O Financial Times vê o conflito na Geórgia
Conflito mostra primeira tentativa de ressuscitar a União Soviética
Charles Clover
Na terça-feira (12/08), o trecho de auto-estrada entre Tbilisi, a capital da Geórgia, e a cidade de Gori, que fica próxima à frente de batalha, contava a história triste do fim de um exército outrora orgulhoso.
Era possível ver dezenas de veículos vazios, que aparentemente foram abandonados quando o pânico tomou conta dos soldados georgianos durante a noite.
Equipamentos, incluindo metralhadoras, foram deixados nos veículos e espalhados ao longo da estrada. Havia pouquíssimos sinais de luta.
Somente um veículo foi atingido pelo fogo inimigo: um carro blindado retorcido e escurecido pelo fogo. O seu canhão estava jogado em um campo próximo.
O resto da destruição - dois caminhões pesados que colidiram de frente, vários tanques abandonados em depressões à beira da estrada e dezenas de caminhões vazios com as portas abertas - deveu-se ao puro medo. Os soldados que por lá circulavam evidentemente sabiam que qualquer veículo militar na estrada era um alvo potencial para a temida "aviatsia" russa. Melhor voltar a pé para Tbilisi do que morrer.
Foi o final humilhante de uma aventura militar - que teve início na última quinta-feira - espetacularmente mal concebida por Mikhail Saakashvili, o presidente georgiano. Na noite passada ele alimentou o pânico ao anunciar na televisão - falsamente, conforme ficou comprovado - que as tropas russas marchavam em direção à capital e ordenar o recuo das suas unidades.
Quando o presidente russo Dmitri Medvedev anunciou ontem a cessação das hostilidades, a Rússia estava no comando tanto da Ossétia do Sul quanto da Abkházia. Os russos destruíram a capacidade de combate georgiana e pareciam ter a intenção de derrubar Saakashvili, com uma boa chance de sucesso.
Foi o fim de uma semana de riscos sem precedentes assumidos pelos governos georgiano e russo, cada um deles tentando reescrever as regras referentes àquilo que poderiam fazer impunemente. Saakashvili apostou em uma ofensiva contra o enclave separatista da Ossétia do Sul, mas, em vez de desfechar um ataque rápido e preciso, transformou a operação em um uma balbúrdia sangrenta na noite da quinta-feira, quando tropas georgianas cercaram a cidade de Tskhinvali, bombardeando-a e matando até 2.000 pessoas.
O Kremlin também fez uma aposta quando fez com que o seu 58º exército cruzasse a fronteira para atacar um país apoiado pelos Estados Unidos.
Até mesmo as invasões soviéticas da Hungria, da Tchecoslováquia e do Afeganistão, os únicos precedentes para uma guerra deste tipo, foram feitas contra países que se encaixavam solidamente na esfera de influência de Moscou. A Geórgia é diferente: o seu governo pró-ocidental tem vínculos estreitos com Washington, conta com um presidente educado na Universidade Harvard e possui mais de cem assessores militares norte-americanos. Em termos de desrespeito flagrante ao status quo global, a operação tem poucos paralelos.
Mas enquanto a Geórgia apostou e perdeu, até o momento o cálculo da Rússia parece ter resultado em sucesso.
Ao atacar impunemente um aliado norte-americano que estava sendo cogitado para ingresso na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), o Kremlin demonstrou que a Rússia é a potência dominante na região. "Historicamente a Rússia foi e continuará sendo a garantidora da segurança dos povos do Cáucaso", afirmou Medvedev na semana passada.
Em outras palavras, parece que a Rússia subitamente passou a pertencer ao clube de elite formado pelos países que podem escrever as suas próprias regras. Da mesma forma como os Estados Unidos foram capazes de ignorar o repúdio generalizado à invasão do Iraque sob um falso pretexto - as inexistentes armas de destruição em massa de Saddam Hussein -, os líderes da Rússia puderam ignorar a pressão internacional referente a uma guerra que eles próprios ajudaram a provocar ao armarem e apoiarem os rebeldes sul-ossetianos.
"A Rússia está exigindo um papel totalmente novo, e este fato terá repercussões pelo mundo todo", afirma Dmitri Trenin, analista político do Centro Carnegie de Moscou. Ele vê como fortes provocações as recentes decisões da Otan de dar início a discussões a respeito do ingresso da Ucrânia e da Geórgia na Otan, bem como os planos dos Estados Unidos para a instalação de um sistema antimísseis na Europa Oriental. "A Rússia começará a enfrentar mais ativamente os Estados Unidos em todo o mundo. Esta atitude não existia um mês atrás - agora o clima é diferente. A Rússia deseja firmar a sua hegemonia regional".
Poucos duvidam que a ação militar na Geórgia é a primeira de uma série de medidas para reinstituir o controle de Moscou sobre a ex-União Soviética. O ingresso da Geórgia e da Ucrânia na Otan, algo que vinha sendo bastante cogitado no início deste ano, agora se tornou bastante improvável.
Tendo criado o precedente de defender os cidadãos russos com o uso de força militar - os sul-ossetianos vêm recebendo passaportes russos há dois anos - , o Kremlin poderia usar as mesmas técnicas do tipo dividir-e-conquistar na Criméia, a província ucraniana dominada por indivíduos de etnia russa, no norte do Cazaquistão, região também dominada pela etnia russa, ou nos Estados bálticos, que possuem grandes minorias russas. É quase certo que a Rússia tentará derrubar Saakashvili, tido por Moscou como um fantoche dos Estados Unidos, e substituí-lo por uma figura pró-Rússia. Viktor Yushchenko, o presidente pró-ocidental da Ucrânia tomará nota disso.
Recentemente o Kremlin procurou confrontar Washington em outras regiões, estabelecendo vínculos com regimes antiamericanos como a Venezuela, de Hugo Chávez, e Cuba, de Raúl Castro, e, ao mesmo tempo, aprofundando o relacionamento com a China para contrabalançar a força da Otan. No mês passado os dois países assinaram um acordo inédito de demarcação de fronteira.
Em face disso, a pressão norte-americana sobre a Rússia tem sido inefetiva. Moscou parece ter calculado corretamente que Washington não reagiria à sua invasão da Geórgia - já que os Estados Unidos estão emaranhados nas guerras no Afeganistão e no Iraque. Não se sabe se as "conseqüências" mencionadas em uma ameaça do vice-presidente dos Estados Unidos, Dick Cheney, alguns dia se materializarão.
Muitos acreditam que o governo georgiano também tem culpa pela guerra por ter atacado primeiro a Ossétia do Sul. "Creio que os Estados Unidos estão embaraçados pelo fato de Saakashvili ter ido além daquilo que Washington considerava uma política racional. Saakashvili tentou colocar os norte-americanos diante de um fato consumado. Mas a operação dele foi um desastre", afirma Trenin. "A resposta européia à crise da Geórgia tem sido heterogênea e marcada por críticas à Geórgia, bem como à Rússia, o que revela uma diferença profunda entre a percepção norte-americana e européia em relação à Rússia. Os europeus opõem-se às políticas de confrontação dos Estados Unidos e preferem não antagonizar Moscou. Muita gente na Europa dirá aos norte-americanos: 'Nós avisamos que vocês não podiam confiar nesse governo georgiano. Eles são como crianças brincando com fósforos no quintal, que acabaram se queimando bastante. Não faz sentido ir à guerra contra a Rússia por causa disso'".
Natalia Leschenko, da instituição de pesquisas políticas Global Insight,
afirma: "Os membros da União Européia dividem-se em duas linhas quanto à posição que a União Européia deveria adotar em relação à Rússia no que diz respeito à esta situação. Os novos membros, os Estados bálticos e a Polônia, exigiram rapidamente a imposição de regulamentações de vistos à Rússia e também a suspensão do Acordo de Parceria e Cooperação (entre a Rússia e a União Européia), que ainda não está em vigor. Já os membros mais antigos da união não vêem sentido na suspensão do diálogo com a Rússia".
Em outras palavras, Moscou obteve uma acachapante vitória militar, a um custo surpreendentemente baixo no que se refere à sua posição internacional. "Os Estados Unidos estão a ponto de perder um aliado, e não há muito que possam fazer, a menos que os russos cometam um erro mais sério como um bombardeio em grande escala contra Tbilisi ou o envio de tropas terrestres a Gori", diz Trenin, referindo-se à cidade georgiana ao sul da Ossétia do Sul. "Em tal caso os Estados Unidos teriam uma justificativa para agir. Mas do jeito que as coisas estão eles nada podem fazer".
Tal ousadia seria impensável há apenas alguns anos, logo após o colapso da União Soviética. Mas a Rússia passou por uma surpreendente transformação nos últimos oito anos sob o governo de Vladimir Putin, que neste ano deixou o cargo de presidente para tornar-se primeiro-ministro.
O liberalismo pró-ocidental da década de 1990 ficou desacreditado e os símbolos que o governo usa para se autodefinir são cada vez mais aqueles do império - a cruz ortodoxa da Rússia imperial czarista e a estrela vermelha da União Soviética. O "patriotismo" anda por toda parte como ideologia de Estado mal definida, sendo estimulado por uma mídia cada vez mais controlada pelo Estado.
Na década de 1990 o Kremlin era bem mais vulnerável às pressões internacionais, já que devia aos credores internacionais e estava ansioso para ser incluído no "Ocidente", com todas as obrigações morais implícitas em tal inclusão. Mas agora a Rússia exibe autoconfiança econômica, possuindo a terceira maior reserva de moeda estrangeira do mundo e exibindo um grande superávit da balança comercial alimentado pelo petróleo e o gás.
Enquanto isso, o relacionamento do país com o Ocidente tornou-se mais ambivalente, sendo que muita gente na Rússia acredita - de maneira similar ao movimento eslavófilo do século 19, que floresceu nos salões da São Petersburgo imperial - que o país tem uma missão própria e especial, não necessitando imitar o Ocidente.
Houve também uma transformação das forças armadas russas sob Putin, que assumiu a sua presidência no período marcado pelo episódio mais negativo referente à capacidade bélica da Rússia: o desastroso afundamento acidental do submarino nuclear Kursk, em 2000, devido a um torpedo defeituoso. A catástrofe do Kursk revelou como era grave o negligenciamento das forças armadas, e desde então o Kremlin fez do Exército uma prioridade. Há alguns anos, uma invasão da Geórgia seria simplesmente uma impossibilidade prática para um exército sucateado e desmoralizado pelas prolongadas campanhas na Tchetchênia e a falta de verbas.
O verdadeiro custo da campanha militar russa na Geórgia é desconhecido, mas ele pareceu ser um exemplo clássico de operação bélica moderna. "Os russos estão nitidamente usando o modelo da campanha dos Estados Unidos na Iugoslávia, em 1999", explica Trenin. O Kremlin efetuou bombardeios de grande altitude para castigar as forças georgianas até que elas recuassem, de forma semelhante ao que a Força Aérea dos Estados Unidos fez contra os sérvios no Kosovo.
Não há dúvida de que a Rússia espera que a imposição de uma grande derrota militar a Saakashvili jogue a opinião pública decisivamente contra ele, e que o povo georgiano faça o resto do trabalho para derrubá-lo. Sergei Lavrov, o ministro das Relações Exteriores da Rússia, disse na terça-feira que o seu país não está procurando depor Saakashvili, como o presidente georgiano alegou publicamente em uma entrevista à televisão. No entanto, ele frisou que Moscou gostaria que Saakashvili renunciasse ao cargo.
"Seria melhor se ele fosse embora" disse Lavrov em uma coletiva à imprensa. "Não confiamos na atual liderança georgiana".
Os georgianos, que inicialmente apoiaram Saakashvili, e que continuam unidos no seu ódio a Moscou, estão questionando cada vez mais o cálculo do seu presidente. Embora na terça-feira 150 mil pessoas tenham saudado Saakashvili em frente ao parlamento da Geórgia, havia gente reclamando por toda parte. "Por que fomos à guerra sem armas? Por que fomos à guerra sem sistemas anti-aéreos? Quem precisava desta guerra?", criticou Timur Goldelashvili, um morador de Gori.
Apenas algumas horas após o cessar-fogo russo ter passado a vigorar, surgiram na mídia georgiana notícias de que Nino Burjanadze, a ex-primeira-ministra que recentemente desentendeu-se com Saakashvili, indicava que pretendia desafiar o presidente.
"Este não é o momento de fazer ataques políticos... quando os russos estão a apenas alguns quilômetros da nossa capital", afirmou ela. "Mais tarde haverá tempo para determinar responsabilidades e culpas".
Tradução: UOL
O texto é do The Financial Times, reproduzido no UOL. O viés é levemente à direita, mas é um dos mais equilibrados que pude ler a respeito dos recentes episódios envolvendo Geórgia e Rússia.
Marcadores: Estados Unidos, EUA, Geórgia, imperialismo, imperialismos, Rússia
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