quarta-feira, dezembro 22, 2010

Os valores da "era Reagan"

Os valores da "era Reagan" 

Deve ser a regra com todos os presidentes dos Estados Unidos. Mas fiquei espantado com o tempo que levou entre a morte de Ronald Reagan e o seu sepultamento. Os rituais fúnebres tomaram quase uma semana inteira, e o corpo do presidente fez uma peregrinação através de vastas extensões do território norte-americano, numa espécie de última campanha eleitoral -em busca, como se diz, do sufrágio de sua alma.

No fim de um longo parágrafo em que recenseava os fatos da semana, uma publicação anticonservadora americana mal conteve sua satisfação sinistra ao noticiar numa única linha: "O presidente Reagan finalmente morreu". Será?

Os valores da "era Reagan" estão longe de ter perdido o vigor. No princípio, aquilo parecia apenas um delírio reacionário, voltado para recuperar a auto-estima americana, em baixa desde a Guerra do Vietnã e de Watergate. Baseava-se em propostas de duvidosa consistência: o corte de impostos e a criação de um escudo espacial antimísseis, a chamada "Guerra nas Estrelas".

Tudo vinha embrulhado numa máscara sorridente, pronta a expressar simpatias pelo fundamentalismo bíblico, misturando ficção científica dos anos 50 com fitas de caubói e técnicas de relações públicas das mais antiquadas. Lembro-me de como parecia fora de moda, nas primeiras fotos de Reagan presidente, o lencinho branco dobrado que ele usava no bolso do paletó. A imagem que ele projetava, naquele começo da década de 80, era de um passadismo inviável, artificial e mortífero.

O próprio rosto de Ronald Reagan tinha algo de ressurrecto, de empalhado; ator de relativo sucesso em outras décadas, o presidente recém-eleito parecia ter-se levantado subitamente dos abismos da obscuridade, já bastante envelhecido, mas tentando manter o charme dos bons tempos. Um cronista americano referia-se, durante a campanha presidencial, a seus cabelos "precocemente alaranjados"; é como se o uso da tintura capilar não levasse em conta, no ator sexagenário, que os filmes em preto-e-branco eram coisa do passado.

Bem ao contrário, quase tudo em Reagan apontava para o futuro, e seus cabelos tingidos simbolizavam uma intenção de permanência que os tempos atuais pouco fizeram para desmentir. Os yuppies da década de 80 -aquele Mickey Rourke de "Oito Semanas e Meia de Amor", vendo as cotações de Wall Street piscando em fósforo verde na tela do micro, nos lábios um sorriso bailarino, na janela uma Kim Basinger pronta para uma fantasia light- não são diferentes dos de agora.

Nada mais reaganiano (mas durante o governo Reagan isso ainda era um sonho distante, eu acho) do que a imagem do Mc Donald's em Pequim, ou de butiques Prada e Armani na Praça Vermelha. Um mundo de alta tecnologia e consumo de luxo, zunindo de competitividade, entretenimento, dureza e rapidez, foi projetado como o cenário de um filme de George Lucas; uma minoria afortunada passou a viver dentro dele, estivesse na Califórnia, na Espanha, na Índia ou no Brasil.

Esse mundo ilusório, criado durante os anos Reagan, persiste. Persiste há tanto tempo que já se transformou em realidade. Desconfio até que toda a nossa dependência do virtual, dos jogos de computador, da holografia, do encapsulamento em shoppings e condomínios é conseqüência daquele fundamentalismo reaganiano: a confiança absoluta de que se pudesse moldar a realidade a partir de uma ideologia econômica (a famosa "reaganomics") bastante frágil e simplista.

Mas me vejo falando do reaganismo em termos que seriam igualmente apropriados ao desejo marxista de criar uma sociedade a partir de uns poucos princípios incontestáveis. É talvez por isso mesmo que o pensamento de esquerda se viu hipnotizado e rendido diante do conservadorismo dos anos 80: a ideologia yuppie tinha justamente um apelo intelectual, uma aerodinâmica afetiva, um charme de paradoxo e novidade com que os velhos manuais do materialismo dialético não mais conseguiam competir.

Claro, podemos dizer que o "rumo da história" (outra frase de sabor marxista) era aquele mesmo e que tudo ia no sentido prenunciado por Reagan. Algumas coisas, contudo, parecem não ter dado certo. Teve pouco futuro, por exemplo, a tentativa de reconstruir os valores religiosos e comportamentais da família wasp americana, com ensino bíblico, puritanismo sexual e boas doses de aversão a quem não fosse branco.

Mesmo a Aids foi incapaz de barrar o processo constante de libertação sexual que vinha dos anos 60; e, por mais que Reagan fosse conservador nesse campo, a geração yuppie não transigiria com essa conquista.
Também já não me parece tão certo o poder do "virtual" sobre o "real". Talvez comece a fazer parte do passado a famosa crença, proveniente dos anos 80, de que a realidade foi substituída por simulacros manipuláveis via computador; entra igualmente em descrédito a sensação correlata de que os inimigos do sistema seriam vencidos de forma "limpa", com a mesma impalpável facilidade com que o mundo comunista desapareceu.

Toquei outro dia nesse assunto; temo ter incorrido no velho clichê de comparar as guerras atuais a videogames. O atual conflito no Iraque, entretanto, é de uma materialidade atroz; corpos despedaçados, corpos nus, corpos torturados se amontoam, numa orgia macabra e real. Tema para outro artigo, quem sabe; e já é tempo de deixar Reagan descansando em paz.




Texto resgatado de uma coluna de Marcelo Coelho em 16 de junho de 2004.

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