terça-feira, agosto 31, 2010

Última edição impressa do "JB" circula hoje

A última edição impressa do "Jornal do Brasil", um dos mais antigos diários do país, circula hoje. A partir de amanhã, o jornal terá apenas uma versão on-line.

Criado em abril de 1891 pelo escritor Rodolfo Dantas, o "JB" ajudou a definir os rumos da imprensa brasileira.

Por sua Redação passaram jornalistas como Janio de Freitas, Marcos Sá Corrêa e Zózimo Barroso do Amaral, além de escritores que assinavam colunas regulares, a exemplo de Manuel Bandeira, Clarice Lispector e Carlos Drummond de Andrade.

O jornal vivia há décadas em crise financeira, com dívidas trabalhistas crescentes e queda na circulação.

Atualmente, na gestão do empresário Nelson Tanure, que arrendou o uso da marca por 60 anos, tinha dificuldade para manter seu custo operacional (cerca de R$ 3 milhões por mês) diante da queda na circulação e de um passivo estimado em R$ 100 milhões em dívidas.

Tanure já tinha feito outras incursões pela mídia. Em 2002, comprou os direitos de publicação da revista "Forbes", no Brasil, que um ano depois rompeu o contrato.

Em 2003, arrendou o jornal econômico "Gazeta Mercantil", que também tinha grande passivo e deixou de funcionar no ano passado.

Em 2008, o "Jornal do Brasil" tinha uma tiragem média de 95 mil exemplares diários. Este ano, caiu para 20 mil.

Tanure não quis comentar o fim da circulação.

Para a versão digital, o jornal pretende manter uma equipe de 150 jornalistas e profissionais da área comercial e administrativa.

Em comunicado a seus leitores, o jornal diz que se tornará o primeiro veículo 100% digital do país. A versão on-line para assinantes custará R$ 9,90 mensais.

Hoje, ao meio-dia, no centro da cidade, o Sindicato dos Jornalistas do Rio de Janeiro fará um ato contra o fim da versão impressa, com a participação de ex-funcionários do "JB".

HISTÓRIA

O jornal nasceu como um veículo monarquista em pleno regime republicano. Chegou a ser empastelado no primeiro ano por sua cobertura favorável a D. Pedro 2º. Nessa época, tinha em seus quadros nomes como Joaquim Nabuco e Rui Barbosa.

Em 1959, realizou uma revolucionária reforma gráfica e editorial. Além da diagramação mais limpa e moderna, passou a trazer um noticiário claro e objetivo.


Texto do BOL Notícias.

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segunda-feira, agosto 30, 2010

Guerra!




Do Laerte, na Folha de São Paulo.

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sábado, agosto 28, 2010

Cresce a tensão social por melhores condições de trabalho nos países emergentes

Cresce a tensão social por melhores condições de trabalho nos países emergentes


Rémi Barroux


Das greves de operários do setor automobilístico na Índia aos conflitos nas minas africanas, dos suicídios de funcionários chineses aos assassinatos de sindicalistas colombianos, as tensões sociais têm se aprofundado nos países emergentes. O aumento das questões relativas ao meio ambiente e à saúde no trabalho e as mobilizações contra as condições precárias de emprego são constantes. É o cenário na América Latina, na Ásia e na África.


Com a crise mundial, as reivindicações frente à degradação das condições de trabalho e de poder de compra se multiplicaram. Na China, explica Raymond Torres, que dirige o Instituto de Pesquisas da Organização Internacional do Trabalho (OIT), “os funcionários reivindicam porque eles se encontram em posição mais forte: a reserva de mão de obra começa a se esgotar e uma nova geração de trabalhadores, que estudou mais, se encontra menos sensível às pressões ideológicas do regime”.


No setor automobilístico, na Ásia ou na América Latina, os conflitos são cada vez mais frequentes. Os setores estratégicos da indústria petrolífera e mineradora estão se reestruturando. A petroleira britânica Shell considera se retirar de 21 países da África, causando a preocupação dos trabalhadores. As vendas e compras de empresas modificam os termos dos contratos de trabalho, tendo por consequência a terceirização de vários funcionários. É um dos principais motivos de conflitos.


Na Índia, o movimento sindical, fragmentado e muito politizado, convocou uma greve geral para o início de setembro, a fim de protestar contra a política governamental de “enfraquecimento da legislação trabalhista”. A reivindicação por um “trabalho decente” se tornou a principal preocupação da OIT e da Confederação Sindical Internacional (CSI) (175 milhões de membros de 311 organizações em 155 países). Esta faz a convocação para um dia mundial de mobilização sobre esse tema, em 7 de outubro.


Exigências ambientais


A conversão dos sindicatos às problemáticas ambientais é recente, mas parece sincera. A crise econômica torna urgente a busca por novas saídas, e o desenvolvimento da economia verde poderia criar centenas de milhares de empregos novos. Mas não é a única razão. “Ainda que a maioria dos conflitos continue centrada nas questões sociais e nos problemas de sobrevivência”, explica o senegalês Mamadou Diallo, diretor da associação na CSI, “sabemos que a degradação do meio ambiente, assim como o avanço do deserto, a erosão dos solos ou a seca dos grandes lagos africanos, modificam o destino das populações”.


As lutas pela preservação dos territórios contra a expansão de grandes companhias mineradoras muitas vezes se juntam às dos sindicatos, a exemplo do Chile e da Guatemala.


Urgência democrática


O respeito aos direitos sindicais e às normas sociais constitui uma causa importante de protestos. De fato, são muitos os atos de violência: repressões, prisões, demissões, transferência de sindicalistas... O Relatório Anual das Violações dos Direitos Sindicais, elaborado pela CSI, revela que 101 sindicalistas foram mortos em 2009 (ante 76 no ano anterior), 48 dos quais somente na Colômbia.


As prisões de militantes são frequentes no Irã, no Zimbábue, na Coreia, em Honduras, etc. E são muitas as violações dos direitos sindicais na Rússia, no Egito, na Turquia ou na Coreia do Sul. De forma geral, a escalada da violência antissindical é preocupante, especialmente na América Central, no Panamá e na Guatemala...


Sindicatos às vezes ultrapassados


“O pluralismo sindical é muitas vezes mal aceito por nossos próprios membros, mas hoje isso está mudando, e estamos tentando promover laços com organizações independentes”, admite o britânico Guy Rider, ex-secretário geral da CSI.


Em muitos países, como na Argélia, os conflitos são conduzidos por sindicatos não afiliados à CSI e movimentos surgidos na sociedade civil. Para protestar contra a saída da Shell da África, os trabalhadores se organizaram, de Casablanca (Marrocos) até Uagadugu (Burkina Fasso), na rede social Facebook, criando o grupo “Shell people are not for sale” (“Os funcionários da Shell não estão à venda”. O desafio para o sindicalismo é integrar esses novos parâmetros.


Outra dificuldade: os sindicatos, especialmente na África, devem representar os trabalhadores da economia informal. O desenvolvimento dessa economia paralela, que engloba 1,8 bilhão de pessoas, ou seja, metade da população ativa mundial, aumenta a pobreza, acredita a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), e gera conflitos. Dois terços da população ativa poderão se ver sem contrato de trabalho e sem proteção social em 2020.


Tradução: Lana Lim



Notícia do Le Monde, republicado no UOL.



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O domínio do trivial

O domínio do trivial

AOS VINTE anos, leitor de Gramsci, eu entendia que o poder das classes dominantes se exercia de duas maneiras.
Havia a exploração econômica, com repressão eventualmente brutal das reivindicações dos trabalhadores (sem contar as guerras imperialistas).
E havia a outra face do domínio: o controle das ideias e das mentes, oculto e insidioso. Esse era o terreno de luta dos intelectuais: podíamos colaborar com a classe dominante ou, então, fazer o quê? Sermos porta-vozes de uma nova classe?
Não éramos totalmente ingênuos. Reconhecíamos os horrores do dito "socialismo real" e percebíamos que ele substituíra uma classe dominante por outra. A ditadura do proletariado não tinha por que ser melhor do que a ditadura da burguesia; talvez, aliás, ela fosse pior. Nosso sonho era outro: uma sociedade sem classes.
Pois bem, um espectador apressado poderia pensar que, enfim, realizamos a famosa sociedade sem classes -ao menos em parte.
Claro, desigualdades e exploração continuam; no entanto, é difícil distinguir a cultura da classe dominante das outras que lhe seriam opostas, porque, no fundo, mesmo quando parecemos discordar, pensamos todos igual.
Acabo de ler "L'Egemonia Sottoculturale", de Massimiliano Panarari (Einaudi, 2010). O autor, um intelectual de minha geração, faz uma crítica hilária da "subcultura da fofoca", que seria, segundo ele, a cultura dominante na Itália de hoje. Infelizmente, é difícil entender os exemplos no texto de Panarari sem ter sido espectador da televisão aberta italiana durante um bom tempo (e para isso é necessário dar prova de um certo heroísmo). Mas o que Panarari diz não se aplica só ao caso da Itália.
Mundo afora, é cada vez mais difícil dizer algo que não faça parte de um senso comum que é feito de referências, ideias e, sobretudo, maneiras de pensar compartilhadas graças ao uso generalizado da mesma mídia.
Nesse quadro, pensar criticamente é árduo. Quem deseja convencer seus leitores ou espectadores de que ele pensa fora da trivialidade dominante tende a parecer-se com aquelas crianças que, de vez em quando, gritam "xixi e cocô" e, com isso, gabam-se de ter quebrado um grande tabu.
Nesse sentido, nos EUA, são cada vez mais populares radialistas, apresentadores e jornalistas supostamente "conservadores", que devem seu sucesso a uma vulgaridade e a uma truculência que parecem satisfazer a espera de todos por um pensamento novo, diferente. Um exemplo: um dos aspectos do senso comum é um respeito forçado das regras do politicamente correto. Diante disso, os ditos comentadores não inventam visões mais complexas e produtivas da diversidade social, mas, para criar a ilusão de que eles pensariam fora do senso comum, permitem-se, de vez em quando, dizer ou gritar "negro" ou "viado". Sua "ousadia" é tão inovadora quanto a das crianças do "xixi e cocô".
No Brasil, o debate eleitoral em curso poderia também servir para mostrar que nosso senso comum compartilhado é, no caso, uma espécie de razoabilidade, resignada a evitar temas excessivamente conflitivos (o aborto, por exemplo) e a aceitar alianças duvidosas e supostamente "necessárias".
Como chegamos a essa perda de contraste na vida pública e cultural?
Segundo Panarari, a burguesia ganhou a luta pela hegemonia jogando a carta do prazer: "Na década do hedonismo reaganiano, todos se convenceram, de repente, que estava na hora de divertir-se. Palavra de ordem: "Queremos folgar" e, por favor, evite-se empestar a existência, de qualquer maneira que seja, com política, cultura, economia e todas essas "coisas" assimiláveis a preocupações e aborrecimentos". Conclusão: a subcultura hedonista da fofoca é o novo ópio do povo.
Concordo (um pouco) com essa visão apocalíptica da cultura dominante. Mas discordo da ideia de que a subcultura da fofoca seja a invenção vitoriosa de uma classe específica.
Ela é, ao meu ver, uma consequência dos nossos tempos, pela razão que segue. Quando a mídia é de massa, não há mais diferença entre manipuladores e manipulados, pois os próprios manipuladores, expostos à mídia, são manipulados por suas produções. Ou seja, progressivamente, todo o mundo pensa as mesmas trivialidades.
É o feitiço que enfeitiça o feiticeiro.

Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo, de 19 de agosto de 2010.

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Brasileiros e a cultura do "QI"

Cumplicidade na cultura do "QI"

NÃO me dei conta de quão pouco tinha me abrasileirado, até aceitar um bico aqui, anos atrás. Antes do bico, eu era um jornalista estrangeiro, e meu convívio com brasileiros acontecia em filas, festas e outras farras.
Mas o empreguinho me aproximou das pessoas no local de trabalho, onde as regras e hierarquias eram novas para mim. Meu bico -fazer a narração em inglês de um programa bilíngue que passava em voos internacionais- me tomava só uma hora por mês.
Minha relação com os colegas de trabalho era muito fraternal e tranquila.
Isso até o dia em que eu recebi uma ligação do sonoplasta que, acidentalmente, havia apagado parte da narração que eu acabara de gravar, pedindo que voltasse ao estúdio "já, já" para regravar.
Quando perguntei se eu ganharia pelo trabalho extra, ele ficou furioso. Por quê? O sonoplasta teria de pedir a permissão do patrão e, assim, expor seu erro.
Então, quando voltei ao estúdio, fui recebido com uma cara feia e um discurso.
"Pô, cara, você se recusou a quebrar um galho para mim, me expondo para o meu chefe. Aqui dentro todo o mundo é amigo, e uma mão lava a outra."
Eu disse que o pedido para que eu voltasse "já, já" me pareceu mais uma ordem do que um favor, e que eu nunca tinha pedido a ele que lavasse minha mão para encobrir um erro meu. Perguntei como esse acordo me beneficiaria.
Mas a cara feia não mudou. Então, para fazer as pazes, eu disse: "Venho de uma cultura que valoriza o tempo do funcionário, e você vem de uma que valoriza sua cumplicidade. Mas vivo na sua cultura. Então, se esse acidente se repetir, faça seu pedido parecer um favor, não uma ordem". E, de repente, a cara feia sumiu.
Às vezes, o que cria essa cumplicidade é uma rede QI (Quem Indica), que começa na juventude.
Os empregadores aqui esperam que os funcionários, especialmente os contratados via rede QI, sejam cúmplices de suas políticas injustas. Empregados provam sua cumplicidade, fazendo horas extras, não remuneradas.
Eles compensam essa exploração emendando feriados.
Os patrões fingem não notar, porque lucram mais com o desequilíbrio do tal "uma mão lava a outra". No caso do bico, entrei nesse esquema. E, quando o larguei, as mãos que lavei apertaram a minha, como se dissessem "parabéns, gringo, você se abrasileirou".


MICHAEL KEPP, jornalista norte-americano radicado há 27 anos no Brasil, é autor do livro de crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record)

Texto publicado na Folha de São Paulo, de 17 de agosto de 2010.


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quarta-feira, agosto 18, 2010

O que está acontecendo a Israel?


O que está acontecendo a Israel?



A Folha de São Paulo publicou pequeno texto, ilustrado com foto, informando que uma soldado que cumpriu dois de serviço militar obrigatório, colocou foto em seu álbum no Facebook, posando ao lado de um palestino detido. Segundo a Reuters, a soldado se chama Eden Abergil. O palestino está com os olhos vendados e algemados, como é possível constatar.


A foto causou certa comoção. Reproduzo trecho da reportagem:


Autoridades palestinas se queixaram de que as fotos "mostram a mentalidade do ocupante [Israel], orgulhoso por humilhar os palestinos", e um grupo de direitos humanos israelense disse que o caso reflete o "desprezo israelense pelos palestinos".”


Certamente a foto expressa desprezo com os palestinos. A polícia no Brasil costuma deter “indivíduos suspeitos” para averiguação, sem que qualquer crime tenha sido cometido, mas normalmente as pessoas são soltas em seguida, nunca são vendadas, e muito raramente chegam a ser algemadas. O caso da soldado israelense se mostra mais grave uma vez que a polícia brasileira não é uma campeã no respeito aos direitos humanos, nem uma força de ocupação, como é o caso dos israelenses na Cisjordânia.


A foto da soldado com o prisioneiro me lembrou o escândalo das fotos de soldados americanos mal-tratando prisioneiros em Abu Ghraib, no Iraque. Ou seja, acho que é mais uma vergonha para Israel.


A reportagem termina dizendo que a soldado não aceitou críticas, e, presumivelmente, não pediu desculpas a ninguém pela exposição pública da foto, mas retirou a foto e outras semelhantes de seu álbum na rede social.



A origem da foto é a Folha, com créditos para “Associated Press/sachim.tumblr.com” .


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Operações Secretas dos Estados Unidos

Pentágono expande operações secretas na África e na Ásia

Governo Obama aprofundou prática de misturar ação militar com inteligência civil

DO "NEW YORK TIMES"


Inicialmente, a notícia do Iêmen em 25 de maio pareceu uma vitória modesta contra terroristas: um ataque aéreo atingiu grupos que trabalhavam para a Al Qaeda.
Mas o ataque também matou o governador interino de uma Província, que dialogava com a Al Qaeda pelo fim do conflito. O presidente do Iêmen, Ali Abdullah Saleh, assumiu a responsabilidade e indenizou tribos ofendidas.
A ação, porém, foi uma missão secreta dos EUA, segundo fontes militares, ao menos o quarto ataque à Al Qaeda do país desde dezembro. Esse ataque oferece uma visão sobre a guerra sigilosa do governo Obama contra a Al Qaeda e seus aliados.
Em cerca de 12 países, do norte da África ao Paquistão, os Estados Unidos aumentaram significativamente suas operações de inteligência, perseguindo inimigos com robôs, equipes de elite, pagando mercenários para espionagem e treinando locais para perseguir terroristas.
A Casa Branca intensificou o uso de mísseis teleguiados pela CIA (Agência Central de Inteligência) no Paquistão, aprovou ataques contra a Al Qaeda na Somália e lançou operações clandestinas a partir do Quênia.
O governo trabalhou com aliados europeus para desmantelar grupos terroristas no Norte da África. E o Pentágono criou conexões com uma rede de mercenários para colher inteligência, por exemplo, sobre esconderijos de militantes no Paquistão.
Embora a guerra discreta tenha começado com Bush, foi com Barack Obama que ganhou proeminência.
Virtualmente nenhum dos novos passos agressivos tomados pelo governo americano vieram a conhecimento público. Em contraste com o envio de tropas ao Afeganistão, que tomou meses de debate, a campanha americana no Iêmen começou sem ser notada em dezembro e não foi oficialmente confirmada.
Membros do governo Obama falam dos benefícios de levar para as sombras a guerra contra a Al Qaeda e outras milícias. Afeganistão e Iraque, dizem, esclareceram políticos e eleitores americanos sobre os custos de grandes guerras, que demandam anos de ocupação e podem gerar ainda mais radicalização no mundo muçulmano.

MERCENÁRIOS NO PODER
Ao invés do "martelo", nas palavras de John O. Brennan, importante conselheiro de Obama em contraterrorismo, os EUA vão usar o "bisturi".
Entretanto, tais guerras acarretam muitos riscos: o potencial de operações falhas que só fazem aumentar o ódio antiamericano, uma confusão na distinção entre um soldado e um espião que pode negar às tropas as proteções da Convenção de Genebra, o enfraquecimento da supervisão do Congresso e a confiança em líderes e regimes autoritários.
Por sua vez, o Pentágono está ficando mais parecido com a CIA. No Oriente Médio, operações secretas são realizadas sob ordens que até então caberiam a agências civis. Esses programas operam com ainda menos transparência que na CIA.
Com a expansão das operações de contraterrorismo a territórios hostis aos militares, mercenários ganham um papel de ainda mais relevância, levantando a dúvida de se os EUA não terceirizaram uma de suas mais importantes funções a um exército privado que não é auditável.


Notícia publicada na Folha de São Paulo, de 16 de agosto de 2010.


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Dionísio, a Diferença

DIONÍSIO, A DIFERENÇA

Sob o enunciado "Irmãos americanos", a "Economist" relacionou paralelos históricos, demográficos etc. para argumentar que "o Brasil é na verdade os Estados Unidos, só que disfarçados sob um chapéu de frutas ao estilo de Carmem Miranda" (acima).
Diz que "a lista de dissimilaridades" também é longa, mas se concentra na herança colonial. A Inglaterra deu aos EUA língua, sistema legal, elite política, classe média comercial, liberalismo político e o impulso puritano. Portugal deu língua e catolicismo: "O Brasil desenvolveu sozinho o resto. E o fez com algo que faz falta nos EUA: um espírito dionisíaco, um sentido feliz de que o conflito todo vai terminar -ou pelo menos ser suspenso- em um samba."


Trecho da Coluna Toda Mídia, na Folha de São Paulo, de 16 de agosto de 2010.

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O medo da política

O medo da política


O PRIMEIRO DEBATE presidencial ocorrido no início do mês deu a tônica da profunda despolitização que parece determinar essa campanha. Os principais candidatos demonstraram um cuidado incrível em transformar o confronto político em uma mera discordância a respeito de problemas, em larga medida, gerenciais.
Questões estruturais, como a educação, eram tratadas sob a lógica do ajuste, como se o problema se restringisse a construir algumas dezenas de escolas técnicas e facilitar o acesso de deficientes às escolas.
Enquanto isso, um dos candidatos lutava com todas as forças para que não colocassem na balança as escolhas operadas por seu partido nos anos em que esteve no governo federal. Normalmente, quem diz não fazer política olhando para o retrovisor tem medo de ser cobrado pelas barbeiragens que fez e pelas expectativas que atropelou.
A outra candidata parecia muito mais preocupada em seguir conselhos de profissionais de marketing e acertar desesperadamente seu difícil "timing". Por fim, a candidata verde queria nos fazer acreditar que os problemas do mundo podem ser resolvidos por algumas parcerias com ONGs e grandes bancos internacionais, já que a ecologia seria esta vara de condão com o dom mágico de apagar conflitos sociais e unir ricos e pobres, especuladores financeiros e camponeses.
Talvez seja interessante nos perguntarmos se isso não é o sintoma mais evidente de um certo "medo da política" que parece querer bloquear nossa democracia.
Medo que faz com que todas as propostas de mudanças estruturais sejam imediatamente expulsas do debate, como se fossem produções delirantes.
Um belo exemplo foi a discussão sobre a reforma tributária. Em dado momento, apareceu no programa da candidata governista propostas como impostos sobre grandes fortunas e sobre herança. Uma boa maneira de lembrar que a discussão tributária em um pais de desigualdades brutais como o Brasil passa por tributar cada vez mais a renda em detrimento do consumo.
No entanto, como quem descobre algo vergonhoso que já devia ter sido extirpado há muito, a proposta foi colocada em um lugar seguramente longe. Neste sentido, não é surpreendente o súbito interesse em torno de Plínio de Arruda Sampaio. Pois, no debate, Plínio não teve medo de fazer política. Ele não temeu explorar problemas que tocam a maneira com que relações sócio-trabalhistas são estruturadas em nosso país, como a jornada de trabalho. Enquanto há países cuja jornada é de 35 horas, nós ainda estamos a tentar discutir a redução de uma jornada de 44 horas.
Ele também lembrou como problemas sociais são profundamente ligados aos impasses brutais de redistribuição de riquezas, embora seria necessário não se contentar com generalidades e mostrar claramente quais seriam as políticas de redistribuição a serem defendidas, como elas poderiam ser implementadas sem desestruturação da atividade econômica. Isto, seu partido tem dificuldade em mostrar.
Porém, a repercussão do desempenho do candidato do PSOL talvez sirva para mostrar que, embora questões gerenciais sejam importantes e não devam ser negligenciadas, o que se espera em uma campanha presidencial é um debate verdadeiramente político onde visões estruturais de país possam ser confrontadas.


Texto de Vladimir Safatle, na Folha de São Paulo, de 16 de agosto de 2010.

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terça-feira, agosto 17, 2010

BNDES, transparência e pseudo subsídios

BNDES, transparência e pseudo subsídios

Antonio Corrêa de Lacerda

A atuação do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) tem sido alvo de uma série de questionamentos, especialmente no que se refere a um alegado subsidio embutido nos empréstimos ao setor privado.

O foco tem sido nos aportes realizados pelo Tesouro Nacional ao banco, envolvendo nos últimos dois anos um montante de R$ 180 bilhões. Como a taxa de juros cobrada pelo BNDES aos empréstimos é pela TJLP (Taxa de Juros de Longo Prazo), atualmente em 6% ao ano e a divida pública é regida principalmente Selic (Taxa básica de juros, definida pelo Copom-Comite de Politica Monetária), hoje em 10,75%, a diferença se configuraria em um subsidio ao setor privado.

No entanto, a questão não é assim tão simples. Aparentemente haveria na operação uma diferença de 4,75 pontos percentuais que se configuraria em um subsidio da ordem de R$ 8 bilhões ao ano, a ser coberto pelas contas publicas. Mas, o raciocínio aqui tem que ser dinâmico e não estático. Mais econômico do que contábil.

O primeiro ponto a ser destacado é que trata-se de empréstimos de longo prazo, de 30 ou mais anos. É muito pouco provável que a diferença atual, entre Selic e TJLP prevaleça nesse longo período. A tendência é que elas se aproximem, pois as taxas de juros básicos devem ser reduzidas.

Segundo, vale analisar o papel dos bancos públicos. Eles existem como atividade de fomento, financiando investimentos em infraestrutura, indústria e agropecuária, algo que os bancos privados nem sempre estão dispostos a fazê-lo. Outro aspecto importante é que, no mundo cada vez mais globalizado, nossas empresas concorrem com outras, que tem condições de financiamento incomparavelmente mais favoráveis.

Empresas sulcoreanas e chinesas, por exemplo, contam com financiamentos públicos a custo praticamente zero e tem as suas atividades apoiadas com subsídios e incentivos porque são vistas como estratégicas para o desenvolvimento e inserção internacional destes países.

A questão é que as altas taxas de juros praticadas no mercado doméstico brasileiro inibem os investimentos produtivos. Elas são um verdadeiro convite ao ócio. Porque alguém investiria na produção para ganhar menos do que receberia adquirindo títulos da dívida publica, sem muito esforço e quase sem risco. Os próprios bancos privados tendem a não se interessar por operações de crédito, porque é muito mais cômodo e seguro financiar o Estado. No Brasil, os bancos públicos também têm a função de corrigir parcialmente essa anomalia.

Mas, as contas públicas também são favorecidas com o resultado das operações realizadas pelos bancos públicos. Primeiro porque há um efeito multiplicador dos investimentos, que vamos considerar, de forma conservadora, da ordem de 2 vezes. Os R$ 180 bilhões adicionais de capacidade de empréstimos do BNDES geram potencialmente R$ 360 bilhões de atividade econômica, que propiciam uma receita tributária da ordem de R$ 72 bilhões, considerando, também de forma bastante conservadora, um carga tributária média de 20%.

O segundo aspecto é que a atividade do BNDES é lucrativa. Somente em 2009 gerou o lucro liquido de R$ 6,7 bilhões, depois do pagamento de Imposto de Renda. O Tesouro Nacional é beneficiário de grande parte desse lucro, na forma de dividendos.

Um terceiro ponto, de difícil mensuração é o custo da não realização de investimentos. O BNDES praticamente dobrou a sua participação no financiamento de investimentos na infraestrutura e indústria nos últimos quatro anos, de 21%, em 2005, para quase 40% do total, em 2009. Se não houvesse o apoio dos bancos públicos muitos projetos não seriam realizados, especialmente na infraestrutura, representando uma restrição ao crescimento da atividade, do emprego, da renda e da receita tributária. Algo danoso para o país.

Ou seja, não há subsidio nas operações do BNDES, nem no conceito clássico da OMC (Organização Mundial do Comercio), porque os juros praticados, embora mais baixos do que a média do mercado brasileiro ainda estão muito acima dos concorrentes internacionais, nem representam ônus para as contas publicas, uma vez que a receita gerada para o governo, supera em muito o custo implícito na operação.

A crise internacional deveria ter ressaltado o papel crucial desempenhado pelos bancos públicos no Brasil, que representaram um importante instrumento de política macroeconômica anticíclica. Foi um determinante contraponto à escassez de crédito de financiamento e, portanto, um dos principais fatores que diferenciaram a economia brasileira de outros países em desenvolvimento que não puderam contar com instrumentos equivalentes.

Não deixa de ser curioso observar que os defensores da ora, do erário público e da transparência, no que se refere ao suposto subsidio dos empréstimos públicos ao setor privado, jamais tenham proposto o mesmo procedimento para o custo de financiamento da dívida pública. Os juros reais mais elevados do mundo geram uma despesa pública anual de 5,5% do PIB (Produto Interno Bruto), algo próximo de R$ 160 bilhões ao ano. Uma transferência enorme renda de toda a sociedade para o setor financeiro e os rentistas, extremamente vulnerável às ?expectativas? de inflação e de juros, que acabam influenciando fortemente as decisões do Copom !

Antonio Corrêa de Lacerda é professor-doutor do departamento de economia da PUC-SP e ex-presidente do Cofecon ? Conselho Federal de Economia e da Sobeet.


Texto publicado no Valor Online, reproduzido no blog do Luís Nassif.


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segunda-feira, agosto 16, 2010

Confissões sob tortura serão admitidas em tribunal militar de Guantánamo?

Confissões serão admitidas em julgamento de canadense em base


DE WASHINGTON - Confissões supostamente obtidas sob tortura contra Omar Khadr, 23, detido na prisão americana de Guantánamo (Cuba) desde os 15 anos, serão admitidas em seu julgamento por terrorismo por uma comissão militar, determinou ontem o juiz do caso. O julgamento começa hoje.
O uso do material suspeito seria controverso em qualquer situação, mas se torna mais polêmico em se tratando de Khadr, cidadão canadense capturado em 2002 no Afeganistão que será o primeiro a ser julgado em um tribunal de guerra ocidental por atos cometidos durante a infância e a adolescência.
É também um retrocesso para o governo do presidente Barack Obama, que baniu a tortura e agora permite que prováveis frutos da prática constituam provas em um processo.
(ANDREA MURTA)


Da Folha de São Paulo, de 10 de agosto de 2010.

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A Universidade Pública Forte

A universidade pública forte


Nestes últimos anos, um dos fenômenos mais dignos de nota foi o fortalecimento da universidade pública graças a um importante ciclo de expansão e interiorização do sistema federal. Tal fenômeno merece estar presente na pauta do debate eleitoral que se inicia.
Em 2002, as universidades públicas federais encontravam-se em situação terminal. O déficit de professores necessários para simplesmente conservar o sistema tal como era nos anos noventa chegava a 7.000. Talvez alguns se lembrem do caso de universidades que precisaram limitar sua atividade noturna por não ter dinheiro para pagar conta de luz.
No lugar das universidades públicas, vimos uma política que incentivava a proliferação de universidades privadas, em larga medida, dissociadas do tripé pesquisa/docência/extensão e cuja qualidade, até hoje, não passou o estágio do duvidoso.
É bem provável que esta experiência tenha mostrado que o sistema privado sai-se muito bem quando é questão de criar centros direcionados à formação para o mercado (como escolas de administração de empresas, publicidade, comunicação, economia, entre outros).
Mas, excetuando as universidades confessionais, os resultados são ruins quando se trata de implementar sistemas universitários complexos capazes de atrair profissionais dispostos a desenvolver habilidades de professor, pesquisador e divulgador de conhecimento.
Alguns criticam o processo recente de ampliação e fortalecimento da universidade pública afirmando que se tratam de universidades caras e de baixa capacidade de absorção das exigências de empregabilidade. No entanto, o sistema universitário público brasileiro é, em larga medida, adequado para os desafios do nosso futuro. Ele garante autonomia de pesquisa ao corpo docente, flexibilidade relativa de escolha de disciplinas para alunos (o que permite particularização da formação), além de abertura para a constituição de estruturas interdisciplinares.
Não precisamos discutir o modelo universitário público, mas aprofundá-lo, permitindo que ele democratize seus modos de gestão, de decisão e que enfim desenvolva todas suas potencialidades e pluralidades.
Por exemplo, vez por outra, aparece alguém afirmando que seria melhor às universidades públicas terem ligação mais profunda com o mercado, um pouco como certas universidades norte-americanas, cuja boa parte de suas linhas de financiamento depende da capacidade em captar recursos da iniciativa privada.
No entanto, seria interessante perguntar a estas pessoas quem então pagará pesquisas que visam mostrar a ineficácia de tratamentos do sofrimento psíquico baseados na medicalização. Certamente, não a indústria farmacêutica. E quem pagará as pesquisas que mostram a participação do empresariado nacional na Operação Bandeirantes e no financiamento do aparato repressivo da ditadura militar? Certamente, não o empresariado nacional. E quem pagará as pesquisas que visam expor os resultados catastróficos da liberação das ações do sistema financeiro em relação à tutela do Estado? Certamente, não os bancos.
Estes são apenas alguns exemplos de limitação do espectro de reflexão da universidade caso um novo modelo se imponha e caso relações de parceria entre mercado e universidade se transformem em confissões de dependência.

Texto de Vladimir Safatle, para a Folha de São Paulo, de 9 de agosto de 2010.


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O direito de conhecer a verdade

O direito de conhecer a verdade


NAVI PILLAY

A recente sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos exigindo que o Brasil revise sua lei de anistia é um marco crucial na luta contra a impunidade em uma região que ainda precisa entender melhor e confrontar as atrocidades cometidas durante os conflitos internos das últimas décadas.
As leis de anistia que fazem vista grossa para os abusos de direitos humanos não só distorcem os registros históricos que todo país deve ter mas também minimizam o sofrimento das vítimas e prejudicam seu direito a conhecer a verdade e a obter uma reparação.
Os governos costumam justificar as leis de anistia em nome da rápida reconciliação nacional.
A história mostra, porém, que não responsabilizar os autores, além de negar a justiça às vítimas, pode gerar novos conflitos em vez de curar feridas. Quando anistias são concedidas na pressa de virar a página dos conflitos -ou pela sinistra razão de encobrir os abusos- sua revogação deve ser sempre uma opção aberta.
No entanto, na América do Sul e em outros lugares, o esquecimento continua sendo promovido. Isso acontece apesar de que, como a Corte sublinhou, deixar indefesas as vítimas e continuar com a impunidade são ações incompatíveis com o espírito da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
Um exemplo é o Brasil, onde o Supremo Tribunal Federal negou a possibilidade de alterar a lei de anistia de 1979, afirmando que os crimes cometidos durante a ditadura foram "atos políticos".
No Chile, a lei da anistia continua vigente, após 32 anos, apesar do repúdio internacional e das tentativas fracassadas de condenar o ex-ditador Augusto Pinochet.
No Uruguai, o governo teve que intervir para impedir a promulgação de uma lei que teria permitido a libertação de autores de violações de direitos humanos devido à sua idade avançada. Nesse contexto, medidas para melhorar a prestação de contas são fundamentais.
Na Argentina, país com o maior número de julgamentos de direitos humanos no mundo, tribunais continuam presidindo casos de crimes contra a humanidade e graves violações de direitos humanos cometidos durante a guerra suja. O ex-ditador Rafael Videla está novamente respondendo por violações de direitos humanos.
A Argentina tem demonstrado que conhecer a verdade é um direito sem limites. E um direito que ninguém pode negar. Todos e cada sociedade têm o direito de saber quem violou seus direitos, por que, quando, onde e como os crimes foram cometidos, e de serem informados sobre o destino das vítimas.
Anistias que sepultam a verdade e isentam os responsáveis são suscetíveis a prejudicar a perspectiva de construção de sociedades justas e seguras no futuro. A impunidade fomenta o ressentimento e a falta de confiança nas instituições. Ela encoraja os autores a cometer novos crimes e pode encorajar outros a se juntarem aos infratores.
A posição da ONU sobre as anistias é claríssima: não são admissíveis se evitam o julgamento de pessoas que podem ser penalmente responsáveis por crimes de guerra, genocídio, crimes contra a humanidade ou violações graves de direitos humanos. Por outro lado, a anistia não deve pôr em perigo o direito das vítimas a recursos legais, incluindo a reparação, nem pode limitar seu direito e o das sociedades de conhecer a verdade.
O exercício desses direitos é incompatível com a impunidade. Os países do hemisfério Ocidental devem estar atentos à decisão da Corte Interamericana e prover a longa e negada justiça às vítimas de violações dos direitos humanos.


NAVI PILLAY é comissária das Nações Unidas para os direitos humanos.

Texto publicado na Folha de São Paulo, de 6 de agosto de 2010.


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Tony Judt

Tony Judt


SÃO PAULO - Tony Judt era (ou é) um dos maiores intelectuais da atualidade. A frase soa batida e talvez não dê conta da dimensão pública do historiador britânico, morto na sexta-feira, aos 62 anos.
Três de seus livros estão traduzidos: "Passado Imperfeito" (1992), sobre a atração fatal da intelectualidade parisiense pelo comunismo nos anos que se seguiram à libertação da França, em 1944; "Pós-Guerra: uma História da Europa desde 1945" (2007), que é sua obra monumental; e "Reflexões sobre um Século Esquecido" (2008), reunião de ensaios que pingaram nas últimas duas décadas em publicações como a "New York Review of Books".
São textos excepcionais, escritos com estilo e clareza exemplar. Vários deles cuidam dos intelectuais e da sua relação, tantas vezes de omissão ou cumplicidade, com os horrores do século 20.
Em "Eric Hobsbawm e o Romance do Comunismo", Judt elogia a "fama bem merecida" do colega, "o historiador mais dotado do nosso tempo". Mas lembra que, "para fazer algum bem no novo século, temos de começar por dizer a verdade sobre o anterior"; e Hobsbawm "de certa forma dormiu durante o terror e a vergonha de sua época".
Não imagine por isso que Judt seja um entusiasta do livre-mercadismo. Não mesmo. Ele não hesita em tratar o marxismo como uma fantasia -"uma combinação de descrição econômica, prescrição moral e previsão moral" sedutora-, mas permanece no campo da esquerda.
Sua perspectiva é a social-democracia, ainda que reconheça que hoje ela tenda a se confundir com a "ala avançada do liberalismo de mercado reformista". Judt é um pensador agudo, sutil e antidogmático, jamais obscuro ou panfletário.
Talvez por isso tivesse humor para dizer: "Fora da universidade, sou visto como um comunista judeu, esquerdista e louco que se odeia; dentro da universidade, me veem como um elitista branco, liberal e antiquado". Intelectuais como ele fazem diferença. E falta.

Texto de Fernando de Barros e Silva, na Folha de São Paulo, de 9 de agosto de 2010.


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sábado, agosto 14, 2010

Serra faz campanha em Washington?

Serra faz campanha em Washington?


O QUE JOSÉ SERRA está tentando fazer? Em sua campanha pela Presidência do Brasil, ele acusou a Bolívia de cumplicidade no tráfico de drogas e criticou Lula por tentar mediar a disputa entre Washington e o Irã, e por recusar (em companhia da maioria dos demais países sul-americanos) reconhecimento ao governo de Honduras, "eleito" sob uma ditadura.
Por algum tempo ele optou por não aderir à campanha internacional de Washington contra a Venezuela, mas agora Serra e seu candidato a vice, Índio da Costa, também adentraram aquele pútrido pântano, alegando que a Venezuela "abriga" as Farc (Forças Armadas Revolucionárias Colombianas), o principal grupo guerrilheiro que combate o governo da Colômbia.
Que conste: a despeito de uma década de alegações, Washington ainda não conseguiu apresentar publicamente um traço de prova de que o governo de Chávez de fato apoie as Farc.
A única "prova" de que existe em domínio público vem de laptops e outros equipamentos de computação supostamente capturados pelas Forças Armadas colombianas em sua incursão ao território do Equador em março de 2008.
Blogueiros de direita como Reinaldo Azevedo repetem o mito de mídia de que a Interpol teria confirmado a autenticidade desses arquivos supostamente capturados, mas um relatório da Interpol nega enfaticamente essa possibilidade. Tudo que temos é a palavra das Forças Armadas colombianas -organização que sabidamente assassinou centenas de adolescentes inocentes e os vestiu como guerrilheiros.
Será que Serra realmente deseja que o Brasil compre brigas com todos os seus vizinhos a fim de se colocar desafiadoramente do lado errado da história? E isso apenas para se tornar o maior aliado direitista de Washington? Sim, caso Serra não tenha percebido, os Estados Unidos, sob o governo Obama como sob o governo Bush, só têm governos de direita como aliados no hemisfério: Canadá, Panamá, Colômbia, Chile, México. Existe um motivo para isso: a política norte-americana com relação à América Latina não mudou sob Obama.
Mesmo de um ponto de vista puramente maquiavélico -deixando de lado qualquer ideia de fazer da região ou do mundo um lugar melhor-, a estratégia "Serra Palin" faz pouco sentido. O Brasil tinha boas relações com Bush e pode ter boas relações com Obama sem incorrer nessa espécie desonrosa de servidão.
O Brasil não é El Salvador, país cujo governo vive sob chantagem por ameaças de enviar de volta ao seu território os milhares de emigrantes salvadorenhos que vivem nos Estados Unidos. E nem El Salvador tomou a estrada que Serra está percorrendo.
Não é apenas na Venezuela e na Bolívia que os Estados Unidos investem dezenas de milhões de dólares para adquirir influência política. Em 2005, como reportou este jornal, os Estados Unidos bancaram um esforço para mudar a lei brasileira de maneira a reforçar a oposição ao Partido dos Trabalhadores.
Washington tem grande interesse no resultado da eleição deste ano porque procura reverter as mudanças que tornaram a América Latina, no passado o "quintal" dos Estados Unidos, mais independente que nunca em sua história. José Serra está fazendo com que esse interesse cresça a cada dia.

TRADUÇÃO DE PAULO MIGLIACCI

Texto de Mark Weisbrot, na Folha de São Paulo, de 6 de agosto de 2010.


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Ambiguidades preocupantes permanecem no Iraque

Ambiguidades preocupantes permanecem no Iraque


Anne Nivat



Nos últimos sete anos como jornalista, fui frequentemente ao Iraque. Sempre ando com proteção e fico com famílias em suas casas, tentando me misturar o máximo possível.


A cada visita, encontro um país diferente. Após a carnificina de 2006 e 2007, o Iraque ficou paralisado de medo. Agora, apesar de continuar havendo uma violência esporádica, a segurança em geral melhorou a ponto de o presidente Obama declarar formalmente o fim do papel de combate dos EUA, e as próprias autoridades iraquianas assumirem a responsabilidade por manter a ordem.


Hoje, as pessoas não usam mais capacetes e máscaras de gás quando fazem compras nos mercados de Bagdá. Em todos os bairros, mesmo os mais perigosos, as crianças saem à tardinha para brincar, e os idosos sentam-se nas calçadas em cadeiras de plástico, como costumavam fazer antes da guerra.


O transporte público, apesar de nem sempre confiável, está sendo reativado. As estudantes não precisam mais ir para a escola ou universidade em vans especiais com cortinas nas janelas.


Mas o ambiente que encontrei em minha mais recente viagem em maio foi cheio de paradoxos. Hoje, o Iraque é um país de paz triste e ambiguidades preocupantes.


Muitas pessoas com quem conversei admitiram que a liberdade da opressão assassina do regime de Saddam foi “produzida nos EUA”. Mas há também um amplo ressentimento com a morte e destruição causados pela guerra norte-americana. Muitos expressaram um cansaço diante da ocupação de sete anos – junto com uma apreensão diante da partida dos americanos.


Poucas pessoas expressaram fé na democracia, seus líderes ou em sua própria capacidade de construir um futuro livre e próspero. Pior, o cenário parece aleijado por uma apatia de anestesiar a mente. Vi o mesmo desânimo paralisante e disseminado na Tchetchênia, no Afeganistão e em outras guerras que cobri como repórter free-lance, na maior parte para a mídia francesa.


Espera-se que os piores horrores que os iraquianos sofreram tenham ficado para trás –mas como podem continuar com suas vidas quando chegaram à conclusão que as batalhas que viveram de nada serviram?


O fato é que resta um enorme vão entre o que o Ocidente quer para o Iraque e o que muitos iraquianos compreendem desses objetivos ocidentais.


Muitas pessoas com quem conversei nunca levaram a sério o desejo americano de estabelecer uma democracia, em grande parte porque simplesmente não tinham familiaridade com o conceito. Para muitos, a palavra democracia se tornou sinônimo de incompetência e corrupção. Eles não têm a menor ideia do que a guerra custou ao Ocidente em termos de dinheiro, vidas e angústia política. Além disso, muitos não dão a mínima.


Em Kirkuk, cidade rica em petróleo onde árabes, curdos e turcos estão lutando pelo poder, visitei um casal turco que conheço há sete anos. Adeeb, engenheiro de petróleo de 55 anos falou diretamente: “Os americanos introduziram distinções em nosso povo que não havia antes. Instituíram quotas de acordo com nossa seita religiosa. Como resultado, a pouca disciplina que tínhamos foi substituída por uma espécie de caos baseado em valores supostamente ‘democráticos’. Se isso que é democracia, então ninguém quer.”


Adeeb parecia ter esquecido que, no regime anterior, suas opções eram muito limitadas por causa de sua etnia. Saddam Hussein nunca hesitou em agir contra qualquer seita ou grupo étnico que julgasse ser uma ameaça e periodicamente fazia operações violentas de opressão. Em 1988, ele usou armas químicas contra os curdos na cidade de Halabja, em um ataque que matou milhares de pessoas. Após a primeira guerra do Golfo, ele massacrou os xiitas marsh, destruindo sua sociedade e sua forma de vida.


Ainda assim, o desapontamento no Iraque pós-Saddam é amplo, independentemente da geração ou status social. Algumas pessoas não apenas expressam abertamente a nostalgia pela ordem da era Saddam, mas fazem dos EUA um alvo fácil de todas as queixas. Sob Saddam, as ruas eram limpas, lembra-se Adeeb. Hoje, carneiros se alimentam do lixo empilhado.


Na cidade de Najaf, Mohammed, comerciante de 35 anos, lamentou que os filhos tivessem que frequentar classes em turnos porque o mesmo prédio está sendo usado para abrigar três escolas diferentes. Em Fallujah, capital da rebelião sunita em 2004, Muamer, professor de 25 anos que lutou contra os americanos, reclamou que sua seita –que estava no topo na era de Saddam - foi “esquecida”.


A mulher de Adeeb, Nidret, ensina inglês em uma escola de ensino fundamental de Kirkuk. Com o passar dos anos, ela se tornou cada vez mais tradicional e religiosa e passou a adotar uma abordagem menos cosmopolita aos valores ocidentais.


“Somos um país ocupado, e os invasores não nos respeitam”, disse ela. “Você pode imaginar, meus alunos nem querem mais aprender inglês. Eles dizem que é a língua de nosso inimigo, das pessoas que estão nos matando sem motivo, então não querem saber.”


A palavra “respeito” é repetida inúmeras vezes, como um mantra. Adnan, 50, que foi oficial militar e membro do Baath, partido governante de Saddam, desapareceu após a queda do ditador e depois ressurgiu como gerente de uma ONG que se dedica a fornecer água potável para sua cidade natal xiita no Sul, também sente que não é respeitado pelos “invasores”.


Ele diz que a vida era melhor com Saddam, em parte porque não viu nenhuma melhora concreta para ele ou para sua família. Ele votou em Ayad Allawi, xiita secular vencedor das eleições há cinco meses, que ainda não sabe se vai se tornar primeiro-ministro. “Precisamos de um homem de ferro”, diz Adnan, “alguém que compreenda que o Iraque só vai se desenvolver novamente se respeitarmos a disciplina, o controle e o Estado de direito”.


Muitos iraquianos estão convencidos de que precisam desenvolver seu país por si mesmos mas não assumem qualquer responsabilidade pelos problemas de hoje. Sua passividade gerou cinismo, claramente ilustrado pela incapacidade dos legisladores recém eleitos do país de alcançar um acordo político. São essas as pessoas que devem encontrar as soluções, não os americanos.


Um argumento usado para justificar a decisão do presidente George W. Bush de entrar em guerra foi que a derrubada de Saddam pavimentaria o caminho para a volta dos exilados iraquianos, muitos deles profissionais altamente qualificados que forneceriam uma base para a renovação e organização da sociedade. Porém, mesmo esses iraquianos bem formados que voltaram para ajudar o país agora são vistos pelos locais com forte ressentimento, como se tivessem “voltado nas malas dos americanos”.


“Onde eles estavam quando agente estava sofrendo? Como podem querer nos guiar agora, quando não compartilharam nosso sofrimento por tantos anos?”, pergunta Fawsia, 68, professor aposentado de inglês e francês que mora em Bagdá.


Essa atitude também é comum no Afeganistão e na Tchetchênia. Quem colaborou com os “invasores” não pode ajudar a melhorar a situação porque são tratados como traidores.


Duvido que esse ressentimento será superado no Iraque, a não ser que haja uma reconciliação profunda – algo que ainda não foi alcançado em nenhum desses países. O desespero e a desorganização são os verdadeiros inimigos, e eles não podem ser derrotados por meios militares. Talvez no Ocidente devamos compreender que é preciso mais tempo para apagar o que a guerra provoca –destruição e desespero - do que para impor o que supostamente deveria trazer: um sistema democrático.


Tradução: Deborah Weinberg



Texto do International Herald Tribune, reproduzida no UOL.


http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/herald/2010/08/04/ambiguidades-preocupantes-permanecem-no-iraque.jhtm



Comentário: o texto de Anne Nivat foi realmente produzido para leitores dos Estados Unidos. Em momento nenhum ela parece demonstrar capacidade de empatia, isto é, se colocar no lugar dos cidadãos iraquianos e tentar pensar como eles.


Logo no início do texto ela fala em “ um amplo ressentimento com a morte e destruição causados pela guerra norte-americana”. Como ela escreve para leitores dos Estados Unidos, ela não descreve o que aconteceu como “invasão norte-americana”. Guerra deve soar melhor a ouvidos norte-americanos. Além disso, cada vez que usa a palavra invasores, a palavra está entre aspas, o que demonstra que, ou ela não acredita que houve uma invasão, ou ela não quer se comprometer com uma palavra que talvez ela ache forte.


Em nenhum momento ela se refere às mentiras das “armas de destruição de massa” utilizadas como justificativa para invasão. O discurso da senhora Nivat é o de que o intento de derrubar Saddam Hussein fosse o motivo da invasão desde o início (como se não continuassem existindo ditadores mundo afora).


De alguma maneira, me parece que a repórter quer justificar a presença dos Estados Unidos no Iraque, e demonstrar que o Iraque é melhor agora do que no tempo de Saddam. Pode até ser que seja, mas parece que muitos cidadãos iraquianos não concordam. E eles deveriam ter direito à opinião deles.


Além disso talvez fosse bom lembrar que enquanto foi interessante para os governantes dos Estados Unidos, eles ajudaram Saddam Hussein, inclusive lhe fornecendo armamentos, que, como a repórter fala, ele usou contra parte de seu próprio povo. Depois, causaram empobrecimento do povo iraquiano, por conta do embargo que impuseram ao país em retaliação pelo Iraque ter invadido o Kuwait.


As ambiguidades não estão apenas na situação do Iraque, mas também na forma da repórter descrever os acontecimentos.



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A Agonia da Classe Média Americana

A Agonia da Classe Média Americana


Edward Luce, Financial Times, de Washington
04/08/2010


Tecnicamente falando, Mark Freeman deveria considerar-se entre as pessoas mais sortudas do planeta. Aos 52 anos, ele vive com sua família em casa própria, numa rua arborizada e no coração do país mais rico do mundo. Quando está com fome, ele come. Quando esquenta, ele liga o ar-condicionado. Quando quer buscar alguma coisa, ele navega na internet.

No entanto, de alguma forma, as coisas não vão mais tão bem. No ano passado, o banco tentou retomar a casa dos Freeman, apesar de eles estarem com seu pagamento atrasado apenas três meses. Seu filho, Andy, foi recentemente excluído da cobertura do seguro saúde de sua mãe e só penosamente readmitido mediante um grande pagamento. E, assim como as casas tapadas com tábuas - que sinalizam a epidemia de retomadas judiciais de imóveis nos EUA -, o tráfico de drogas e os tiroteios, que antes eram distantes de seu bairro, estão chegando cada vez mais perto, quarteirão por quarteirão.

O que é mais perturbador, no caso dos Freeman, é como eles são típicos. Nem Mark nem Connie - sua incansável mulher, tão gordinha quanto ele é magro - têm doenças crônicas. Ambos trabalham no Hospital Metodista local - ele trabalha no almoxarifado, e ela é técnica em suprimentos de anestesia. A US$ 70 mil por ano, a renda bruta do casal é mais de um terço superior à mediana do núcleo familiar americano.

No passado, isso era o "sonho americano". Nos dias atuais, poderia ser chamado de "devaneio incerto americano". Na prática, Mark gasta muito dinheiro todo mês com o aluguel de uma máquina para tratar sua apneia, que lhe dá insônia. "Se perdemos nossos empregos, depois de umas três semanas teremos zerado nossa poupança", diz ele, sentado em seu quintal, de olho na rua e uma garrafa de cerveja na mão. "Nós trabalhamos dia e noite para tentar poupar para nossas aposentadorias. Mas nunca estamos a mais de um ou dois cheques de distância do olho da rua."

Quando se fala de classe média americana, a maioria dos estrangeiros imagina algo mais atemporal e confortável, como nas séries de TV, na qual os adolescentes vão à escola dirigindo carros esportivos e as meninas são sempre animadoras de torcidas. Isso pode representar como vivem uns 10% do topo da classe média. O resto vive como os Freeman. Ou pior.

Uma visita completa à casa de 65 m2, pertencente a Mark, no noroeste de Mineápolis, leva apenas uns 30 segundos. A casa foi comprada mediante um financiamento de US$ 50 mil em 1989. Agora, ela vale US$ 73 mil. "Houve um momento em que ela valia US$ 105 mil dólares - e pensamos que tínhamos entrado no paraíso", diz Mark. "Os bancos continuaram telefonando - às vezes quatro ou cinco vezes numa mesma noite -, oferecendo linhas de crédito e empréstimos. Insistiam como traficantes de drogas."

O lento estrangulamento econômico dos Freeman, e de milhões de outros americanos de classe média, começou muito antes da Grande Recessão, que apenas agravou a "recessão pessoal" que os americanos comuns vinham sofrendo havia anos. Denominada pelos economistas como "estagnação do salário mediano", a renda anual dos 90% de famílias menos bem de vida nos EUA permaneceu essencialmente inalterada desde 1973 - tendo crescido apenas 10% em termos reais nos últimos 37 anos. Isso significa que a maioria das famílias americanas está no sufoco há mais de uma geração.

No mesmo período, a renda do 1% de famílias mais ricas triplicou. Em 1973, executivos-chefes de grandes companhias recebiam, em média, remuneração igual a 26 vezes a renda mediana. Hoje, é mais de 300 vezes superior.

A tendência só tem se intensificado. A maioria dos economistas vê a grande estagnação como um problema estrutural - ou seja, imune ao ciclo econômico. Na última expansão, que começou em janeiro de 2002 e terminou em dezembro de 2007, a renda familiar mediana americana ficou US$ 2 mil menor - a primeira vez em que a maioria dos americanos esteve pior no fim de um ciclo do que no início. O mais grave é que a longa era de renda estagnada tem sido acompanhada por algo profundamente antiamericano - um declínio na mobilidade da renda.

Alexis de Tocqueville, grande cronista francês dos primórdios da nação americana, já foi erroneamente citado como tendo dito: "Os EUA são o melhor país do mundo para os pobres". Isso deixou de ser verdade. Hoje, nos EUA, é menor a chance de passar de um estrato de renda mais baixa para outro mais elevado do que em qualquer outra economia desenvolvida. Para inverter as clássicas histórias de Horatio Alger, nos EUA de hoje, se você nasceu esfarrapado, tem maior probabilidade permanecer nesse estado do que em praticamente qualquer país da velha Europa.

Combinadas a essas duas tendências profundamente enraizadas, há uma terceira - forte crescimento da desigualdade. O resultado é a crise em fogo lento do capitalismo americano. Uma coisa é sofrer as agruras de uma estagnação da renda. Outra é perceber que você tem uma probabilidade decrescente de escapar dessa estagnação - especialmente quando poucos afortunados que vivem nos proverbiais "condomínios fechados" parecem mais mimados cada vez que você os vislumbra. "Quem matou o sonho americano?", dizem os cartazes em passeatas de esquerda. "Resgatemos a América", gritam os manifestantes de direita do movimento Tea Party.

As estatísticas capturam somente uma fatia do problema. Mas é Larry Katz, renomado economista de Harvard, quem oferece a analogia mais atraente. "Imagine a economia americana como um grande prédio de apartamentos", diz o professor. "Um século atrás - até mesmo 30 anos atrás -, era um objeto de inveja. Mas, na última geração, sua feição mudou. Os apartamentos de cobertura estão cada vez maiores. Os apartamentos nos andares intermediários estão cada vez mais espremidos e o térreo foi inundado. Para completar, o elevador não está funcionando. Esse elevador quebrado é o que mais deprime as pessoas."

Não surpreende que uma maioria crescente de americanos tem dito, em pesquisas de opinião, acreditar que seus filhos terão um padrão de vida pior do que o deles próprios. Durante as três décadas do pós-guerra, que muitos hoje relembram como a era de ouro da classe média americana, a maré alta erguia a maioria dos barcos, nas palavras de John F. Kennedy. A renda cresceu em termos reais quase 2% ao ano, quase dobrando a cada geração.

E, embora os anos dourados tenham sido puxados pelo crescimento do ensino superior de massa, não era preciso ter diploma de ensino médio para dar conta das despesas. Como seu marido, Connie Freeman foi criada num lar de "classe trabalhadora" no chamado Cinturão do Ferro, no norte de Minnesota, perto da fronteira canadense. Seu pai, que deixou a escola aos 14 anos, após a Grande Depressão dos anos 1930, trabalhou nas minas de ferro a sua vida inteira. No fim de sua vida profissional, ele ganhava US$ 15 por hora - mais de US$ 40 em valores atuais.

Trinta anos depois, Connie, que é muito mais qualificada do que seu pai, após ter completado o ensino médio e concluído um ano adicional de estudos, ganha apenas US$ 17 por hora.

O pai de Connie, com sua escolaridade mínima, ganhava o suficiente para permitir que sua esposa continuasse a ser dona de casa em tempo integral e ainda bancou a educação de dois filhos até a faculdade. Connie e Mark, por seu turno, têm dificuldades para pagar o fluxo de contas num lar de dupla renda familiar. O Estado de Minnesota custeia um curso de teatro para Andy, o filho de 20 anos do casal que sofre de autismo agudo.

A rigor, Connie vive num lar de quatro rendas. "Quando Andy tinha dois anos, disseram-me para comprar um aparelho de karaokê, porque as crianças autistas às vezes reagem bem a isso", disse Mark, apontando para o que só pode ser descrito como um antigo aparelho pós-moderno. "Foi assim que iniciei meus negócios com karaokê. Eu ganho cerca de US$ 100 toda quarta-feira, promovendo karaokês pagos em casa. E, aos sábados sou gerente na loja de bebidas do bairro. Precisamos de todos os quatro empregos para manter a cabeça fora d ' água."

Do ponto de vista da maioria dos economistas, a história até o momento é inquestionável. A maioria concorda sobre o diagnóstico, mas diverge sobre as causas. Muitos na esquerda atribuem a culpa à Grande Estagnação da globalização. A ascensão de China, Índia, Brasil e outros países solapou os salários no Ocidente e eliminou postos de trabalho de americanos sem qualificação, semiqualificados e até mesmo qualificados. A indústria agora representa somente 12% dos postos de trabalho nos EUA.

Pense no trabalhador típico da indústria automobilística em Detroit, 30 anos atrás, que tinha um estilo de vida de classe média seguro, bom plano de saúde e perspectiva de gorda aposentadoria. Hoje, ele vive na China.

Outro grupo de economistas define como causa principal o surgimento explosivo de novas tecnologias, que facilitaram a automação computadorizada de rotinas repetitivas e de trabalhos mais simples. Pense na auxiliar de escritório, que anotava ditados e fazia o café. Ela agora é um BlackBerry que passa metade de sua vida no Starbucks. Ou o pessoal de retaguarda de escritórios que, como aqueles sapateiros em conto de fadas, agora "costura a contabilidade" das empresas americanas em Bangalore, na Índia, enquanto as pessoas dormem nos EUA.

Há também aqueles, como Paul Krugman, colunista do "The New York Times" e ganhador do Prêmio Nobel de Economia, que atribuem a culpa ao mundo político, especialmente à reação conservadora iniciada quando Ronald Reagan chegou ao poder, em 1980, o que acelerou o declínio dos sindicatos e reverteu os traços mais progressistas do sistema fiscal americano.

Menos de um décimo dos trabalhadores do setor privado americano pertence a um sindicato. As pessoas na Europa e no Canadá estão sujeitas às mesmas forças globalizantes e tecnológicas, mas fazem parte em maior número de sindicatos, e seu atendimento médico é coberto por verbas públicas. Mais de metade das falências de famílias nos EUA são causadas por doença ou acidente graves.

Essas são as teorias concorrentes (porém não contraditórias) sobre a causa da deterioração. A "experiência vivida", como diriam os sociólogos, é outra coisa.

De forma muito semelhante aos Freeman, os Miller poderiam estar vivendo em qualquer lugar dos EUA. Somente o calor abafado denuncia que estão na Virgínia, no sul do país. Falls Church, na Virgínia, é na verdade um subúrbio da capital do país, Washington. A implacável expansão do governo fomentou um setor privado "verde", do outro lado do rio Potomac, dedicado principalmente a atividades relacionadas com segurança, defesa, serviços governamentais e lobbying. O lugar de honra na casa de Shareen Miller abriga uma fotografia granulada de sua conversa com Barack Obama numa cerimônia na Casa Branca, no ano passado, para a assinatura de uma nova lei que impõe igualdade de remuneração para as mulheres.

Como organizadora, na Virgínia, de 8 mil assistentes de cuidados pessoais - profissionais que cuidam de idosos e de deficientes nas próprias casas dessas pessoas - Shareen, de 42 anos, foi convidada, com outras dezenas, a participar da cerimônia. Mas isso foi tudo o que ela ganhou de sua fugaz proximidade com o presidente. Desde então, sua remuneração e suas horas de trabalho não pararam de cair. No ano passado, ela ganhava US$ 1,5 mil por mês. Agora, recebe US$ 900. Assim como outros governadores de Estado, Bob McDonnell, governador da Virgínia, vem cortando impiedosamente o gasto público desde que a recessão começou.

Embora com área de aproximadamente o dobro do lar dos Freeman, na casa de Shareen a sensação é de aperto ainda maior. Junto com dois filhos, uma nora, uma neta e seu marido, Shareen tem um verdadeiro zoológico de animais de estimação. Sua paciente Marissa, 26, com paralisia cerebral, muitas vezes pernoita na casa deles.

Shareen exibe a vigorosa boa vontade que encontramos em muitos americanos. Apesar de seu pouco tempo livre, ela pratica uma atividade voluntária, aos sábados, dedicada a animais de estimação perdidos. Para ir a qualquer lugar, os Freeman precisam de um carro. A uns 250 metros de sua casa, fica o trevo local, onde estão as emblemáticas Taco Bells, 7-Eleven e lojas de um dólar que pontilham os EUA. É a geografia física que diferencia os lugares; a geografia humana, simplesmente se repete.

Dona de um sorriso permanente, Shareen traça sua complexa árvore genealógica: um pai aposentado, que trabalhou numa penitenciária do Estado de Oregon, e vários meio-irmãos e meio-irmãs, nenhum dos quais parece estar chegando com dinheiro ao fim do mês. "Adivinhe de qual estou mais próxima", pergunta ela com um sorriso travesso. "De nenhum."

De novo, tecnicamente falando, Shareen vive em relativo conforto. Como seu marido trabalha para uma companhia de segurança contra incêndios e ganha US$ 70 mil por ano, os Miller estão, sem dúvida, sobrevivendo. Mas eles temem o que poderá acontecer se um deles tiver um problema de saúde. Alguns anos atrás, Shareen teve um tumor removido de seu diafragma, que gerou US$ 17 mil em dívidas. E o marido sofre de uma hérnia de disco. Surpreendentemente, tendo em vista que sua renda bruta conjunta é o dobro da mediana nos EUA, Shareen teve de adiar uma operação dentária por seis meses, a fim de saldar o empréstimo para a compra de seu carro. E não tem tempo para estudar e se requalificar. "Uma coisa comum nas pessoas que cuidam de gente com deficiências é que elas nunca têm tempo", diz ela.

Tanto quanto discordam sobre o que causou a grande estagnação, os economistas também divergem sobre as soluções. A maioria concorda que níveis educacionais mais altos melhoram o rendimento potencial das pessoas, mesmo que isso não resolva o problema subjacente. Outros salientam que nem todo mundo pode ser um corretor de ações, empresário de software ou professor de Harvard.

Muitos dos empregos do futuro serão funções "interpessoais" que não podem ser facilmente substituídos por computadores (ou imigrantes): zeladores, cabeleireiros e manicures, para os quais uma faculdade é algo frequentemente supérfluo. Além disso, grande parte dos americanos atingidos pela estagnação nos últimos dez anos tem curso universitário. Mesmo eles não estão a salvo. Porém, mais educação, no mínimo, melhorará as chances das pessoas. Como pagar isso são outros quinhentos.

Apesar de a renda nos EUA estar estagnada, o custo das escolas não cessa de crescer. Desde 1990, quase dobrou a proporção de americanos que estão pagando mais de US$ 20 mil em empréstimos educacionais uma década após terem se formado. Lawrence Summers, principal assessor econômico de Obama, que há muito tempo preocupa-se com o crescimento do que ele denomina "nervosa classe média" americana, salienta que, entre as principais economias, os EUA têm o maior percentual de diplomados no mercado de trabalho. Mas, na faixa etária de 25 a 34 anos, os EUA não estão nem nos "dez mais".

Mais e mais americanos jovens são dissuadidos pela perspectiva de assumir uma dívida de longo prazo. "Não é só o medo do endividamento - são os quatro anos de lucros cessantes", diz Ruth Miller.

O impacto sobre as pessoas, como os Miller e os Freeman, tem sido agudo. Primeiro, houve estagnação. Depois veio a recessão.

Qual é, então, o futuro do sonho americano? Michael Spence, economista ganhador do Prêmio Nobel, a quem o Banco Mundial encarregou de realizar um estudo sobre o futuro do crescimento mundial, admite um mau presságio. Como um número crescente de economistas, Spence disse ver a grande estagnação como uma profunda crise de identidade.

Durante anos, o problema foi amenizado e parcialmente oculto pela disponibilidade de crédito barato. Americanos de classe média foram ativamente incentivados a se endividar continuamente, oferecendo suas casas em garantia, ou a canibalizar seus fundos de aposentadoria, confiando em que os preços dos imóveis e as bolsas de valores desafiariam permanentemente a gravidade (uma atitude estimulada, entre outros, pela metade ganhadores do Nobel de Economia em todo o mundo). Essa reserva de valor, agora, não existe mais. O dinheiro fácil transformou-se em pesado endividamento. "Baby boomers" - os nascidos na explosão da natalidade após a Segunda Guerra Mundial - adiaram sua aposentadoria. Filhos com curso superior estão voltando para a casa dos pais.

O barômetro é econômico. Mas a raiva é humana e cada vez mais política. "Tenho esse desgastante sentimento sobre o futuro dos EUA", diz Spence. "Quando as pessoas perdem o senso de otimismo, as coisas tendem a ficar mais voláteis. O futuro que mais temo para os EUA é latino-americano: uma sociedade muito desigual, propensa a fortes oscilações entre populismo e ortodoxia. Veja o Tea Party [movimento conservador]. As pessoas acham que surgiu do nada. Embora eu não concorde com suas soluções, a maioria dos membros do Tea Party são americanos de classe média que vêm sofrendo em silêncio há anos."

Spence admite estar pensando em voz alta e "extrapolando em muito os dados". E ele admite que os EUA provavelmente ainda conservam sua força mais vibrante em sua capacidade de liderança mundial em inovação tecnológica. A maioria dos economistas não é tão pessimista como Spence. Mas é entre os americanos comuns que seu pessimismo repercute mais intensamente. "Ser pessimista sobre o futuro é algo tão novo para os americanos", diz Spence. "Mas a maioria das pessoas compreende sua própria situação melhor do que qualquer economista." (Tradução de Sergio Blum)

O texto é do Valor Econômico, e foi visto no blog do Luís Nassif.


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