como "torturador". Méritos não lhe faltam: como major, ele montou e dirigiu o centro de repressão e tortura mais famoso do regime, o DOI-CODI da Rua Tutóia, em São Paulo. Nos 40 meses em que comandou aquele antro, segundo levantamento da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, Ustra amargou 502 denúncias de tortura (uma a cada 60 horas) e 40 mortes (uma por mês).

Na defesa perante a Justiça, o valente Ustra preferiu chutar a responsabilidade para cima:

"O Exército brasileiro é uma pessoa jurídica, sendo que, pelos atos ilícitos, inclusive os atos causadores de dano moral, praticados por agentes de pessoas de direito público, respondem estas pessoas jurídicas e não o agente contra o qual têm elas direito regressivo. (...) Todas as vezes que um oficial do Exército brasileiro agir no exercício de suas funções estará atraindo a responsabilidade do Estado".

Brasil varonil

A Rua Tutóia e o coronel Ustra remetem a uma tragédia ainda maior: a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). A maior catástrofe do planeta envolveu 100 milhões de militares de 72 nações dos cinco continentes, matando 70 milhões de pessoas (as populações somadas de Argentina e Canadá) e mutilando quase 30 milhões. Custou cerca de US$ 1,5 trilhão, quase tanto quanto Barack Obama injetou na economia para salvar bancos e montadoras de carros. As potências vencedoras acharam por bem punir o responsável direto por tudo isso, o III Reich de Hitler. O líder soviético Josef Stálin tinha uma solução curta e grossa: matar todos os nazistas envolvidos direta ou indiretamente com a guerra. No cálculo dos aliados, isso significaria mais de 100 mil execuções do aparato estatal hitlerista – três vezes mais do que os mortos em Dachau, o primeiro campo de concentração nazista, na periferia de Munique.

Venceu a solução mais civilizada: o Tribunal de Nuremberg, que gastou 285 dias de julgamento para ouvir 240 testemunhas e anotar 300 mil declarações, gerando um sumário de 4 bilhões de palavras. A acusação final de 25 mil páginas aos principais dirigentes nazistas condenou 12 à morte, três à prisão perpétua e outros três a penas entre 10 e 20 anos de cadeia. Três foram absolvidos. A defesa alegou em Nuremberg o mesmo ponto levantado em São Paulo: a `obediência devida a ordens superiores´. O que o juiz americano Francis Biddle respondeu serve, portanto, também ao coronel Ustra: "Os indivíduos têm deveres internacionais a cumprir, acima dos deveres nacionais que um Estado particular possa impor", disse Biddle.

Nuremberg cravou para sempre, na consciência do mundo civilizado, a noção pioneira de que os fundamentos da pessoa humana estão acima das circunstâncias políticas e além das fronteiras nacionais. Foi por isso que o braço longo do juiz espanhol Baltazar Garzón alcançou o ditador chileno Augusto Pinochet em Londres, por crimes de tortura e assassinato. A defesa do III Reich tentou levantar um princípio que impediria o julgamento de fatos pretéritos (ex post facto), alegando que não havia na lei previsão anterior para os crimes sob juízo.

Prevaleceu o fato e o bom senso de que lei nenhuma no mundo tinha imaginado, como política de Estado, uma escala tão vasta de genocídio como a arquitetada com frieza pelo engenho nazista nos seus campos de concentração, onde morreram seis milhões de judeus. Se valesse o argumento de Ustra em Nuremberg, para escapar da cadeia bastaria dizer que todos os nazistas apenas cumpriam ordens de Adolf Hitler... O argumento não colou lá, mas parece ter bons resultados aqui. Ninguém é sequer denunciado no Brasil e, quando isso acontece, o coronel Ustra diz que os excessos que eventualmente cometia eram responsabilidade do Estado.

O ministro Tarso Genro e os tratadistas mais renomados do país lembram que os atos de exceção mais duros tiveram o cuidado de nunca mencionar, muito menos autorizar a tortura. É um crime, portanto, sem pai nem mãe. Anistia não é esquecimento, é perdão, ensinam os juristas que não escamoteiam as palavras. Não se pode esquecer o que não se conhece. Também não se pode perdoar o que não foi punido – privilégio imaculado de todos os torturadores que ainda existem no país. O historiador americano Edward Peters, professor da Universidade da Pensilvânia, advertiu: "O futuro da tortura está indissoluvelmente ligado ao futuro dos torturadores".

Ou seja, a impunidade do torturador acaba garantindo a perenidade da tortura e de sua filha dileta, a violência. O Brasil que evita punir ou sequer apontar seus torturadores acaba banalizando a violência que transborda a ditadura e vitimiza o cidadão comum em plena democracia, principalmente nas duas maiores capitais, São Paulo e Rio. Nos 24 anos seguintes à anistia (1979-2003), armas de fogo mataram no Brasil 550 mil pessoas – 44% delas jovens entre 15 e 24 anos. Este Brasil varonil, pacífico e cordial, viu morrer quase tanta gente quanto os Estados Unidos durante os cinco anos que lutou na Segunda Guerra Mundial (625 mil soldados). Num único ano, 2003, segundo dados do Ministério da Saúde, assassinaram no Brasil uma população civil (51 mil pessoas) quase tão grande quanto as perdas dos Estados Unidos (58 mil) ao longo dos 16 anos da Guerra do Vietnã.

Último ditador

É difícil dizer quanto desta violência tem linha direta com a tortura da ditadura que ficou impune como seus responsáveis. Mas, com certeza, quem mata e tortura hoje tem o bom exemplo dos antecessores que se mantêm ilesos e protegidos. Mais difícil ainda é explicar o sentimento de solidariedade que transforma os atuais comandantes militares do Brasil em leais companheiros de velhos criminosos de um golpe militar que completa, agora, 46 anos.

Nenhuma camaradagem pode haver entre gerações tão distintas de militares, tão distantes do arbítrio. Capitães, majores e tenentes-coronéis de hoje, nas três Armas, nem tinham nascido quando os militares invadiram os porões dos anos 1970 para executar o terrorismo de Estado que combatia ferozmente a esquerda armada. O melhor exemplo é a ficha funcional dos atuais chefes das Forças Armadas brasileiras, todos amadurecidos profissionalmente no regime democrático que agora chega aos 25 anos de vida.

O comandante do Exército, general Enzo Martins Peri, é de um ramo "técnico" da força terrestre, a Engenharia. Era segundo-tenente, aos 23 anos, quando veio o golpe de 1964. Entre as vésperas da quartelada e o agitado ano de 1968, Peri hibernou num burocrático batalhão de engenharia no Rio de Janeiro. Teve uma rápida passagem pela 2ª Seção (área de informação) do discreto 1º Grupamento de Engenharia e Construção de João Pessoa (PB), no governo de Ernesto Geisel. Atravessou a turbulenta década de 1970 como major. Só chegou ao generalato em 1995, no governo FHC, sem nunca ter sujado as mãos com a repressão.

O comandante da Marinha, almirante Júlio Soares de Moura Neto, ainda era um garoto quando veio o golpe de 64, onze dias após completar 21 anos. Quase cinco meses após a queda de João Goulart é que Moura Neto vestiu a farda, como guarda-marinha. Nos anos de chumbo da década de 1970, manteve sua ficha politicamente alva como o uniforme de capitão-de-corveta. Chegou ao almirantado no governo FHC, em 1995.

O comandante da Aeronáutica, Juniti Saito, virou aspirante da FAB no final de 1965, 19 meses após o golpe militar. Chegou a capitão em 1971 e terminou a década maldita como major, sem jamais sobrevoar a área mais radical da Aeronáutica incendiada pelo radical brigadeiro João Paulo Burnier. Foi promovido a coronel no governo Sarney, em 1988, e chegou a brigadeiro com FHC em 1995.

Na ficha funcional dos três, portanto, não existe razão nenhuma para justificar a reação corporativa em defesa de gente que manchou a farda com a tortura. A justa compreensão do processo histórico que exige o conhecimento do passado faria muito bem aos três chefes das Forças Armadas, que têm compromisso com o país e a Constituição que juraram defender – não com os radicais do passado que temem os efeitos sanitários de uma Comissão da Verdade. Não há motivos, portanto, para se sentirem ofendidos com algo que é uma exigência moral de um país que precisa confrontar sua história para conhecer melhor seu destino. É pura bobagem imaginar que uma onda de revisionismo irá faxinar recantos do país com nomes de torturadores ou chefes da ditadura.

O general Garrastazú Médici, o presidente popular da fase mais sangrenta do regime militar (1969-74), quando o coronel Ustra brilhava na Rua Tutóia, é nome de cidade em Rondônia e no Maranhão, avenida em Osasco (SP), bairro em Chapecó (SC), rua em São Luís (MA), conjunto residencial no Rio (RJ). O senador Filinto Muller, o chefe da truculenta polícia política da ditadura de Getúlio Vargas e que remeteu em 1936 a judia alemã Olga Benário (a mulher grávida de Luís Carlos Prestes) para a morte num campo de concentração de Hitler, espraia-se pelo país: é nome de sete escolas em três estados, batiza três ruas e uma avenida. Muller ainda tem direito a busto na ala de gabinetes que leva seu nome no Senado Federal. É inútil imaginar que um suposto revanchismo tente revogar, agora, estes endereços e homenagens.

Em vez de se acovardar com fantasmas de um passado que se deve conhecer, não temer, o ministro Jobim e os chefes militares deveriam se inspirar no exemplo de coragem da Argentina, que tem um contencioso de violência e morte muito mais sangrento do que o Brasil. Lá, sem medo de revanche, o governo de Néstor Kirchner (2003-07) revogou, com o apoio da Suprema Corte, as duas indulgentes leis de anistia – o Ponto Final e a Obediência Devida – concedidas pelo presidente Raúl Alfonsín (1983-89).

A justiça argentina neste momento processa 263 militares e policiais por crimes contra direitos humanos. O general que deu o golpe em 1976, Jorge Rafael Videla, 85 anos, foi condenado à prisão perpétua e cumpre prisão domiciliar, assim como o último presidente da ditadura, o general Reynaldo Bignone. No Uruguai, o último ditador, general Gregório Alvarez, foi condenado em 2009 a 25 anos de prisão pela morte de 37 opositores – três a menos do que o número de vítimas do DOI-CODI da Rua Tutóia sob o comando do coronel Ustra.

Sem medo, sem culpa

Lula, Jobim e os ministros militares poderiam ganhar alento na figura nobre de Martín António Balza, um general de porte altivo e fala serena, que comandou o Exército da Argentina de 1991 a 1999, durante os dois mandatos do presidente Carlos Menem. Vinha da Artilharia com especialização em guerra de montanha. Como tenente-coronel, participou em 1982 da Guerra das Malvinas comandando um grupo de artilharia. Foi preso pelos ingleses e, pela bravura que os generais de Buenos Aires não tiveram, recebeu a Medalha de Mérito do Exército.

Seu ato mais notável, no entanto, foi a espantosa aparição que fez na noite de 25 de abril de 1995 em Tiempo Nuevo, o programa de entrevistas mais importante da TV argentina, apresentado pelo jornalista Bernardo Neustadt. Com o uniforme cáqui de comandante e os cabelos brancos aos 61 anos, Balza iniciou um inesperado mea-culpa que emocionou o país, ainda traumatizado pelos 18 mil desaparecimentos oficialmente reconhecidos (30 mil para entidades de direitos humanos) nos anos da "guerra suja", entre 1976 e 1983.

Tirou um papel do bolso e, com voz firme, carregada de convicção, leu um texto que poderia ser a leitura de um general sobre o Brasil. Fala Balza:

"Quero iniciar um diálogo doloroso sobre o passado, um diálogo doloroso que nunca foi mantido e que se agita como um fantasma sobre a consciência coletiva, voltando estes dias irremediavelmente das sombras onde ocasionalmente ele se esconde. Nosso país viveu a década de 70, uma década assinalada pela violência, pelo messianismo e pela ideologia. Sem buscar palavras inovadoras, mas apelando aos velhos regulamentos militares, aproveito esta oportunidade para ordenar uma vez mais ao Exército, na presença de toda a sociedade: ninguém está obrigado a cumprir uma ordem imoral ou que se afaste das leis e dos regulamentos militares. Quem o fizer incorre em uma conduta viciosa, digna da sanção que sua gravidade requeira. Sem eufemismos, digo claramente:

"Delinque quem vulnera a Constituição nacional. Delinque quem emite ordens imorais. Delinque quem cumpre ordens imorais. Delinque quem, para cumprir um fim que crê justo, emprega meios injustos e imorais. A compreensão desses aspectos essenciais faz a vida republicana de um Estado. Compreender isto, abandonar definitivamente a visão apocalíptica, a soberba, aceitar o dissenso e respeitar a vontade soberana...

"Esse é o primeiro passo que estamos dando há muitos anos para deixar o passado para trás, para ajudar a construir a Argentina do futuro, uma Argentina amadurecida na dor, que possa chegar algum dia ao abraço fraterno. Se não pudermos elaborar a dor e cicatrizar as feridas, não teremos futuro. Não devemos mais negar o horror vivido, e assim poder pensar em nossa vida como sociedade que avança, superando a pena e o sofrimento.

"Em nome da luta contra a subversão, o Exército derrubou o governo constitucional e se instalou no poder em forma ilegítima, num golpe de Estado. Venho pedir perdão por isso e assumir a responsabilidade política pelo desatino cometido no passado. No poder, o Exército cometeu ainda outros delitos. O Exército prendeu, sequestrou, torturou e assassinou – tal qual o fizeram os delinquentes subversivos – e muitos de seus membros viraram delinquentes como eles".

A Argentina, espantada e emocionada, engoliu em seco. Era a primeira vez que um general dizia, com clareza e contundência, o que o país comentava entre si, num sussurro sofrido e ainda sobressaltado. O ato de contrição liberou e animou os outros dois chefes militares. Dias depois, o comandante da Força Aérea admitiu os mesmos excessos, sucedido pelo comandante da Marinha, patrona do maior emblema da repressão no país – a ESMA, Escola de Mecânica da Armada. Em 2004, o prédio em estilo clássico emoldurado com quatro esguias colunas de mármore branco, na elegante Avenida Libertador, em Buenos Aires, foi reformado e transformado no "Espaço para a Memória e a Promoção e Defesa dos Direitos Humanos". Está aberto ao público desde 2007. Em dezembro passado, coroando esta fase de dignidade nacional, começou o julgamento de 19 militares da Marinha acusados de crimes contra a humanidade cometidos no interior da ESMA.

O histórico depoimento do general Martín Balza produziu um efeito profundo no país e nas Forças Armadas argentinas, lembra o jornalista brasileiro Flávio Tavares, que foi correspondente de O Estado de S.Paulo em Buenos Aires nos anos de chumbo:

"Sem que o próprio presidente Carlos Menem soubesse, o general Balza fez o mea-culpa e iniciou o processo de sinceramiento, como se chama na Argentina a essa catarse da instituição militar. Com isso, libertou milhares de oficiais das Forças Armadas do pesadelo de terem de assumir como próprios os delitos cometidos por uma minoria no Exército, na Marinha e na Aeronáutica. 

"Esse processo de sinceramiento, a decisão de nada ocultar, reaproximou as Forças Armadas e a população, suplantando desconfianças e temores. Recordo ainda que, após a entrevista de arrependimento de Balza, uma jornalista argentina – com familiares assassinados pela ditadura – aproximou-se sorrindo, estendeu a mão e lhe disse:

– Pela primeira vez posso apertar a mão de um general sem ter medo ou culpa."

Um diálogo tão doloroso, numa nação tão machucada como a Argentina, mostra que o tema da anistia e do perdão depende, às vezes, da palavra certa e muito da vontade política. E precisa ainda mais de coragem, que até agora não irrompeu no Alto Comando do Brasil. Não é difícil imaginar o efeito regenerador que uma declaração do general Enzo Peri, com este conteúdo, teria na história brasileira, reconciliando militares e suas vítimas pelo simples reconhecimento da culpa. É um gesto penoso, resignado, contrito, mas de insuperável grandeza. É difícil e ao mesmo tempo simples. Portanto, possível.

Quando assumiu o posto de ministro da Defesa, num momento em que o país vivia o apagão aéreo que convulsionava os aeroportos, Nelson Jobim fez uma conclamação que impressionou pelo arrojo, pela determinação:

– Aja ou saia, faça ou vá embora!

O Brasil gostaria de apertar a mão dos seus generais, sem medo ou culpa.

Basta agir e fazer, ministro Jobim! Ou, então, saia. Vá embora.


Visto no Vi o Mundo.

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