quinta-feira, abril 29, 2010

Piratas e Conquistadores

Piratas e conquistadores


ALDO PEREIRA

NO SÉCULO 16 , países europeus que exploravam riquezas da América reprimiam com rigor a ação de piratas baseados em ilhas e costas continentais do Caribe: execução sumária ou condenação à forca.
À primeira vista, história de mocinhos e bandidos -ou seria de bandidos e bandidos?
Logo após ter descoberto o que supunha ser a Índia, Cristóvão Colombo (1451-1506) estabeleceu modelo de conduta para "los conquistadores": tortura sistemática de nativos para obter deles "segredos" de minas e garimpos de ouro, bem como para escravizá-los na extração e refino do minério. A recalcitrantes, espada civilizadora finamente forjada em Toledo.
De sua parte, a Marinha britânica, ocupada então com tráfico de escravos africanos, comissionou "privateers" (navios corsários) para pirataria seletiva contra galeões espanhóis carregados desse ouro.
Frances Drake (1540-1596) e Henry Morgan (1635-1688), célebres corsários, receberiam pela patriótica missão o título honorífico de "sir".
A distinção entre piratas, conquistadores e corsários continua ambígua. Sem explicitar nomes, o principal executivo da UMG (Universal Music Group) vocifera contra engenhocas do tipo iPod: "Repositórios de música roubada!".
Também se têm visto e ouvido na mídia proclamações de que baixar, copiar ou comprar músicas e programas sem pagar royalties é "pirataria".
Com a forca fora de moda, detentores de "propriedade intelectual" reclamam ao menos cadeia para "piratas".
"Propriedade intelectual" é campo de disputa em que convergem três interesses legítimos e interdependentes, mas conflitantes: 1) o dos autores, sem os quais não teríamos inovação e avanço na cultura; 2) o de firmas como editoras, gravadoras e programadoras, que assumem riscos lotéricos de produção, distribuição e promoção (em média, dos mais de 40 livros que a Random House edita por semana, 35 dão prejuízo ou lucro zero); e 3) o direito público à liberdade de expressão, ao saber e ao cultivo do espírito pela arte.
Sem esse terceiro direito, a vida cultural estagnaria, porque se realimenta do que ela própria produz. Nenhuma criação é absolutamente original, mas produto da tradição cultural do meio em que o autor se forma.
Por isso, direito autoral deveria constituir não propriedade, mas apenas licença de usufruto econômico exclusivo durante certo prazo, como a concedida a patentes. Em criações de pessoa física, tal licença poderia ser vitalícia, embora não hereditária.
O que tem ocorrido, porém, é progressiva usurpação do direito público em favor da "propriedade intelectual", sobretudo corporativa. Isto é, acumulação de privilégios desfrutados por cartéis e outros grupos que em geral os têm obtido pelo suborno sistemático de legisladores e burocratas, prática mais elegantemente referida como lobby ("antessala").
No reinado de Pedro 1º, toda obra literária caía em domínio público dez anos após a publicação. O regime republicano dilatou o privilégio para 50 anos contados do 1º de janeiro subsequente à morte do autor (Lei Medeiros e Albuquerque, nº 496, de 1898). Esse prazo é hoje de 70 anos.
Todas as mudanças legais introduzidas desde 1898 têm ampliado o direito individual e corporativo de exploração econômica das obras à custa de progressiva restrição do domínio público, isto é, em prejuízo da dimensão social da cultura.
A involução legal brasileira reflete a globalização dos mercados da "propriedade intelectual".
Acordos e convenções que conferem direito proprietário de corporações a criações culturais têm sido extorquidos a governantes covardes e/ ou venais do mundo subdesenvolvido, estratégia que se completa pelo citado suborno legislativo. Colonialismo por outros meios.
O abuso é mais nítido na exploração autoral póstuma, onde o Congresso americano, creia, tem-se mostrado ainda mais venal que o brasileiro. Segundo Lawrence Lessig, professor de direito da Universidade Stanford, à medida que o camundongo Mickey envelhece e se arrisca a cair em domínio público, o lobby da Walt Disney obtém mais alguns anos de sobrevida para o respectivo "copyright".
Em 1998, o Congresso dos EUA estendeu a proteção póstuma a 95 anos: no caso de Mickey, até 2061. Lessig enumera 11 extensões semelhantes concedidas nos últimos 40 anos em favor da indústria de som e imagem.
Nesse drama, decerto lhe seria difícil escolher entre o papel de conquistador e o de pirata. Resigne-se, então, ao do submisso e espoliado nativo.


ALDO PEREIRA , 77, é ex-editorialista e colaborador especial da Folha .

Texto publicado na Folha de São Paulo, de 22 de abril de 2010.


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terça-feira, abril 27, 2010

José Simão vê as eleições 2010 (II)

“E a Dilma Rouchefe e o Serra Vampiro? Uma amiga minha criou um slogan pra 2010: "Assombração por assombração, vote em Zé do Caixão!". E ainda ganha uma Bolsa Manicure. Rarará!”

Trecho da coluna dele, na Folha de São Paulo, de 20 de abril de 2010.


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O preço da estabilização fiscal na Lituânia

Austeridade cobra preço alto na Lituânia


Economia deixa profundas cicatrizes sociais nos lituanos


Por LANDON THOMAS Jr.


VILNA, Lituânia - Se os líderes dos muitos países endividados do mundo quiserem ver o que é austeridade, podem visitar a Lituânia, país báltico de 3,3 milhões de habitantes.
Diante do crescente déficit que ameaçara quebrar a economia nacional, a Lituânia reduziu os gastos públicos em 30% -cortando, inclusive, os salários do funcionalismo entre 20% e 30% e reduzindo as aposentadorias em até 11%. Até o primeiro-ministro, Andrius Kubilius, sofreu um corte de rendimentos de 45%.
E o governo não parou por aí. Aumentou impostos sobre diversos produtos, como farmacêuticos e bebidas alcoólicas. Os impostos corporativos aumentaram de 15% para 20%, e a taxa sobre valor agregado, de 18% para 21%.
O efeito líquido sobre as finanças do país foi uma economia de gastos equivalente a 9% do PIB, o segundo maior ajuste fiscal em um país desenvolvido, depois da Letônia, desde o início da crise de crédito.
Mas a austeridade tem seu preço, em dificuldades sociais e pessoais. Os aposentados, com seus benefícios reduzidos, inundaram as sopas comunitárias. O desemprego saltou para 14%, e a economia, já combalida, encolheu 15% no ano passado.
De maneira notável, a austeridade foi, em geral, imposta com o apoio a contragosto dos sindicatos e partidos de oposição da Lituânia e ainda não provocou o tipo de protesto expresso nas amplas e regulares manifestações de rua e greves vistas em Grécia, Espanha e Reino Unido.
Certamente, Kubilius tem muitos críticos no país e no exterior. A austeridade do governo em meio a uma recessão vai contra a abordagem keynesiana de aumentar os gastos públicos para combater a queda econômica. Esse foi o caminho que a maioria dos países escolheu.
Mas Kubilius e sua equipe dizem que, com um déficit orçamentário de 9% do PIB, uma moeda atrelada ao euro e mercados de títulos internacionais avessos a emprestar para a Lituânia, o governo não teve escolha senão mostrar ao mundo que poderia impor sua própria desvalorização interna, cortando os gastos públicos, restabelecendo a competitividade e exigindo boa vontade dos mercados de títulos.
Outra motivação foi se conformar às regras de afiliação à união monetária europeia, que a Lituânia espera conseguir em 2014.
De fato, com exceção da Irlanda, nenhum país europeu chegou perto dos severos cortes de gastos da Lituânia sem a ajuda do FMI. A Irlanda aprovou o orçamento mais austero de sua história, e os cortes de salários no setor público foram uma peça central na iniciativa de reforma do governo.
O Ministério das Finanças lituano prevê crescimento de 1,5% neste ano, e a agência Moody's recentemente aumentou sua previsão para a economia lituana de negativa para estável.
Enquanto a Europa pondera os custos sociais e políticos ao tomar medidas para cortar gastos, a Lituânia oferece um caso de estudo em tempo real das compensações sociais.
"Você precisa dialogar com seus parceiros sociais e fazer os cortes mais difíceis o mais rapidamente possível", disse Kubilius. "Eu lhes disse: vocês precisam decidir hoje como querem ser descritos nos livros de história."
Como a Letônia e a Estônia, a Lituânia teve uma fase de sucesso econômico conduzida pelos setores bancário e imobiliário no início desta década. A construção passou a dominar a economia, e as baixas taxas de juros provocaram um boom na habitação. Muitos lituanos fizeram hipotecas com baixas taxas de juros nominais, em moedas estrangeiras. Com o início da crise, os preços das casas despencaram, a construção parou, e, de repente, milhares perderam os empregos.
A estudante universitária Monika Midveryte e sua mãe hoje sustentam a família depois que seu pai perdeu o emprego na construção. Agora, ela disse, ele fica em casa em frente à TV bebendo para esquecer os problemas. "Ele não tem esperança."
O preço psicológico foi enorme. Os suicídios aumentaram -em um país onde o índice de suicídios, de 35 por 100 mil habitantes, já é um dos mais altos do mundo.
"A estratégia de desvalorização interna pode ter tido sucesso para produzir uma estabilização em curto prazo, mas a que preço?", questionou Charles Woolfson, professor de estudos do trabalho na Universidade de Glasgow, especializado nos países bálticos. Ele indica que a alienação social se aprofunda na Lituânia, resultando no maior aumento da emigração desde que o país entrou para a União Europeia em 2004.
"Na época, foi a migração dos esperançosos", ele disse. "Hoje, é a migração dos desesperados."
Mecislovas Zukauskas, 88, eletricista aposentado, passou pelas devastações da Segunda Guerra Mundial, da ocupação soviética e, recentemente, da morte de sua mulher. Ele enfrenta calmamente o corte de sua aposentadoria. "O governo faz o que quer, não podemos fazer nada", resignou-se.

Texto do The New York Times, republicado na Folha de São Paulo, de 19 de abril de 2010.


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terça-feira, abril 20, 2010

O difícil caminho de Dilma

Abaixo, mais uma lúcida e interessante colaboração do professor Wagner Iglecias para o blog. Vale a leitura, na íntegra:

Nas voltas que a vida dá muitas vezes se ouve a expressão de que "fulano é a pessoa certa na hora certa". Para se ter sucesso na política, como se sabe, há que se ter a combinação ótima entre capacidade e oportunidade. A oportunidade de tornar-se a primeira mulher a presidir o Brasil se apresenta à candidata Dilma Roussef. É a escolhida do PT e do presidente Lula (mais por obra deste do que daquele, ao que consta) para concorrer à presidência da República.

Muitos, no entanto, se perguntam sobre sua capacidade de fazer frente à empreitada de eleger-se e, se vitoriosa, de comandar o país a partir de 2011. Apoiada por um presidente que detém mais de 70% de aprovação popular, e representando um governo que teve êxitos econômicos e sociais importantes, a priori daria pra se pensar que o caminho de Dilma rumo à vitória seria fácil. Será? A julgar pelo sucesso do governo Lula e pela premissa de que o brasileiro vota, antes de tudo, com o bolso, a única variável que poderia fazer Dilma Roussef não vencer a eleição chama-se, exatamente, Dilma Roussef.

De fato, a candidata Dilma tem pontos fortes e fracos. Entre os pontos de destaque estão sua propalada capacidade gerencial, o seu não envolvimento com o mensalão e outros escândalos que marcaram o governo Lula e sua história de vida, que vai da resistência à ditadura militar na juventude ao recente enfrentamento de um câncer. Apesar disto, Dilma deverá evitar cair na armadilha da fulanização que certamente será colocada em seu caminho. Jamais foi eleita a cargo público, não tem o curriculo acadêmico de seu principal adversário e, embora com uma vasta experiência na gestão pública, não ostenta, como ele, a passagem por tantos importantes cargos públicos.

Além disso Dilma ainda parece pouco habituada à matreirice das declarações públicas tão típica dos profissionais da política. Como se vê em sites e blogs, as primeiras movimentações desta eleição mostram que a candidata de Lula não terá um dia sequer de refresco daqui até as urnas. Toda e qualquer palavra que disser, todo e qualquer movimento que fizer serão questionados e cobrados pela oposição, num cerco que vai de seu adversário (de forma cordata, porém contundente) até a cidadãos comuns que pura e simplesmente rejeitam o petismo, manifestando-se de forma duríssima e por vezes preconceituosa, como se vê no ambiente virtual. "Guerrilheira", "terrorista" e "boneca de ventríloquo" são termos recorrentes com o qual o exército anti-petista tem se referido a Dilma na internet, por exemplo.

Será bom para o processo eleitoral que o debate se dê em torno de programas de governo e de comparações entre a diferença, que pouco a pouco vai se tornando mais nítida, entre os modelos de Estado distintos que PT e PSDB/DEM defendem para o país. Mas lembremos que o brasileiro vota, antes de tudo, em pessoas, e o perfil, a história e a personalidade de Dilma serão levados em conta pelos eleitores. Ela é bem menos conhecida que seu adversário e hoje ninguém sabe avaliar, ainda, qual o peso que ser "a candidata do Lula" terá a seu favor. É provável que tenha muito, e que talvez seja decisivo para o resultado do pleito.

Independentemente desta variável que pode vir a se constituir como fundamental, e do eventual debate de projetos de Brasil, Dilma terá de ser ser firme o suficiente para dissipar qualquer impressão de que, se eleita, seria apenas a "candidata do Lula", presa fácil dos políticos profissionais, e doce o suficiente para mostrar-se diferente do perfil gerencialista e pouco carismático com o qual muita gente a identifica até o momento. É dificil o caminho de Dilma.

Wagner Iglecias é doutor em Sociologia e professor do Curso de Gestão de Políticas Públicas da USP.

Texto originário do blog Entrelinhas.

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segunda-feira, abril 19, 2010

O incômodo 1964

1964 o ano que insiste em ficar

Por Maria Inês Nassif, de São Paulo
16/04/2010

O passado recente insiste em se intrometer no presente – e essa é a razão pela qual não se pode dizer que 1964 é um ano que tenha terminado. O livro “O que Resta da Ditadura: a Exceção Brasileira”, organizado por Edson Teles e Vladimir Safatle (Boitempo Editorial), nega ao passado recente a condição de passado. O que restou está entranhado na vida brasileira. Sua memória transcende os relatos pessoais dos que sofreram nos paus de arara e nas cadeiras do dragão do regime militar – instrumentos de suplício da Inquisição moderna e de sua procura por bruxos subversivos – ou daqueles que viram sumir nas dobras de um regime duro um ente querido. Transcende o indivíduo que sofreu a agressão e não teve direito ao reconhecimento ou ao luto e convive no mesmo espaço que seu algoz, aquele que suprimiu dele o direito ao luto e à memória. Vai além da sociedade que sofreu também uma agressão coletiva e não se livrou de leis, da forma de organização do Estado ou mesmo de um aparato militar moldados à imagem e semelhança do velho regime.

“Existe uma fantasia nacional de que, se não se olhar para trás, as coisas vão desaparecer. É como dizia o Pentateuco: se olhar para trás, vira estátua de sal. E fica claro que a ditadura militar criou um sistema que moldou muito claramente o presente”, afirma Safatle. Não à-toa, na terceira página do livro reina, solitária, a frase de George Orwell, em “1984″: “Quem controla o passado, controla o futuro”. Ela diz quase tudo. “O passado não é coisa que se esquece, mas que se elabora. A impossibilidade de elaboração causa uma série de problemas fundamentais que moldam a imperfeição de nosso sistema democrático”, diz o filósofo.

O livro é produto de debate promovido em 2007 pela USP, com a participação de cientistas políticos, sociólogos, filósofos, psicólogos, economistas e críticos de arte. Foi uma tentativa de mapear, de forma ampla, as heranças da ditadura. Demorou dois anos para virar livro.

A época do seminário era a do pós-crise aérea, quando, em reação à tentativa do governo de desmilitarizar o controle dos voos comerciais, oficiais incumbidos desse serviço abandonaram seus postos, num ato claro de insubordinação, sem que jamais tenham sido punidos por isso. Segundo o cientista político Paulo Ribeiro da Cunha, da Unesp – que escreveu um capítulo (“Militares e anistia no Brasil”) em que analisa a forma como a corporação militar lida com seu próprio passado -, embora os oficiais tenham abandonado as salas de controle, foram os subordinados os punidos: 34 controladores foram processados, 80 suboficiais e sargentos foram afastados de suas funções ou transferidos e as perseguições foram “inomináveis”. Na história brasileira, conta Cunha, as anistias dentro das Forças Armadas tiveram um corte ideológico e social: apenas beneficiaram movimentos à direita e oficiais, jamais a esquerda militar e os de baixo na escala hierárquica.

Nas vésperas do lançamento do livro, dois anos depois, outro incidente militar: a ofensiva contra o III Programa Nacional de Direitos Humanos, em dezembro do ano passado. “Reagiram basicamente quatro setores: a Igreja, os militares, os grandes proprietários de terra e setores fundamentais da imprensa. Foram os quatro setores que fizeram o golpe de 64. Valeria perguntar por que essa coincidência”, afirma Safatle. A imprensa, diz, poderia assumir a postura que teve no final da ditadura. “A ausência da imprensa no processo de revisão do passado fragiliza essa posição.”

As formas de controle da velha ordem sobre o que Safatle chama de “nossa democracia imperfeita” saltam nas páginas do livro. O cientista social Jorge Zaverucha, numa análise do arcabouço legal pós-85, chega à conclusão de que a Constituinte de 1988, sob forte pressão militar, acabou sendo cópia da Constituição de 1967 da ditadura e da emenda de 1969, no que diz respeito aos conceitos de segurança nacional. “Os militares podem dar golpe de Estado amparados por um preceito constitucional”, afirma Zaverucha. É o que define o artigo 142 da Constituição de 1988, que dá às Forças Armadas o poder de garantir “a lei e a ordem”, se chamadas por um dos poderes. “O presidente do Senado, José Sarney, pode pedir a intervenção militar”, exemplifica Safatle.

O fato de se ter “perdoado” os militares sem exigir da parte deles reconhecimento de seus crimes, segundo a psicanalista Maria Rita Kehl, produz “a naturalização da violência como grave sintoma social” – no inconsciente social, um esquecimento imposto é da ordem do “recalque”, que produz manifestações sintomáticas, entre elas a própria permanência da tortura no cotidiano. “A tortura resiste como sintoma de nossa displicência histórica”, escreve.

Outra questão extensamente colocada no livro é a legitimidade da anistia – perdão autoimposto, cujos termos são um enorme impedimento para o acerto de contas com o passado. Para Safatle, de todos os lados que se olhe a anistia brasileira é ilegítima, embora tenha sido estabelecida com amparo de um arcabouço legal que, trazido da ditadura, permite até golpes de Estado “legais”.

A lei de anistia de 1979, imposta pelo presidente-general João Figueiredo a um Congresso fragilizado, não resiste a uma interpretação mais criteriosa, afirma o filósofo. Segundo o artigo 1º , parágrafo II da lei 6.683, “excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal”. Os que se opuseram ao regime militar pelas armas, portanto, ficaram de fora da anistia e cumpriram pena. “Muitos permaneceram presos depois da lei”, lembra Safatle. Tiveram apenas a pena reduzida por um novo texto da Lei de Segurança Nacional. Essa exclusão do texto da anistia, por si só, tornaria passíveis de julgamento os que, do lado do regime, cometeram terrorismo de Estado, sequestraram opositores e atentaram contra a pessoa humana nas câmaras de tortura. “Essa interpretação da lei derruba a teoria dos dois demônios”, afirma Safatle. Segundo essa teoria, a anistia jogou o manto do perdão sobre os “demônios” da esquerda que combatia o regime e os “demônios” do Estado. Os únicos “demônios” que não foram punidos, no entanto, foram os que estavam protegidos pelo aparelho de Estado.

Outro argumento usado pelos militares para se opor à responsabilização de seus agentes é o de que os abusos contra os direitos da pessoa humana foram feitos para evitar um golpe de esquerda. “Não houve nenhum caso de grupo de esquerda que tenha pegado em armas antes do golpe de 1964″, afirma Safatle.

O filósofo coloca na mesa mais um argumento para refutar a tese de que o regime torturou e matou no combate ao terrorismo: segundo ele, o terrorismo não existiu. “Não houve ataque contra a população civil.” O único caso em que houve uma vítima civil, o atentato no aeroporto de Guararapes, não foi assumido por nenhum grupo organizado. Ainda assim, na opinião de Safatle, as oposições, mesmo armadas, exerciam o legítimo direito à resistência.

“Faz parte da noção mais liberal da democracia a ideia de que toda ação contra o Estado ilegal é uma ação legal. Isso é John Locke, não é Lenin. Para Locke, é legal matar o tirano numa situação de ausência de legalidade”, diz Safatle. “Quando pessoas questionam a luta armada contra a ditadura, estão questionando um princípio que é fundamental para a democracia liberal: o direito à resistência. Claro que devemos criticar o projeto de sociedade que a luta armada tinha, mas jamais colocá-la no mesmo lugar dos torturadores.”.

O texto é do Valor, mas está no blog do Luís Nassif.


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Nem bandido nem mocinho

Nem bandido nem mocinho


A DEMOCRACIA BRASILEIRA não teria avançado tanto desde 1988 se a Constituição não tivesse dado ao Ministério Público (MP) as atribuições e prerrogativas que deu. O MP se interessou sempre por aquilo por que ninguém se interessa. Em um país sem educação, procurou fazer cumprir as leis e falar por quem não recebeu condições para exercer plenamente seus direitos.
É contra tudo isso que se volta a chamada "Lei Maluf", atualmente em tramitação no Congresso.
A simples ideia de que um insigne capacho da ditadura militar possa dar nome a uma lei já é infame por si mesma. Sim, trata-se de legítimo representante do povo.
Mas cuja base eleitoral é resquício do autoritarismo e da intolerância produzidos por mais de 20 anos de ditadura.
Dito isso, não cabe fazer da discussão sobre o papel do MP um pastelão em que só há bandidos e mocinhos. Uma discussão em que só se pode ser contra ou a favor não permite discutir nada a sério.
O atual espírito de corpo do MP se formou na luta contra o autoritarismo, o preconceito e a ignorância. A impressão que se tem, no entanto, é a de que o MP continua a se colocar em posição de vanguarda, como se o Estado de Direito estivesse em perigo como antes, como se todos os demais órgãos do Estado fossem inimigos da democracia.
O resultado é que o MP corre hoje o risco de se isolar e mesmo de se tornar um freio a possíveis avanços institucionais. Isso porque seu ímpeto transformador pode acabar se revertendo em mero paternalismo.
Pode ajudar a perpetuar a situação que pretende combater, mantendo cidadãs e cidadãos na posição de incapazes de exercer por si próprios seus direitos, de discernir por si mesmos seus verdadeiros interesses. Riscos que se tornam ainda maiores em vista da atual tentativa de rever a sábia proibição de que integrantes do MP que ingressaram depois de 1988 possam se candidatar a cargos eletivos no exercício do cargo.
Diante da nova situação histórica da democracia e do MP, o Congresso Nacional deveria responder com a rejeição da proposta infame de Maluf e, ao mesmo tempo, com um expressivo incremento de verbas para o Conselho Nacional do Ministério Público. Basta comparar a dotação desse órgão de controle externo com a do seu equivalente para o Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça, para que se veja o quanto ainda precisa ser feito.
E o MP como um todo deveria estar coeso no apoio a esse órgão de controle democrático de sua atuação, dando o exemplo de transparência que, com legitimidade e rigor, exige de qualquer agente público ou privado.


Texto de Marcos Nobre, na Folha de São Paulo, de 13 de abril de 2010. Grifos do blogueiro.


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sábado, abril 17, 2010

Invocar uma "ditadura benevolente" é um ultraje!

Trecho da Coluna Toda Mídia, de Nelson de Sá, na Folha de São Paulo desta sexta-feira (16/04/2010) informa que o RGE – Roubini Global Economics, do economista Nouriel Roubini, que alguns chamam de Dr. Apocalipse (ele chamava a atenção para as hipotecas americanas e o possível problema que elas representariam para a economia dos Estados Unidos e do mundo antes deste problema explodir) publicou artigo do economista Ricardo Amaral clamando por um golpe de estado e uma “ditadura benevolente” (ou, talvez, “benigna”) para o Brasil (como informa Nelson de Sá, o texto foi retirado do sítio do RGE Monitor, mas pode ser encontrado em cache). Os motivos? Resolver com a violência das grandes cidades e com a corrupção que grassa no país, coisa que o autor alega que não pode ser feita por um governo democrático. Ele até sugere um nome para ditador, o general Augusto Heleno Ribeiro Pereira, ex-comandante das tropas brasileiras no Haiti, e que já se envolveu em uma discussão a respeito da Amazônia.

Um blog do Financial Times comenta, e, me parece, condena tal posição.

O que pode ser dito de um tal artigo, clamando por uma volta à ditadura? ULTRAJANTE!


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José Simão vê as eleições 2010

Olha a faixa que eu vi em Brasília: "Dona Marisa! Cartas, búzios e tarô". E o lançamento do Serra? Mais conhecida como "A Festa do Aécio" ou "Baile da Terceira Idade do Clube Pinheiros"! E o discurso do Vampiro Anêmico: "Prefiro ter uma cara só".
AINDA BEM! Já imaginou duas daquelas? Aliás, se ele tivesse duas caras, não estaria usando justo essa que ele tá usando! Rarará! E mais: "O Brasil não tem dono". E aí o Sarney gritou: "Mas o Maranhão tem!".
E o Eramos6 revelou o grande projeto social do Serra: BOLSA FAMÍLIA ADAMS! Rarará! E o ex-futuro vice Aécio? Disse que o Brasil precisa da velocidade tucana. Aí, o Serra pediu um minuto de silêncio pelas vítimas do Rio. Que durou um minuto e quarenta e três segundos!
Isso que é velocidade! O Aécio?
E o Lulalelé em São Bernardo: "Eu vou falar com o OBRAHMA". Juro que ele falou. Antes era só piada.
Agora é piada verídica! E sabe o que mais ele falou? "Quem disse que eu não estudei? Só no ABC passei 20 anos!". E a Dilma fica tão grudada no Lula que até assombra. Ops, A SOMBRA! Dilma e Serra, dou um pelo outro e não quero troco!


Trecho da coluna de José Simão, o Macaco Simão, na Folha de São Paulo, de 13 de abril de 2010.


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Jerusalém nos últimos 42 anos...

“Nos 42 anos em que Jerusalém está unificada sob administração israelense, ela jamais foi tão aberta e livre. Não havia liberdade para cristãos e judeus quando a cidade estava nas mãos árabes. A divisão é o maior erro que pode ser cometido. Jerusalém deve continuar aberta e unificada.”


Nir Barkat, atual prefeito (judeu) de Jerusalém, em entrevista à Folha de São Paulo.


A entrevista completa está disponível na Folha Online.


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quarta-feira, abril 14, 2010

Começou a campanha presidencial de 2010

Começou a campanha presidencial de 2010


E a grande mídia vem junto.


Talvez a campanha já tenha começado quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva resolveu indicar a ministra Dilma Rousseff como a candidata governista na sucessão presidencial, numa situação que ficou muito parecida com o antigo “dedazo” mexicano1. Afinal, desde então, o jornal Folha de São Paulo já divulgou como autêntica uma “ficha criminal” da ministra Dilma, que aparentemente foi uma falsificação produzida por software de edição gráfica, e criou um factóide entre a ministra e a secretária da Receita Federal, Lina Vieira, que montou um amplo palco para a oposição chamar a ministra de “mentirosa”.


Dois eventos marcaram este final de semana que passou, um pela situação, outro pela oposição.


No caso da candidatura governista, lá pelas tantas do discurso, Dilma Rousseff disse que ela não era mulher de fugir da luta, ou algo que o valha. Pronto. A oposição e a grande mídia já aproveitaram para dizer que a ex-ministra havia condenado os brasileiros que deixaram o país durante a ditadura militar, enquanto ela havia ficado, aderido à resistência armada, e posteriormente sido presa, torturada e condenada à prisão naqueles anos de chumbo. Haja suscetibilidade para fazer este tipo de ilação. Haja vontade de inventar fatos. A candidata afirmando que está se lançando à luta (isto é, à sua candidatura, que já é possível ver sofrerá oposição acirrada) no presente, e o pessoal já está lhe tentando impingir acusações de arrogância, com base em seu passado. Hoje ainda (14/04/2010), o jornalista Fernando Rodrigues está explorando a questão na Folha de São Paulo. No caso ele alega que a interpretação de impingir o rótulo de “covarde” a quem se exilou durante a ditadura (o que incluiria o candidato José Serra) foi de “blogs petistas e dilmistas”. Se é de fato o caso, tais blogs petistas e dilmistas se deram um tiro no pé. Mas não posso deixar de pensar que a grande imprensa, em qualquer caso, aproveitou para carregar nas tintas, e bombardear a candidatura governista.


Pelo lado da oposição houve o lançamento semi-oficial da candidatura do ex-governador de São Paulo, José Serra, à presidência pelo PSDB. Digo semi-oficial porque oficialmente as candidaturas só poderão ser lançadas em julho, segundo o calendário eleitoral. Mas em todo o caso, a candidatura oposicionista também está na rua. E o discurso do candidato José Serra veio com frases de efeito, tais como “o Brasil não tem dono” (possivelmente pensando nos níveis de aprovação de cerca de 80% do presidente Lula), ou que sua candidatura era “para unir o Brasil” (talvez referência a um certo, digamos, facciosismo do PT?). De quebra, em sua coluna de hoje, o jornalista Elio Gaspari, dá uma força para a campanha de José Serra, mesmo que este não seja o seu propósito principal. A coluna contém trechos como “O lançamento da candidatura de José Serra com uma proposta de superação das divisões políticas nacionais, porque 'o Brasil não tem dono' e 'pode mais', obriga o comissariado petista a refletir sobre sua plataforma eleitoral.”, ou “Serra propõe a unidade do país e terá os próximos meses para botar substância nessa proposta. Por enquanto, dispõe da colaboração de Nosso Guia, com suas declarações desrespeitosas ao Poder Judiciário e ao aparelho de fiscalização do Estado. Mais: Lula comporta-se como dono do país quando se mostra confortável na condição de padrinho, animador e empresário de Dilma Rousseff.”. Logo o Gaspari, que eu reputo como o melhor e mais equilibrado jornalista do Brasil2. Mas não importa, vamos em frente. O Brasil não tem dono mesmo, e o fato do presidente Lula ter 80% de aprovação não significa que a candidata dele à sua sucessão vá receber votação de 80% do eleitorado (na verdade, 80% de aprovação não garante nem mesmo que a candidata governista vença a eleição como demonstrou a recente eleição chilena, onde a ex-presidente Michelle Bachelet tinha níveis recordes de aprovação, mas não logrou fazer seu sucessor). Contudo, acho difícil que os tucanos, sob a liderança de José Serra, sejam as pessoas mais habilitadas a “unir o Brasil”. Nos seus quatro anos de governo em São Paulo, o governador José Serra permitiu uma batalha campal entre policiais civis em greve e policiais militares. Permitiu que uma greve de professores durasse um mês, e, pelo que eu soube, nem mesmo recebeu alguma comissão de grevistas, sem contar os incidentes em que a policia militar paulista foi chamada a reprimir manifestações. No Senado a comissão de relações exteriores, senador tucano Eduardo Azeredo à frente, está bloqueando nomeação de embaixadores, para demonstrar sua insatisfação com a política externa do governo federal (seria isto atitude em prol da “união nacional”?). Pode ser só opinião minha, mas eu vejo muito mais autoritarismo nos discursos de José Serra, ou no então candidato Geraldo Alckmin, em 2006, do que nos pronunciamento do presidente Lula (a candidata Dilma é um caso que eu ainda não avaliei). Em todo o caso, este papo de “unir o país” e “superar divisões” me parece mais assunto de nações governadas por regimes de partidos únicos. Desde que foram restabelecidas eleições diretas no país o candidato vencedor no segundo turno de votação recebe algo entre 53 e 60% dos votos.


Por fim, a campanha presidencial começou. Ela promete tantos ou mais golpes baixos e pegadinhas quanto as recentes eleições passadas.



1O PRI – Partido Revolucionário Institucional reinou no México desde o final da Revolução Mexicana, no final dos anos 1910 até a recente eleição de Vicente Fox, do PAN – Partido de Ação Nacional. Desde comecei a prestar alguma atenção nisso, era comum ouvirmos no noticiário que o presidente em exercício “indicava” o seu sucessor na máquina do PRI. Assim, José López Portillo indicou Miguel de la Madrid, este indicou Carlos Salinas de Gortari, que, por sua vez, indicou Ernesto Zedillo. Era o famoso “dedazo”. Nesse período o PRI envolvia de tal maneira a sociedade mexicana que era muito difícil a oposição ter chances nas eleições.

2Se não é o melhor jornalista do Brasil, pelo menos é o que eu mais gosto de ler nos chamados grandes veículos que eu ainda acompanho. Neste blog mesmo já foi comentado o equilíbrio do jornalista durante a campanha presidencial de 2006: http://aindaamoscaazul.blogspot.com/2006/10/o-presidente-lula-precisa-refletir.html


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A novidade veio dar à praia

Todos os olhos estarão voltados para Brasília, alguns poucos para São Bernardo do Campo, mas neste sábado, dia 10, a novidade da política brasileira estará no Rio de Janeiro. Sim, porque em Brasília, José Serra (PSDB) será oficialmente lançado candidato à presidência, enquanto Dilma Rousseff (PT) estará no berço de Luiz Inácio Lula da Silva tentando mais uma vez a impossível missão de se transformar em um Lula de saias.
Já no Rio de Janeiro, onde provavelmente estarão os plantonistas escalados para quebrar o galho da turma que foi para a capital federal ou para o ABC paulista, é que deve aparecer a grande novidade da política nacional. Novidade, aliás, é uma certa contradição quando se fala em Plínio de Arruda Sampaio, 80 anos, mais de 50 de vida pública, provável candidato do PSOL à presidência do Brasil. Será neste sábado, na Casa do Estudante Universitário da UFRJ, no bairro do Flamengo, a decisão do PSOL sobre a candidatura – concorrem também o ex-deputado Babá e Martiniano Carvalho, um obscuro quadro do partido, apoiado por Heloísa Helena –, mas Plínio é franco favorito.
Confirmado o nome de Plínio para a urna eletrônica de outubro, a política brasileira terá, sim, uma novidade: pela primeira vez, a extrema-esquerda terá um candidato à presidência consistente, sereno na forma e firme no conteúdo (exatamente oposto, por sinal, da ex-senadora Helena). Plínio Sampaio é garantia de um debate elevado, no plano das idéias, de um projeto alternativo de Nação. É possível discordar de várias posições do socialista, mas até mesmo os adversários mais ferrenhos são unânimes em apontar a coerência e a honestidade intelectual de Sampaio.
Amigo de Serra, ao lado de quem passou boa parte do exílio noChile e Estados Unidos; amigo do presidente Lula, com quem compartilhou anos de militância desde a primeira hora no PT, Plínio hoje está distante dos dois no plano político. Será o único a apontar que vença Serra, vença Dilma ou até Marina Silva, a condução da política econômica do país permanecerá rigorosamente a mesma. Será o único a apontar um caminho diferente para o desenvolvimento econômico do país. E será o último a adotar o discurso rastaqüera da condenação “moral” dos seus adversários. Sim, porque Plínio não está interessado em questões menores, não precisa falar de ética na política porque seu passado o credencia como o único dos presidenciáveis cuja biografia pode ser exaustivamente investigada sem que se encontre uma única mácula. Serra tem as dele, Dilma e Marina, idem, mas Plínio, neste quesito, é diferente. E não fará questão de levar o debate para este plano, que lhe é tão favorável.
A novidade é justamente esta: se o PSOL realmente confirmar a indicação de Plínio como candidato à presidência, não teremos neste pleito o discurso neo-udenista de Helena e sim uma plataforma consistente e focada no conteúdo das propostas, com um candidato que sabe o que fala e sabe o que defende. Uma diferença e tanto.

Este texto é originário do Blog Entrelinhas.

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Carrocinha




Do Angeli, na Folha de São Paulo.

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segunda-feira, abril 12, 2010

Total de homicídios cresce 12% no 1º trimestre em SP

São Paulo - Depois de dez anos de queda ininterrupta, os homicídios voltaram a crescer no primeiro trimestre deste ano na capital paulista. Foram registrados 353 assassinatos nos três primeiros meses do ano, enquanto no mesmo período do ano passado ocorreram 315 mortes. O aumento é de 12%, segundo os dados do Infocrim, sistema eletrônico de informação da Secretaria de Segurança Pública, obtidos com exclusividade pelo jornal O Estado de S. Paulo.

Longe de ser um fenômeno localizado, os assassinatos cresceram de forma homogênea em toda a capital. Houve registro de aumentos nas oito seccionais de polícia, nas zonas central, sul, oeste, norte, leste, Santo Amaro, Itaquera e São Mateus.

Na zona norte, por exemplo, a média mensal do primeiro trimestre foi 18% acima da média dos meses de 2009. A 6.ª Seccional, que engloba a região de Santo Amaro, teve 82 homicídios em três meses, uma média de 27,3 por mês, o que significa aumento de 13% em relação ao mesmo período do ano passado.

PM

Em uma tendência que vem se consolidando desde março do ano passado, os casos de resistência seguida de morte - homicídios em que a vítima morre em supostos tiroteios com a Polícia Militar (PM) - voltaram a crescer nos dois primeiros meses deste ano no Estado de São Paulo. Em janeiro e fevereiro foram 140 ocorrências, 52% acima do verificado no mesmo período do ano passado, quando ocorreram 92 casos.

Desse total, 114 pessoas morreram em casos envolvendo policiais militares em serviço, enquanto 26 pessoas morreram em ocorrências com policiais em folga. Nos dois primeiros meses do ano, também cresceu o total de policiais militares mortos. Onze homens morreram no bimestre - sete deles fora do horário do expediente. Durante o mesmo período do ano passado, sete policiais morreram - cinco deles durante a folga.

O aumento da letalidade ocorre apesar de o comando da PM ter tomado iniciativa para diminuir essas ocorrências, com reforço de treinamento e técnicas não letais de enfrentamento; investigação dos casos de resistência pela Corregedoria; análise psicológica daqueles que se envolvem em tiroteios e investimento em equipamentos não letais, como cassetete, munição de borracha e armas de paralisação por descarga elétrica. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.


Notícia da Agência Estado, republicada no UOL.


Então é bom notar: são 353 homicídios contabilizados no estado São Paulo, mas 140 destes homicídios foram, digamos, executados por policiais. Assim, podemos contabilizar em 213 os homicídios perpetrados por criminosos.


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quinta-feira, abril 08, 2010

Para Demóstenes Torres, sobre a escravidão no Brasil e os problemas dos negros por aqui

Mais um e-meio do além, de Elio Gaspari.


De Cazemiro@edu para Demóstenes.Torres@gov


ILUSTRE SENADOR Demóstenes Torres,


Quem lhe escreve é Cazemiro, um Nagô atrevido. Faço-o porque li que o senhor, um senador, doutor em leis, sustenta que a escravidão brasileira foi uma instituição africana. Referindo-se aos 4 milhões de negros trazidos para o Brasil, vosmicê disse o seguinte: "Lamentavelmente, não deveriam ter chegado aqui na condição de escravos, mas chegaram..."

Vou lhe contar o meu caso. Eu cheguei ao Rio de Janeiro em julho de 1821 a bordo da escuna Emília, junto com outros 354 africanos. O barco era português e o capitão, também. Fingia levar fumo para o Congo, mas foi buscar negros na Nigéria e, na volta, acabou capturado pela Marinha inglesa. Desde 1815, um tratado assinado por Portugal e Grã Bretanha proibia o tráfico de escravos pela linha do Equador.

Quando a Emília atracou no Rio, fomos identificados pelas marcas dos ferros. A minha, no peito, parecia um arabesco. Viramos "africanos livres". Livres? Não, o negro confiscado a um traficante era privatizado e concedido a um senhor, a quem deveria servir por 14 anos. O Félix Africano, resgatado em 1835, penou 27 anos. Doutor Demóstenes, essa lei era brasileira.

A turma da Emília trabalhou na iluminação das ruas e no Passeio Público. Algumas mulheres tornaram-se criadas. A gente se virou, senador. Havia senhores que compravam negros mortos, trocavam nossas identidades e não nos liberavam. As marcas a ferro nos ajudaram.

Alguns de nós conseguiram juntar dinheiro. Como estávamos sob a supervisão dos juízes ingleses, em 1836 compramos lugar num barco. Dos 354 que chegaram, talvez 60 retornaram à África.

Como doutor em leis, vosmicê sabe que o Brasil se comprometeu a acabar com todo o tráfico em 1830. Entre 1831 e 1856 chegaram 760 mil negros, os confiscados devem ter sido 11 mil, ou 1,5%. Aquela propriedade da Marinha, na Marambaia, onde às vezes o presidente brasileiro descansa, era um viveiro de escravos contrabandeados. Não apenas a escravidão do Império era uma instituição brasileira, como assentava-se no ilícito, no contrabando.

Outro dia eu encontrei o Mahommah Baquaqua, mais conhecido nos Estados Unidos do que no Brasil. Ele foi capturado no Benin, lá por 1840, vendido a um padeiro em Pernambuco e revendido no Rio ao capitão do navio "Lembrança".

Em 1847, o barco fez uma viagem ao porto de Nova York e lá o Baquaqua fugiu. Teve a proteção dos abolicionistas, razoável cobertura jornalística, estudou e escreveu um livro contando sua história (inédito em português, imagine). Fazia tempo que eu queria perguntar ao Baquaqua por que, em suas memórias, não contou que, de acordo com as leis brasileiras, o seu cativeiro era ilegal. Ele diz que esqueceu, mas que, se tivesse lembrado, não faria a menor diferença.

Senador Demóstenes, a escravidão foi brasileira, assim como é brasileira uma certa dificuldade para lidar com os negros livres. Eu que o diga.

Axé,

Cazemiro

P.S.: Há uma referência ao caso da Emília no artigo "A proibição do tráfico atlântico e a manutenção da escravidão", da professora Beatriz Gallotti Mamigonian, publicado recentemente na coletânea de ensaios "O Brasil Imperial". Que Xangô apresse a publicação de seu livro sobre os "africanos livres" no Brasil.


Publicado na Folha de São Paulo, de 7 de abril de 2010.


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terça-feira, abril 06, 2010

A desconstrução de Geisel

Em sua trilogia sobre o regime militar, Elio Gaspari colocou indícios relevantes de que Geisel não era o defensor da civilização contra a barbárie de Médici. Ele jogava com os porões sem nenhum escrúpulo.

Do Valor

Uma história sem inocentes

Por Maria Inês Nassif e Paula Simas, de Brasília
01/04/2010

Jarbas Passarinho, 90 anos: para ex-ministro, no governo Geisel houve uma política de Estado de extermínio de adversários quando os militares já haviam feito a limpeza da guerrilha urbana

O aniversário de 46 anos do golpe de 1964, neste 31 de março de 2010, encontra o coronel da reserva, ex-ministro e ex-senador Jarbas Passarinho com 90 anos. Mesmo debilitado por um longo período de doença – uma septicemia que se seguiu a uma pneumonia valeu a ele uma estada na UTI e três momentos em que a morte quase bateu à porta -, Passarinho mantém uma surpreendente lucidez. Retoma quase do mesmo ponto uma conversa que teve com as repórteres oito anos atrás, quando expôs seu grande incômodo pela maneira como a história enxerga os governos dos generais-presidentes Costa e Silva (1967-1969), Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) e Ernesto Geisel (1974-1978).

Para a história, segundo ele, os dois primeiros (aos quais serviu como ministro) ficaram como governos duros – como se as atitudes tomadas por ambos decorressem de uma vontade pessoal ou do espírito antidemocrático dos dois. Do último ficou a impressão de que era alguém com grande espírito democrático – e que, dessa forma, se contrapunha aos dois governos anteriores. O ex-ministro praticamente sugere uma inversão da maneira como a história deve ver cada um desses personagens.

Passarinho propõe uma releitura que, se não consegue atenuar o conteúdo das decisões dos presidentes Costa e Silva e Médici que foram interpretadas pela história como antidemocráticas, de outro recoloca Geisel na história como um presidente particularmente duro. Para o ex-senador, Costa e Silva foi o responsável pelo AI-5, embora a decretação do ato tenha ocorrido por pressão militar, não pela convicção pessoal daquele presidente; da decisão de Médici de dar autonomia ao aparelho de repressão decorreram o descontrole e a tortura generalizada, embora tivesse deixado claro antes a seus auxiliares que não concordava com a tortura. Mas, segundo Passarinho, no governo Geisel houve política de Estado de extermínio de adversários quando os militares já haviam feito, na gestão anterior, a limpeza da guerrilha urbana, que era o que efetivamente ameaçava o regime militar.

Uma decisão presidencial, a de Geisel, eliminou fisicamente a guerrilha rural que estava isolada e matou vários dirigentes do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que nunca pegou em armas contra o regime. “Uma ordem para não fazer prisioneiros só podia vir do presidente da República, de mais ninguém.”

Passarinho define as políticas de Estado que endureceram o regime nos governos Costa e Silva e Médici como reações a ações da esquerda armada. O fato de o poder não ter sido entregue aos civis no período pós-Médici, governo que exterminou a guerrilha urbana e entregou ao sucessor a guerrilha rural – do Araguaia – totalmente isolada, foi, para ele, um ato autoritário de Geisel. “Eu tenho a triste impressão de que a guerrilha do Araguaia foi utilizada como pretexto para continuar o regime autoritário”, disse, há oito anos.

“Não havia, do meu ponto de vista, a menor razão para continuar um processo autoritário por causa da guerrilha do Araguaia [1969-1975, do PCdoB]. Era um movimento inexpressivo. Ali era uma área que, cercada, poderia resultar até na morte por fome dos guerrilheiros”, disse, na primeira entrevista. “Era um grupo de 60 pessoas completamente isolado, rompido com a União Soviética, rompido com a China de Mao Tsé-tung e apenas apoiado pela Albânia, que era o pior país em matéria de PIB da Europa”, reiterou.

Foi a convicção de que a luta armada da esquerda não constituía mais nenhum risco ao regime que levou Passarinho, no processo de escolha do sucessor do presidente Médici, a defender a entrega do poder para os civis. “Num dia qualquer de 1973, em janeiro ou fevereiro, procurou-me o meu colega de ministério Costa Cavalcanti [Passarinho era ministro da Educação]. Ele me perguntou: você tem alguma coisa contra o Geisel? Eu falei: olha, não tenho nada contra o Geisel, mas sou a favor de que, quando chegar ao fim do ano de 1973, o presidente Médici entregue o poder aos civis”, relatou.

O ex-senador teria defendido, na época, a candidatura de Leitão de Abreu, ministro da Justiça que, na sua opinião, teria sido eleito até pelo voto direto, na esteira da popularidade de Médici. “O Ronaldo Costa Couto entrevistou o nosso famoso presidente, que então era líder sindical, o Lula, em 1989, e o Lula disse que Médici ganharia qualquer eleição que disputasse. Costa Couto perguntou por que e Lula disse: ‘Porque na época nós, trabalhadores, escolhíamos o emprego que quiséssemos’.”

Na biblioteca de sua casa no Lago Norte, onde está cercado de livros que cita em profusão e de um computador que espera a pronta recuperação do dono para cumprir a sua determinação de escrever sobre a tese de que o AI-5 só ocorreu porque existia a Guerra Fria, Passarinho reitera afirmações passadas. E começa do começo.

Descreve a história brasileira no período 1964-1985 como uma sucessão de reações, que tinham, de um lado, uma ação revolucionária de esquerda, e de outro, as Forças Armadas exercendo o papel de guardiãs da ordem interna. No primeiro tempo do jogo, um presidente, João Goulart, que queria “dar um golpe de instituir a república sindicalista”. O golpe militar, por essa visão, teria sido um contragolpe – uma reação militar a uma ação da esquerda. O segundo tempo foi a decretação do AI-5 por Costa e Silva – numa reunião do Conselho Político do governo da qual Passarinho participou e declarou seu voto favorável ao ato com a frase que ficou famosa, “às favas os meus problemas de consciência”, reproduzida posteriormente. Seria, segundo ele, a reação aos grupos de esquerda que se armavam.

Nesse dia de 2010 que chegava claro pela janela de seu escritório, o ex-ministro do Trabalho de Costa e Silva explicava por que os militares pressionaram pela edição do ato institucional que dava aos militares todo o poder discricionário – de fechar o Congresso, intervir no Judiciário, suspender o habeas corpus e editar leis – ao presidente, que também era um general do Exército (e foi imposto ao Congresso numa eleição indireta, por um colégio eleitoral).

“O Costa e Silva não queria nem decretar o estado de sítio, mas ele foi compelido pelos militares a editar o AI-5. O problema é que o estado de sítio mantinha o habeas corpus. O [Carlos] Marighela [da ALN], por exemplo, foi preso e solto 21 dias depois por causa do habeas corpus. Então os militares disseram: se continuar assim, não podemos garantir a manutenção da ordem. Faz-se um esforço para prender um chefe [guerrilheiro] e a Justiça libera, a Constituição libera.”

Daí por que, diz o coronel da reserva, a proposta mediadora do vice-presidente civil Pedro Aleixo, de decretar o estado de sítio em vez de se tomar a extrema medida de edição do AI-5, não resolvia. “Qualquer medida de restrição das liberdades aplicada pelo governo no estado de sítio e aprovada, naturalmente, pelo Congresso, mantém o habeas corpus.” Costa e Silva não chegou a se utilizar do instrumento entre a sua edição, em dezembro de 1968, e a trombose que o levaria ao seu afastamento e à sua morte, em agosto de 1969.

No governo Médici, o movimento reativo teria sido a descentralização da comunidade de informações. E, no fim desse período, admite Passarinho, o extermínio de opositores como política de Estado. Essas duas decisões partiram, segundo o ex-ministro, do recrudescimento da ofensiva da guerrilha urbana. Ao receber um informe do seu chefe da Casa Militar, Orlando Geisel, sobre um jovem major que começava o treinamento no setor de informações do Exército e foi metralhado por um guerrilheiro, Médici disse ao chefe militar: “Mas só os nossos é que morrem?” A decisão de descentralizar as decisões, para que a comunidade de informações tivesse autonomia para reprimir os adversários políticos do regime, teria sido tomada aí, segundo o ex-ministro. No fim do governo, a decisão do extermínio foi de Médici – e mantida pelo chefe de governo posterior, Ernesto Geisel – em função dos sequestros de embaixadores pelos grupos armados de esquerda, para libertar quadros que estavam na prisão.

“Tinha mortes do lado de cá para lutar para destruir uma organização guerrilheira qualquer e, se o chefe de facção era preso, se fazia um sequestro de um embaixador e daí se soltava todo mundo. No meu entender foi uma resposta – eu não tenho nenhuma autoridade moral para dizer isso, eu deduzo – a um tipo de ação guerrilheira. Nunca antes uma ação guerrilheira tinha sequestrado um embaixador. Acredito que a ordem de não deixar prisioneiros tenha sido tomada a partir de ações de guerrilha que o governo não teria como combater.”

A decisão de descentralizar as decisões de repressão política, reconhece Passarinho, recrudesceu a tortura. Mas, embora o presidente tenha sido a voz final nessa decisão, haveria atenuantes. “Só se fala no Médici, mas não se fala que o poderoso ministro do Exército na ocasião se chamava Orlando Geisel [irmão de Ernesto], que era duro, da linha dura. O Médici descentralizou as regiões e os comandos passaram a ser autônomos, pois até uma ação chegar ao presidente da República, ao Serviço Nacional de Informações (SNI), demorava muito, dificultava o combate à guerrilha. Então se decidiu que a ação ia ser resolvida dentro da região. Nessa descentralização é que, no meu entender, apareceu um comando paralelo, o comando da chamada Comunidade de Informações”, disse, anos atrás.

Eliminar fisicamente adversários seria uma decisão estrita de um presidente da República, segundo Passarinho. Ele reconhece que essa decisão foi tomada no fim do governo Médici – e portanto esse presidente foi parte de uma ofensiva que, entre o seu governo e o seguinte, exterminou centenas de adversários. Mas acha que, no caso de Geisel, as mortes e os desaparecimentos foram mais numerosos e menos justificáveis. “Vocês mesmos [a imprensa] publicaram sobre o Massacre da Lapa [chacina que, em 1976, praticamente dizimou o comitê central do PCdoB que estava reunido numa casa em São Paulo, no bairro da Lapa]. Eles entraram atirando. Quem fez isso? E quem matou o Comitê Central do Partidão? Não foi o Médici, não”, afirmou, enfático, o ex-senador. “Isso foi uma política de Estado? É lógico que foi. De quem seria? De quem sairia a ordem para cercar um grupo desses? Era exatamente a chamada Comunidade de Informações que existia nos três ministérios, Marinha, Exército e Aeronáutica. Hoje tenho a impressão de que, se o Geisel tivesse sido presidente antes do Médici, teria mostrado exatamente que o Médici era um anjo.”

Na defesa de Médici, Passarinho enumera fatos institucionais e decisões de caráter pessoal. A descentralização das decisões sobre a repressão intensificou a tortura, reconhece, mas isso fugiu ao seu controle. Pessoalmente, era contra, garante seu ex-ministro. E repete um “testemunho pessoal”: quando assumiu o Ministério da Educação, Passarinho foi procurado por um sindicalista que levava a ele a denúncia de que uma bancária se encontrava em coma, por causa de choques elétricos que recebera na tortura. Passarinho, depois de investigar a veracidade da acusação, levou-a a Médici.

“Eu levei a denúncia ao presidente e disse a ele: acho que nem o senhor pode passar para a história como um presidente da República que permitiu a tortura nem o seu ministro da Educação. Na hora ele chamou a ordenança e deu ordem para ligar para uma determinada pessoa e disse: ‘Quero saber quem foram os responsáveis’. E puniu, transferiu para a fronteira. Vocês podem dizer que foi pouco, devia ter matado, exonerado que fosse, mas puniu!”, contou. O ex-senador chamou também, para defender sua argumentação, o testemunho de um livro do ex-chanceler Mário Gibson Barbosa, no qual o diplomata relatou que Médici convocou uma reunião de ministros para dizer que não aceitava a tortura.

Para justificar suas afirmações em relação a Geisel, começa apontando pecados de origem do ex-presidente. “Vejam a diferença entre o italiano e o alemão. Médici, italiano e o Geisel, alemão. O Médici, para assumir o governo, exigiu a volta da eleição direta para governadores de Estado, reduziu o mandato dele para somente quatro anos e procurou pessoas para compor o seu governo que eram consideradas liberais – eu, o [Mário] Andreazza, o Delfim [Neto] e o [Hélio] Beltrão”, enumerou Passarinho. “O general Geisel colocou o Congresso em recesso e fez o que o [Paulo] Brossard [senador pelo então MDB do Rio Grande do Sul] chamou de Constituinte do Riacho Fundo [alusão ao sítio que era a residência oficial do presidente no período]. O Médici tinha deixado a eleição direta para governador e voltou a ser indireta; o Médici tinha deixado o mandato de quatro anos para presidente e passou a ser de seis anos, e entregou esse mandato para um general que acabava de ser promovido a quatro estrelas”, dizia, há oito anos (esse foi o chamado “Pacote de Abril” de Geisel, que também editou, por AI-5, uma reforma do Judiciário e mudanças na lei eleitoral que favoreciam o regime).

Geisel foi uma opção de sucessão que não agradou a Médici, segundo Passarinho. “Ele não tinha simpatia pelo Geisel porque não suportava o [general] Golbery [do Couto e Silva]. O Golbery fundou o SNI [Serviço Nacional de Informações] e em seguida, no governo Costa e Silva, o Médici assumiu. Quando Médici chegou lá para passar o serviço, as gavetas estavam vazias, porque o Golbery tinha levado todos os arquivos”, relatou. “O Médici não queria que Geisel o sucedesse porque temia que ele fosse levar o Golbery. Daí o Figueiredo [João Figueiredo, chefe do SNI de Médici e sucessor de Geisel na Presidência] assegurou para o Médici que o Golbery estava rompido com o Geisel. Quando o Geisel chegou, já trouxe o Golbery, que foi ser chefe da Casa Civil.”

O ex-ministro de Costa e Silva e Médici oscila quando fala da tortura, que marcou o período de Médici, principalmente. “Eu chamo esse período de guerra suja porque a Convenção de Genebra não funcionava para nenhum dos lados”, afirmou, há oito anos. E, na época, também rejeitou as interpretações de que o período militar foi o império do “mal”. “É preciso acabar com esse maniqueísmo: se houve erro, houve de parte a parte e uns foram consequência e outros foram causa.”

Nesse dia de março, Passarinho disse reiteradas vezes que não aprovava a tortura, mas tampouco o terrorismo. “Tudo o que aconteceu na luta armada deve aparecer dos dois lados. Eu coloco na mesma linha de crime hediondo não só a tortura, mas o terrorismo também”. Todavia, definiu as ações da guerrilha que vitimaram militares e civis como “ódio ideológico”; a tortura, como “tática”.

“A tortura desce da área propriamente intelectual e passa para a área tática, é a luta pela obtenção da informação. Aí aparecem os exagerados de ambos os lados”, afirma. Aí, Passarinho lembra o atentado no aeroporto de Guararapes, no Recife, em 1967, com saldo de 17 vítimas; e o atentado ao II Exército, com uma vítima fatal. “Qual é a diferença entre isso e a tortura? Não consigo diferenciar em termos de consequência, de hediondez.”

Duas horas depois de uma segunda entrevista – separada por oito anos da primeira -, Passarinho dá mostras de cansaço. A filha, Júlia, já ligou duas vezes. “É a policial da família, não queria que desse entrevistas”, diz, rindo muito. Ele se declara exausto. Mas continua falando por um tempo. Mais uma história, que puxa a outra – o ex-ministro adora contar histórias com todos os detalhes, como aquela que começa com a descoberta de um d. Helder Câmara ainda integralista, quando estava no colégio, em Belém, e termina com uma negociação secreta com o já bispo de esquerda, em Crato (PE), para evitar que uma greve de trabalhadores se alastrasse pelo Estado, quando era ministro do Trabalho.

E termina com a última: de como uma carta apócrifa, que atribui ao SNI de Golbery, tentava acusá-lo de corrupção por causa da venda de um apartamento, quando era ministro de Médici. Segundo ele, não teve nenhuma dificuldade para desmentir a acusação, já que o apartamento e a casa onde ainda hoje mora foram os únicos patrimônios adquiridos ao longo de toda a sua vida pública. Mas, deixa claro, ficou o ressentimento.

Texto do Valor, mas visto no blog do Luís Nassif.


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