A Grande Ausente
A Grande Ausente
Final de semestre da disciplina de História do Brasil. Passamos o semestre estudando o Brasil quase contemporâneo, revendo a história política do país a partir da reinstitucionalização acontecida em 1946, com a redemocratização, a deposição de Getúlio Vargas, chegando até os estertores da ditadura militar que dirigiu o país entre 1964 e 1985.
Nesta última aula a professora decidiu que a turma deveria promover um seminário, tentando resgatar junto a seus pais ou avós o que eles lembravam que havia acontecido no Brasil, quando dos governos militares. Para completar, foi solicitado aos alunos que trouxessem objetos representativos deste mesmo período. A memorabilia incluiu revistas, livros, discos, moedas, fotos, uma série de pequenas coisas que resgatavam um pouco dos anos 1960, 1970 e 1980.
Quando cada aluno e aluna teve oportunidade de expor o que tinha conseguido resgatar com seus parentes, apenas dois expuseram histórias de como a ditadura afetou efetivamente suas famílias. Talvez fosse melhor dizer que uma aluna teve condições de dizer que a mãe dela era uma pessoa que vivia com medo durante a ditadura, que a vida era afetada pelas ameaça sempre presente da prisão arbitrária, quando não do seqüestro clandestino e desaparecimento.
O outro aluno tinha o pai por militar, mas de nacionalidade uruguaia. E o pai se recusava a comentar sobre o que havia acontecido, ou o que ele fizera durante um período em que, o Brasil, e também o Uruguai (e também o Chile, e também a Argentina) foram dirigidos por regimes de exceção.
A regra entre os alunos era que o pai, ou a mãe, ou o avô, se sentiam indiferentes ao regime. Cada um estava preocupado com a sobrevivência de cada dia. A política era algo que não interessava, coisa para a qual estas pessoas não tinham tempo.
Por ser um aluno um pouco mais velho que os demais (digamos que a minha idade seja aproximadamente o dobro da faixa etária geral da turma), eu pude lembrar de minha infância nos anos 1970, dos álbuns de figurinhas, e da inflação. Relembrei que a minha mãe afirmava que votava normalmente na ARENA (Aliança Renovadora Nacional, o partido de suporte ao governo durante o regime militar), pois, segundo ela, a ARENA dera “tranqüilidade ao país”. Além disso, o regime militar havia dado aos trabalhadores férias proporcionais e o Fundo de Garantia (o FGTS). É estranho pensar isso. Antes destas “generosidades” da parte do governo militar, os trabalhadores recebiam estabilidade no emprego quando completassem dez anos de trabalho, e tinham direito a férias após um ano de trabalho. Mas pessoas com empregos precários, como era o caso do meu pai, um pedreiro, normalmente eram demitidas antes que completassem um ano de serviço para que o empregador não precisasse pagar férias ao trabalhador. Dez anos no mesmo emprego para conseguir estabilidade então, era um sonho distante, talvez inalcançável.
Eu nunca soube as preferências eleitorais de meu pai. Sei que em geral ele não gostava de soldados e de policiais, embora em particular pudesse se dar muito bem com algum, quando calhasse de tê-lo por vizinho. Isso eu pude testemunhar.
Quando pude conversar com minha irmã sobre aqueles dias, fiquei sabendo ela sempre votara no MDB (Movimento Democrático Brasileiro, a oposição consentida no regime). Nós nunca falamos muito sobre isso, mas o regime cassou-lhe o direito de eleger o presidente da república no auge da juventude dela. Ela também comentou comigo que ela havia tido a oportunidade de trabalhar com um senhor aposentado da Secretaria de Segurança do RS, que ali trabalhara entre o final dos anos 1960 e início dos 1970, e este senhor informara a ela que era comum os agentes do DOPS fotografarem os manifestantes de oposição daquela época para posterior abertura de processos e possível prisão por “dano à ordem pública”. Era medida preventiva ficar afastado de passeatas e protestos, para evitar ser confundido com “agitadores”.
Algum colega trouxe as suas próprias lembranças. Dele, me chamou a atenção de sua presença no Comício das Diretas, em Porto Alegre. Foi em 1984. E eu estive neste comício. Bem como passei, ao final de uma aula noturna, pela vigília que se fazia na Esquina Democrática, quando da votação da então chamada “Emenda Dante de Oliveira”, que pretendia emendar a constituição outorgada pelos militares, e restabelecer as eleições diretas para presidente da república. A Emenda ganhou maioria de votos, mas não a quantidade de votos necessária para emendar a constituição. Não custa lembrar que na liderança do governo naquela época, trabalhando para que a emenda não fosse aprovada estava o deputado gaúcho Nelson Marchezan.
Enfim, os mais jovens nasceram após o fim do regime militar, ou pouco antes do seu fim. Se não eram bebês na segunda metade da década de 1980, eram crianças na mais tenra idade. Os mais maduros, como é o meu caso, só tomaram consciência da ditadura, quando esta já estava se desmanchando. E vejo, após este semestre de estudos, o quão pouco eu sabia sobre este passado.
Fiquei mais ou menos como Renato Russo, que em determinada canção da Legião Urbana, dizia que “tenho Hanna Barbera, (...) tenho Guanabara, e Modelos Revell”. Certamente os desenhos da dupla William Hanna e Joseph Barbera acompanharam a minha infância pela TV. Eu não cheguei a entender a questão da Guanabara, a não ser depois de adulto, e os Modelos Revell eram “kits” para modelismo, para montar miniaturas automóveis, aviões ou navios. Eu nunca tive um, mas me lembro vivamente das propagandas nos livros de histórias em quadrinhos falando dos produtos Revell. Acho que eu imaginava como seria bom ter um.
Marcadores: Brasil, ditadura, ditadura militar, Golpe de 1964, golpe de estado
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