segunda-feira, dezembro 31, 2007

Feliz 2008

É o que lhes deseja este blogueiro. Pois, afinal, enquanto há vida, há esperanças.

Marcadores: ,

sexta-feira, dezembro 28, 2007

Saudades de 1968

Vem aí a Sessão Saudade de 1968

FALTAM cinco dias para o início da efeméride dos 40 anos de 1968. Os sessentões revisitarão aquele grande ano da aurora de suas vidas, que o tempo não traz mais. Virão as doces lembranças das passeatas e dos festivais de música, até o amargo desfecho da noite de 13 de dezembro, quando a ditadura militar escancarou-se.
Há uma aura mágica em torno de 1968, como se tivesse sido um ano que mudou o mundo. Ele teve muitos acontecimentos inesquecíveis, mas poucos resultados. No Brasil, começou na rua e terminou na sala de jantar do Palácio das Laranjeiras, onde se baixou o AI-5. Na França, teve a revolta dos estudantes em maio e a vitória eleitoral do presidente imperial Charles de Gaulle em junho. Nos Estados Unidos, destroçado pela impopularidade da Guerra do Vietnã, o presidente Lyndon Johnson anunciou em março que não disputaria um novo mandato e, em novembro, foi eleito o republicano Richard Nixon. Em agosto a União Soviética invadiu a Tchecoslováquia, acabando com o que se denominara de Primavera de Praga.
O historiador inglês Tony Judt matou a charada: "Os anos 60 foram a grande era da teoria". Os fatos perderam importância, substituídos pelo que se supunha ser a grande compreensão dos fenômenos. Havia até a expressão "racionar em bloco".
A sacralização de 1968 omite o culto dos jovens rebeldes à violência das massas. Exemplo disso foi o apoio recebido pela Revolução Cultural de Mao Zedong. Da mesma forma, fazia-se de conta que os valentes vietcongs seriam incapazes de instalar uma ditadura que levaria centenas de milhares de pessoas a fugir do país em jangadas de junco.
Até a utopia rural de Pol Pot no Camboja tinha seu charme.
O grande ano da segunda metade do século passado não foi 1968, mas 1989. O colapso do império soviético e a destruição do regimes socialistas europeus, bem como a inviabilização dos projetos bicentenários de revolução política e social redesenharam o mundo. Foi 1989 que permitiu aos revolucionários de 1968 a acomodação de suas idéias e biografias ao século 21. (Numa perfídia dos algarismos, 89 é 68 invertido e de cabeça para baixo.)
A brutalidade da ditadura militar cobriu com um manto sagrado a natureza autoritária dos projetos de quase toda a esquerda brasileira.
Passado o tempo, essas militâncias são explicadas a partir da idéia de que aquela foi uma geração que correu atrás de um sonho. Tudo bem, pois ninguém pode discutir com uma pessoa que teve um sonho há 40 anos.
A sacralização do 1968 brasileiro tem seu melhor momento na gloriosa passeata dos Cem Mil, ocorrida no Rio de Janeiro, na tarde de 26 de junho de 1968. É pena, mas por mais que ela tenha assustado os generais, foi outro fato quem levou todas as águas do São Francisco para a moenda da ditadura escancarada. Naquela madrugada, um comando da VPR jogara um veículo com explosivos contra o portão do QG do 2º Exército, em São Paulo, matando o sentinela Mário Kozel Filho.
No Brasil, 1968 foi o ano de um terrível desencontro provocado pela radicalização política. Talvez não pudesse ser evitado mas, ao contrário de 1989, teria sido melhor que não tivesse existido.

Texto do jornalista Elio Gaspari, na Folha de São Paulo, de 26 de dezembro de 1968.

Marcadores: , , ,

quinta-feira, dezembro 27, 2007

Oligarquia aposta na desestabilização institucional na Bolívia

Oligarquia aposta na desestabilização institucional na Bolívia

Escrito por Max Altman
17-Dez-2007

O presidente Lula estava coberto de razão quando exclamou em Buenos Aires, em uma das cerimônias da posse de Cristina Kirchner, que Evo Morales “foi a coisa mais extraordinária que aconteceu recentemente na América do Sul”. Poderíamos acrescentar que para a Bolívia foi a coisa mais extraordinária que aconteceu em seus cinco séculos de existência.

Uma história de espoliação

A Bolívia tinha muita prata nas minas das montanhas de Potosi. Na época colonial, a prata de Potosi foi, durante mais de dois séculos, a principal alavanca do desenvolvimento capitalista da Europa. "Vale um Potosi", dizia-se, para elogiar o que não tinha preço. Em meados do século dezesseis, a cidade mais povoada, mais cara e que mais esbanjava no mundo brotou e cresceu ao pé da montanha que manava prata. Essa montanha, o chamado Cerro Rico, devorava índios. As comunidades se esvaziavam de homens, que de todas as partes marchavam prisioneiros, rumo à boca que conduzia aos buracos escavados. Do lado de fora, temperaturas de gelo. Do lado de dentro, o inferno. De cada dez que entravam, somente três saíam vivos. Mas os condenados à mina, que pouco duravam, geravam a fortuna dos banqueiros flamengos, genoveses e alemães, credores da coroa espanhola, e eram esses índios que faziam possível a acumulação de capitais que converteu a Europa no que a Europa é. O que ficou na Bolívia, de tudo isso? Uma montanha oca, cheia de buracos, uma incontável quantidade de índios assassinados por extenuação e uns quantos palácios habitados por fantasmas.

No século dezenove, quando a Bolívia foi derrotada na chamada Guerra do Pacífico, não só perdeu sua saída ao mar e ficou encurralada no coração da América do Sul. Também perdeu seu salitre. A história oficial, que é história militar, conta que o Chile ganhou essa guerra; mas a história real comprova que o vencedor foi o empresário britânico John Thomas North, Sem disparar um tiro nem gastar um centavo, North conquistou territórios que haviam sido da Bolívia e do Peru e se converteu em um dos homens mais ricos do mundo, no “rey del salitre”, que era então o fertilizante imprescindível para alimentar as cansadas terras da Europa. Saiu todo o salitre da província de Antofogasta, então pertencente à Bolívia, ficaram os buracos, e os salitreiros na miséria.

No século vinte, a Bolívia foi o principal abastecedor de estanho no mercado internacional.

Na profundidade dos buracos escavados nas montanhas de Huanuni, Oruro, o implacável pó de salitre matava por asfixia. Os pulmões dos trabalhadores apodreciam para que o mundo pudesse consumir estanho barato. Durante a Segunda Guerra Mundial, a Bolívia contribuiu à causa aliada vendendo seu mineral a um preço dez vezes mais baixo que o preço de sempre. Os salários dos trabalhadores se reduziram a nada, houve greve, as metralhadoras dispararam fogo. Simón Patiño, dono do negócio e amo do país, não teve que pagar indenizações, porque a matança por metralha não é acidente de trabalho. Don Simón pagava cinqüenta dólares anuais de imposto de renda, mas pagava muito mais ao presidente da nação e a todo o seu gabinete. Vivia entre Paris e Londres onde se refinava o estanho. Suas netas e netos ingressaram na nobreza européia. Casaram-se com condes, marqueses e parentes de reis. Quando a revolução de 1952 destronou Patiño e nacionalizou o estanho, era pouco o mineral que restava. Ficaram os buracos, e os mineiros imersos na secular miséria (1).

A Bolívia está cheia de gás e petróleo. Seu povo, cansado de séculos de exploração, miséria e racismo, contudo, escaldado dos buracos deixados pela predatória exploração de suas riquezas naturais, resolveu eleger o índio aimara, Evo Morales. E o fez com a expressiva votação de 53,74%, porque Evo prometeu e cumpriu anterior plebiscito, nacionalizando o gás e o petróleo. Hoje, passado ano e meio, só com esta medida a receita fiscal passou de 300 milhões para 2 bilhões de dólares anuais. E mais, porque Evo prometeu que uma nova constituição iria refundar a Bolívia, pacífica e democraticamente, garantindo os direitos das populações indígenas, majoritárias no país, dos mineiros, dos trabalhadores e do povo em geral, modernizando o Estado. Aprovada em referendo a Constituinte, convocaram-se eleições gerais para a Assembléia Constituinte e novamente os apoiadores de Evo Morales, o partido Movimento ao Socialismo (MAS) e partidos menores aliados, alcançaram a maioria, 164 de 255 deputados constituintes. Estabeleceu-se um prazo para que os trabalhos constituintes se completassem e a nova Constituição fosse levada a referendo popular.

Mas as oligarquias brancas da Bolívia não toleram que um índio os governe e governe a nação. Não engoliram a nacionalização do gás e do petróleo, porque isso implicou em barrar os muitos negócios escusos que se faziam com as grandes corporações. Não admitem uma carta magna em que nações indígenas sejam reconhecidas e tenham sua própria autonomia. As oligarquias não querem perder os seus seculares privilégios e vão até as últimas conseqüências, a força bruta inclusive, para mantê-los.

Os boicotes à Constituinte

As classes exploradoras costumam alardear a defesa da liberdade e da democracia, porém, quando os seus interesses são atingidos, mandam às favas a democracia, sem a menor cerimônia. Dizem que democracia não é só o voto, que um de seus pilares é o respeito às minorias. Todavia, a minoria deve também respeitar a maioria e é esta quem governa.

A oposição, baseada nos governadores eleitos – antes eram nomeados pelo poder central - para 5 das 9 províncias do país, e no partido de direita Podemos, largamente derrotado nas últimas eleições presidenciais, começou por boicotar os trabalhos da Constituinte alegando inúmeros pretextos: a questão da maioria qualificada para aprovar artigo por artigo da Constituição – pelo regulamento aprovado, são necessários dois terços dos constituintes para aprová-los e o MAS mais os partidos aliados não atingiam essa cifra; a disputa pela capital do país entre Sucre e La Paz, uma divergência histórica. Passou-se mais de ano e os trabalhos constituintes não saíam do impasse.

Aproximando-se do prazo fatal de sua promulgação, os constituintes foram convocados a se reunir em Sucre na Assembléia local para dar continuidade aos trabalhos. Uma violenta manifestação organizada pelos comitês cívicos, compostos, liderados e apoiados pela oligarquia, ameaçou fisicamente os constituintes e, nos embates de rua, resultaram três mortos, fato ainda a ser esclarecido. Diante da grave ameaça à incolumidade física dos constituintes, a Assembléia se transferiu a um quartel onde o texto geral foi aprovado por 138 dos 255 constituintes. A oposição radical, liderada pelo ex-presidente Quiroga, líder do partido Podemos, boicotou a sessão. Foi designada nova sessão para 8 de dezembro – o prazo fatal das conclusões dos trabalhos era 14 de dezembro –a fim de se discutir artigo por artigo na Universidade de Oruro. A oposição mais radical de novo a boicotou, embora alguns poucos de seus membros resolvessem comparecer: 164 foram os presentes nessa nova sessão. Eram 64,3% da composição total e faltavam 2,3%.

Diante da postura antidemocrática, chantagista e provocadora da oposição, os constituintes presentes resolveram que aos artigos passassem a ser aprovados por dois terços dos presentes. Legítima e democrática reação. A voz do povo clamada reiteradamente em praça pública e nas urnas tinha de ser ouvida. A campanha vitoriosa à presidência de Evo pregou exaustivamente a convocação de uma Constituinte. Em referendo específico o povo a confirmou. Foram convocadas eleições constituintes para que os deputados eleitos escrevessem uma nova constituição. Era uma ordem do povo de quem emana, numa democracia, todo o poder. E foi aprovada a Constituição que será levada a referendo confirmatório, com uma única questão, a das terras, a ser dirimida no mesmo pleito.

O fundamentalismo reacionário da direita

Nesse momento, desencadeou-se o fundamentalismo reacionário e o radicalismo da direita e da oligarquia boliviana: a chantagem da secessão dos estados de Santa Cruz, Beni, Pando, Tarija e Cochabamba, cujos governantes se opõem raivosamente a Evo, tendo um deles, Rubem Costas, governador de Santa Cruz, dito que “aquela constituição, aprovada sob a mira de fuzis, não passa de um papel higiênico usado, e bem usado”; a greve de fome iniciada por alguns dos oposicionistas tentando sensibilizar a população; grupos juvenis fascistas armados de Santa Cruz de la Sierra que agridem comerciantes e populares que não compactuam de suas idéias e ordens; listas de nomes são coladas às paredes e postes denunciando a “traição” dos parlamentares que compareceram às discussões na constituinte.

Os opositores são cada vez em número menor, mas cada vez mais violentos. Contam em sua ação com o apoio político e logístico da embaixada norte-americana em La Paz. Não são as regiões que querem autonomia e sim alguns dirigentes dessas regiões. O povo quer a unidade nacional, também já expressa em voto.

Desesperada, a oligarquia aposta na desestabilização, no caos institucional e na derrubada do governo. Seus representantes foram bater às portas do quartel. Receberam uma resposta pública, tendo o Comandante Geral das Forças Armadas, general Wilfredo Vargas, ratificado seu respaldo ao presidente legítimo da nação boliviana: “As Forças Armadas não cederão diante das insinuações golpistas daqueles que promovem a violência, a partir de seus feudos”. Do exterior, pela voz dos presidentes, transcrita na Declaração de Buenos Aires, a Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Honduras, Paraguai, Uruguai e Venezuela também saíram em defesa de Evo, expressando solidariedade com o povo e o governo, manifestando confiança na capacidade das forças políticas bolivianas para manter um clima de diálogo e entendimento, rejeitando tentativas de enfraquecer a estabilidade das instituições e do governo eleito democraticamente.

Evo vem insistindo publicamente no diálogo, tendo proposto inclusive uma trégua natalina. Porém, se a oposição desprezar o diálogo e, apoiada na mídia ativamente a seu favor, insistir no plano golpista da sedição, do desabastecimento, do separatismo, do caos e da derrubada do governo, o governo Evo Morales, com base em sua legitimidade e apoiado pelos mineiros, camponeses, trabalhadores urbanos, pelos sindicatos e forças populares organizadas, tem o dever e o direito constitucional, valendo-se, se preciso, do uso da força, de impedir a sedição, o separatismo e o golpe de Estado, garantindo a unidade nacional, a democracia, as liberdades e a ordem pública.



(1) Eduardo Galeano in O país que quer existir (artigo de 1993)



Max Altman é advogado e militante petista.

Texto do Correio da Cidadania.

Marcadores: , , ,

domingo, dezembro 23, 2007

Adoração dos Magos - Feliz Natal!


Feliz Natal!

Marcadores: ,

sexta-feira, dezembro 21, 2007

Erro impede que Brasil suba no ranking do IDH

A ONU escolheu o Brasil como palco para apresentar ao mundo seu novo Relatório de Desenvolvimento Humano, mas cometeu, involuntariamente, uma injustiça com os anfitriões do evento. Graças a um erro metodológico, o país caiu no ranking da qualidade de vida do mundo - mas deveria ter subido.

O relatório divulgado hoje, com dados de 2005, mostra que o Brasil atingiu exatamente a "nota" mínima (0,800 numa escala de zero a um) para entrar no clube países de "alto desenvolvimento humano". A nota em questão é o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), adotado pela Organização das Nações Unidas para medir e comparar o progresso social em diferentes países.

De 2004 para 2005, o IDH do Brasil subiu de 0,792 para 0,800 - evidência de que houve avanços nos quesitos renda, educação e longevidade. Mas, no ranking oficial, o país caiu da posição 69 para a 70. Sinal de que outros países melhoraram mais? Nada disso.

Terra Magazine revisou as contas da ONU e descobriu uma distorção. Os cálculos foram feitos com base no "PIB velho" do país, ou seja, não levaram em conta a mudança de metologia do IBGE, promovida em março deste ano, que revelou um país mais rico - ou menos pobre - do que se imaginava (leia aqui). O FMI já cometeu esse erro (leia aqui), mas depois se corrigiu (leia aqui).

Leia também:
» IDH correto pode variar de 0,802 a 0,808

A ONU também não atualizou os dados sobre analfabetismo - nesse caso, porém, o procedimento afetou a nota de quase todos os países, e não apenas do Brasil.

Com base no recálculo do PIB, Terra Magazine já havia anunciado há oito meses a entrada do Brasil no (atenção, leitores: ativar sensores de ironia) "primeiro mundo da área social" (leia aqui).

Mas qual é o IDH correto? Aí há números para todos os gostos, de acordo com a metodologia empregada (leia aqui). Na pior das hipóteses, o índice sobe para 0,802. Na melhor delas, salta para 0,808 e nos coloca na honrosa posição de 64º melhor lugar do mundo para se viver (desativar sensores de ironia).

A salada metodológica é uma evidência de que o ranking do IDH não deve ser encarado como verdade absoluta - alguém aí acredita que dados estatísticos da Islândia e da Serra Leoa são colhidos com o mesmo rigor científico? (Antes que nos acusem de preconceito, esclarecemos que são, respectivamente, o primeiro e o último colocados na lista.)

Tomemos como outro exemplo o curioso desempenho de Rússia, Índia e China, três países que, juntamente com o Brasil, formam o chamado grupo dos Brics, estrelas do mundo emergente. Apesar de seu fantástico crescimento econômico, a China permaneceu na mesma posição nos dois últimos rankings anuais (81ª). Rússia e Índia, por sua vez, caíram (de 65ª para 67ª e de 126ª para 128ª).

Não se trata aqui de desmoralizar o IDH, mas essas evidências mostram que o índice é muito mais útil para avaliar a evolução de um país ao longo do tempo (mesma metodologia, mesma qualidade dos dados) do que para comparar diferentes nações (infinidade de metodologias, diferenças na confiabilidade das informações).

E o que exatamente a evolução dessa nota revela sobre o Brasil? E o que não revela? Vamos por partes:

1) Brasileiros estão vivendo mais

Um dos fatores avaliados para definir a qualidade de vida de um país é a longevidade - mais exatamente, a expectativa de vida ao nascer, ou a projeção do número médio de anos que irão viver os cidadãos nascidos em um determinado ano. Segundo o Pnud, órgão da ONU que calcula o IDH, os brasileiros tinham em 2005 uma expectativa de vida ao nascer de 71,7 anos. Em 2004, eram 70,8 anos, e, em 2000, 67,7 anos. Esse aumento da longevidade é um indicativo de melhoras no acesso a alimentação, saúde e saneamento.

2) Brasileiros têm mais acesso à educação

Também pesam no cálculo do IDH a taxa de alfabetização de adultos e a taxa de escolarização, que mede o percentual de pessoas matriculadas no nível de ensino adequado para sua idade. No Brasil, de 2004 para 2005, o analfabetismo caiu de 11,4% para 11% - mas, curiosamente, essa evolução não foi registrada no relatório do Pnud. O relatório captou, porém, uma queda no percentual de pessoas em idade escolar fora das escolas e universidades (de 14% para 12,5%).

A ressalva é que ambos os dados são meramente quantitativos - ou seja, o índice não diz nada a respeito das diferenças entre os países no quesito qualidade do ensino, por exemplo.

3) Renda de brasileiros aumenta

Por fim, também a renda influi no cálculo do IDH. Mais especificamente, a renda per capita com base na paridade do poder de compra (PPC). Esse índice serve para comparar o poder aquisitivo em diferentes países, e leva em conta não apenas a renda, mas os preços de uma cesta de produtos - afinal, não dá no mesmo, em termos de poder de compra, receber um salário de US$ 1.000 nas já citadas Islândia e Serra Leoa.

Mesmo levando em conta apenas o "PIB velho", o relatório do IDH mostra que a renda dos brasileiros aumentou, entre 2004 e 2005, de US$ 8.195 PPC para US$ 8.402 PPC.

O que o IDH não mostra é a forma como a renda é distribuída - dois países com a mesma renda per capita podem ser completamente distintos se, em um deles, a elite abocanha a maior parte da riqueza.

E o Brasil, apesar de ter reduzido a desigualdade nos últimos anos, continua sendo um dos campeões da concentração de renda. Em 2005, os 10% mais ricos abocanhavam 44,8% do PIB, e os 10% mais pobres, apenas 0,9%.

(Observação: Terra Magazine alertou há mais de um mês o escritório do PNUD em Nova York sobre a possibilidade de erro no IDH do Brasil. O alerta foi feito por email, no dia 23 de outubro)

Texto do Terra Magazine.


Marcadores: , , , ,

Zôo Brasil

Zôo Brasil

SÃO PAULO - "Crescimento tira milhões das classes D e E". Era esse o título da reportagem de Fernando Canzian na Folha de domingo. Com base em dados do Datafolha, constatava que nos últimos cinco anos, sob Lula, cerca de 20 milhões de brasileiros passaram à classe C. E explicava: primeiro, em decorrência da expansão de programas sociais e previdenciários; de um ano e meio para cá, foi sobretudo o crescimento que elevou o consumo dos mais pobres. Boa notícia.
Ainda que essa divisão por "classes" seja um instrumento de mercado -e não um indicador social, mais efetivo para aferir a melhoria estrutural das condições de vida-, ninguém de boa-fé vai tomar um avanço por estorvo ou coisa ruim.
Recorde-se que a era FHC também havia "incluído" uma legião de banguelas e neocomedores de frango na fase heróica do real. A moeda derreteu e eles voltaram a ser pó.
O Brasil tem suas manhas. O próprio Fernando Canzian, na sua coluna desta semana na Folha Online, tratou de relacionar as boas novas do consumo com aquilo que presenciou no sábado à noite, ao assistir a um show na Rocinha. Vale ler.
O relato da onipresença aterrorizante do tráfico basta para dissolver a convicção de que algo melhora no Brasil. Não é um caso isolado. É só abrir o jornal ou andar pela rua para acumular evidências diárias do que nos afasta da vida civilizada. Que progresso -que país é este?
Haverá muitas respostas. A que mais me convence (e fascina) é a do sociólogo Francisco de Oliveira, num grande ensaio de 2003: somos o ornitorrinco, animal improvável, nem isso nem aquilo, meio réptil meio mamífero, achado alegórico para uma sociedade que não é mais subdesenvolvida, mas tampouco se tornou uma sociedade avançada e decente -nem se tornará.
A figura do ornitorrinco sugere que o progresso, entre nós, carrega consigo conseqüências socialmente regressivas, as quais também definem nossa modernidade arrevesada. Serve ao menos como antídoto à idéia ingênua de que nos aproximamos do Primeiro Mundo no grande varal da história universal.

Texto de Fernando Barros e Silva, na Folha de São Paulo.

Marcadores: ,

Colônia



Citação de JOSÉ EDUARDO AGUALUSA, vista na Luz de Luma.

Marcadores: ,

segunda-feira, dezembro 17, 2007

O que salva é a política

Recentemente, analistas da política venezuelana constataram a dificuldade da oposição firmar um discurso, devido ao fato de que nenhuma plataforma política será viável se não tiver um forte viés no social. E o social foi empalmado por Hugo Chávez.

A recente pesquisa CNI-Ibope mostrou a mesma coisa. No quesito o que os brasileiros esperam de Lula em 2008, deu os seguintes pontos:

1. 43% Melhorar o salário mínimo
2. 36% Melhorar as áreas de saúde e educação
3. 32% Combater a criminalidade
4. 21% Reduzir os impostos
5. 14% Controlar a inflação
6. 11% Ampliar os programas sociais, como o Bolsa Família
7. 11% Ampliar os programas de habitação / moradia popular
8. 10% Reduzir os gastos públicos

***

Não fosse esse poder da política, jamais haveria força capaz de romper o círculo de atraso-juros imposto pela financeirização da economia. A lógica da financeirização é cruel. O objetivo único é garantir a solvência nas contas internas.

O tamanho dos juros não é dado pelas expectativas de inflação - como se apregoa -, mas pela capacidade de gerar superávit. É batata! Se o país puder pagar 30 de juros, a taxa Selic será calibrada para que pague 30 – independentemente dos demais fatores da economia. Se puder pagar 20, calibra-se para 20.

***

Toda a parafernália teórica brandida por cabeças-de-planilha, fundadas em clichês que sempre se repetem, visa meramente conferir um ar supostamente científico a demandas eminentemente políticas e anti-sociais.

É um jogo de cena fantástico! Quando foi aprovado pela primeira vez o IPMF (precursor da CPMF) a promessa era de que todos os recursos se destinariam à saúde. Era balela! O governo FHC mandou o IMPF para a saúde e descontou, do orçamento, o valor correspondente. O resultado foi que a carga tributária aumentou, mas os repasses para saúde continuaram do mesmo tamanho.

***

Depois disso, foram anos e anos de DRU (Desvinculação de Receitas Orçamentárias) que retiraram recursos da saúde, da educação, da área social para destinar ao pagamento de juros.

No primeiro governo FHC, os juros criaram uma dívida interna monumental. O mercado considerou que a dívida foi criada porque o governo foi fiscalmente irresponsável. Qualquer analista sério diria que a irresponsabilidade estava nos níveis de juros. Para os cabeções, a irresponsabilidade estava em não cortar de outras áreas o suficiente para bancar o nível de juros.

***

O segundo governo FHC foi um deserto, um desastre continuado, com redução de verbas para todos os programas relevantes, manutenção da DRU, contingenciamento orçamentário. Mas é saudado como um governo responsável... porque os credores da dívida pública não correram risco de não receber os juros absurdos oferecidos.

***
Esse mesmo modelo prosseguiu no primeiro governo Lula. O resultado de três gestões irresponsáveis foi a queda da qualidade da educação, saúde, o desmonte da estrutura viária, a falta de investimentos em energia, logística.

Essa camisa-de-força só foi rompida recentemente com o PAC (Plano de Aceleração do Crescimento), ao definir que as obras ali incluídas estariam a salvo do contingenciamento, e ao colocar meio ponto percentual do PIB fora do cálculo de superávit fiscal.

Avançou-se. Mas os juros continuam consumindo a parte mais expressiva da arrecadação tributária.


Mais um texto do Luís Nassif.



Marcadores: , , , , , , ,

domingo, dezembro 16, 2007

A CPMF e a pequenez nacional

A derrota do governo, no episódio da renovação da CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira) traz inúmeras lições.

A primeira é sobre a excepcional falta de criatividade e de despreendimento nos momentos de grandes impasses. O governo não queria estabelecer limitações às formas de aplicar os recursos. A oposição não queria mais recursos, que pudessem melhorar a governabilidade. Prova de que não há nada mais parecido com o PT na oposição do que o PSDB; e nada mais parecido com o PSDB na situação do que o PT.

***

O impasse poderia ter permitido inúmeras saídas consensuais, que ajudassem a aplacar o radicalismo das próximas eleições e passassem à opinião pública uma imagem mais produtiva dos partidos políticos.

A aprovação poderia ser amarrada ao compromisso formal de redução dos encargos trabalhistas. Ou à redução de outros tributos terríveis, como o Pis-Cofins, amarrado à melhoria da arrecadação federal. Poderia ter significado garantia de recursos à saúde e tudo o mais.

Nada a oposição propos; com nada o governo se comprometeu. Sobreveio o impasse.

***

A segunda consequência será a precipitação dos embates internos no PSDB. Único partido com condições de enfrentar o PT nas próximas eleições, o PSDB é um tucano partido ao meio.

Em tempos de paz, os verdadeiros comandantes do partido são os governadores. Por várias razões interessa a eles conviver pacificamente com o governo federal. Primeiro, pela perspectiva de colaboração, que deve marcar um país federativo. Depois, para não ter que enfrentar um líder carismático como Lula, em uma eleição polarizada. Finalmente, para não herdar um país conflagrado, em caso de vitória.

***

Na outra ponta, estão os ex, ex-presidente como Fernando Henrique Cardoso, ou senadores de futuro político incerto, como esse truculento Arthur Virgílio. Eles só crescem em ambiente de guerra. A FHC interessa a guerra para ampliar seu espaço no PSDB e interessa que o governo Lula afunde, pois só assim – pelo efeito-comparação – poderia aspirar um julgamento mais benevolente da história para seu governo.

Ao contrário de outros ex-presidentes, como Itamar Franco, José Sarney e Fernando Collor, FHC é um ex dotado de nenhuma grandeza, de nenhuma responsabilidade cívica.

Serra e Aécio estão aguardando para se posicionar mais perto das eleições. Correm o risco de herdar um partido exangüe. Se a CPMF não for restaurada, cada problema do governo Lula, cada investimento que deixar de ser feito, cada piora nas áreas sociais terá responsáveis diretos: o PSDB, seus senadores e FHC.

Havia receio de que a aprovação da CPMF pavimentasse o sucesso do governo Lula. Agora, qualquer fracasso terá um responsável direto: a oposição.

***

Os ecos dessa votação serão ampliados com o tempo. Ajudará a reforçar o discurso de que o governo Lula está sendo vítima de uma “conspiração das elites” - apesar da verdadeira elite, o mercado financeiro, nunca ter ganhado tanto.

De qualquer modo, saem divididos o país, a oposição e qualquer veleidade da opinião pública sobre a qualidade dos nossos homens públicos.

CPMF e Selic

Em qualquer economia racional, a derrubada da CPMF levaria o Banco Central a reconsiderar a questão da taxa Selic, que definr o patamar de remuneração dos títulos públicos. Se a carga de juros já era elevadíssima, com o corte da CPMF a necessidade de superávit primário aumentará mais ainda. Por isso mesmo, quanto maior o peso dos juros, maior a percepção de risco no Brasil. O natural seria a queda da Selic.


Da coluna de economia do Luís Nassif.

Marcadores: , , , , ,

A Oposição sou eu

Na entrevista que me concedeu para o livro “Os Cabeças de Planilha”, Fernando Henrique Cardoso se dizia muito consciente da importância de um acordo nacional. Mas reclamava que Lula nunca o procurava. Se o convidasse ele se sentaria à mesa e acertariam o acordo.

Por trás das declarações, estava claro que não existiria acordo, para ele, que não passasse pelo reconhecimento de seu papel de líder inconteste da oposição.

Hoje, nos jornais, é claro o jogo. Matéria da “Folha” com Arthur Virgílio em que ele admite que todos seus passos foram dados consultando Fernando Henrique.

No “Estadão”, em matéria de Carlos Marchi, FHC se apresentando como líder da oposição.

O veterano e competente Marchi inicia a matéria assim: “Em vez de se vangloriar da derrota que ajudou a impor ao governo, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso acenou ontem com a bandeira da paz: em nota distribuída durante o dia, afirmou que “é o momento de governo e oposição, pensando no Brasil, deixarem de lado as picuinhas e se concentrarem na análise e deliberação do que é necessário fazer”.

Fala sério! Olha a continuação da matéria:

“Durante o dia, FHC rejeitou cumprimentos pela vitória. A amigos, revelou duas razões para não comemorar o triunfo oposicionista: por um lado, pareceria provocação ao governo derrotado; por outro, deixaria mal os governadores José Serra (SP) e Aécio Neves (MG), que defenderam o apoio do PSDB à prorrogação da CPMF.

“Não é o momento de colher louros”, comentou um amigo que conversou com FHC ontem. “Mas é o momento de convencer o governo a aceitar uma negociação substantiva”, completou outro”.

Para quê Marchi precisa ouvir os amigos de FHC para saber o que ele pensa? É evidente que ele conseguiu captar uma conversa de FHC com seu próprio ego.

“Na visão do ex-presidente, os dois lados, governistas e oposicionistas, não podem perder nem um dia na contabilidade de perdas e ganhos: devem construir já uma agenda nacional que tenha repercussão na compreensão popular” – e que, obviamente, tenha ele no centro das articulações.

Ele mesmo escalou, na nota, o tema número 1 dessa nova agenda - a reforma tributária. “Era evidente, há tempos, que a cidadania cansou de pagar tributos, ainda mais agora, em um momento em que a conjuntura econômica e a situação das finanças públicas permitem avançar na discussão racional da receita e dos gastos do governo”, afirmou por escrito. Propôs: “Quanto mais avançarmos nessa direção, maior poderá ser a queda das taxas de juros, ainda muito elevadas.” E sentenciou: “O governo parece não ter compreendido isso.”

Será que ele acredita que a gente acredita que ele acredita que os juros elevados são em função das finanças públicas?

A íntegra das matérias aqui,

Da coluna de Mônica Bergamo

TERCEIRA VÍTIMA

"Ninguém de prestígio no PSDB vai comemorar, ainda mais porque os indicadores econômicos vão piorar. Só o [senador] Arthur Virgílio, que teve 3% dos votos quando disputou o governo do Amazonas, e o Fernando Henrique [Cardoso], que tem uma das piores avaliações entre todos os políticos do Brasil." Palavras de um dos cinco governadores do PSDB -que batalharam pela prorrogação do imposto e foram derrotados por FHC.

A frase do ano

Em "O Globo" de hoje

"Virgílio admitiu também que o apoio do ex-presidente Fernando Henrique foi fundamental para que enfrentasse a pressão. A última conversa entre o líder e Serra, no fim da tarde de quarta-feira, foi bastante tensa. Virgílio avisou ao governador que não mudaria de posição.

— Isso é uma loucura! — reagiu Serra.

— Então eu sou louco — retrucou ele.

Serra argumentou que o PSDB não poderia ficar a reboque do DEM, que fechara questão contra a CPMF.

— Nossos verdadeiros concorrentes são os petistas — rebateu Virgílio.

No que depender do líder, as diferenças não deixarão seqüelas.

— Serra é o quadro mais preparado para exercer a Presidência, mas para ser presidente terá de ser tolerante, saber ouvir seus companheiros."

Ou seja, ser tolerante é deixar os companheiros botarem fogo no país.


Do Blog do Luís Nassif.


Marcadores: , , ,

Troca de Repertório

Telefona Jean-Paul Lagarride. “Olhaqui, o Lula voltou ao tema do operário odiado pela minoria rica?” Digo que, de fato, bateu na tecla sábado passado. “Não seria o caso de renovar o repertório?” “Sei não – respondo,– acho que você não tem lido os editoriais dos jornalões, não perdem a ocasião para espinafrar o Lula, como se ele carregasse todas as culpas do mundo, são eles que, de saída, não mudam o repertório, aí, que quer você, o cara revida”. Jean-Paul murmura: “Se é assim...” Explico que me espanta a raiva da mídia em relação ao presidente, é ódio visceral e irrecorrível. E Jean-Paul: “Ódio de classe velho de guerra?” Acho que sim. E ele: “Você não leva em conta outro condimento da receita, o medo”. “Medo?” “Pois é, medo, a chamada elite brasileira teme qualquer mudança, teme que o povão comece a tomar consciência a ponto de por em risco os seus privilégios”. Chegamos à conclusão de que o medo aduba o ódio de classe, e nos despedimos com a cordialidade de sempre.

Do Blog do Mino Carta.

Marcadores: , ,

sexta-feira, dezembro 14, 2007

As serpentes de ouro de medusa

As serpentes de ouro de medusa

Escrito por José Carlos de Assis

Creio ter sido um dos primeiros economistas políticos brasileiros a se dar conta, ainda nos anos 80, de que o neoliberalismo não era um fenômeno puramente ideológico, mas o produto de uma realidade sociológica profunda que se exprimiu em maiorias eleitorais efetivas, sobretudo européias. É o que explica o deslizamento para a ala neoliberal mesmo de partidos tradicionalmente de esquerda, como trabalhistas ingleses (Terceira Via), socialistas franceses e sociais democratas alemães.

Acredito que quem originalmente levantou a cortina sobre esse processo de fundo foi William Greider, em seu monumental “The Secrets of the Temple”, sobre a história do Banco Central norte-americano. Ele “sacou” que a maioria eleitoral que apoiou Reagan em 79 era formada em grande parte de classes médias afluentes, indignadas com a perda de renda financeira oriunda da combinação entre inflação alta e juros baixos, prevalecente ao longo dos anos 70, sobretudo depois da débâcle do sistema de Bretton Woods.

Na Europa Ocidental, o que deixou apavoradas as classes médias afluentes foi principalmente a instabilidade monetária e cambial. O sucesso espetacular do experimento social-democrata do pós-guerra eliminou o medo do desemprego e mudou o eixo das preocupações dos afluentes para as oportunidades de ganho financeiro, no país de origem e no exterior, pelo que a instabilidade cambial passou a ser um estorvo. Aos poucos, a demanda de estabilidade dos ricos acabou por formar uma maioria eleitoral.

Pode-se dizer que, na Europa, o neoliberalismo é um produto da afluência da maioria. No Brasil, ao contrário, a afluência de uns poucos tem se tornado o produto do neoliberalismo. Diferentemente da Europa, não se completou aqui o processo da democracia social, e em compensação não houve entre nós nenhum episódio eleitoral que autorize dizer que a maioria dos cidadãos optou pelo neoliberalismo. No caso de Fernando Henrique, suas eleições se deveram exclusivamente ao sucesso do Real quanto ao controle da inflação. No caso de Lula, ao desencanto com Fernando Henrique e ao compromisso de retomada do desenvolvimento e da luta contra o desemprego.

Assim, no Brasil, o neoliberalismo é um fenômeno principalmente ideológico, sem base na realidade social, esta ainda fortemente dependente de ações do Estado. É uma ideologia artificial, importada, descolada do processo sociológico, mesmo porque estamos longe de ter uma maioria de afluentes que estejam mais interessados em globalização e oportunidades de especulação do que em combater o alto desemprego e a exclusão social. Como toda ideologia, funciona como instrumento de manipulação e de dominação. Contudo, para ser eficaz, ela busca desesperadamente o status de pensamento único.

No governo Fernando Henrique chegamos o mais próximo que se pode ao império do pensamento único. Todos os aparelhos ideológicos do Estado e quase todos os da sociedade, inclusive a maioria da grande mídia, foram colocados sem qualquer escrúpulo a serviço da difusão ideológica do neoliberalismo. Essa hegemonia foi quebrada no governo Lula. E é isso, certamente, que está suscitando uma forte inquietação nos círculos neoliberais, vocalizada especialmente por alguns professores-banqueiros.

Se o neoliberalismo no Brasil tivesse raízes sociológicas autênticas, os economistas Márcio Pochmann, presidente do IPEA, e João Sicsú, diretor, não se veriam sob o fogo cerrado dos seus militantes mais agressivos. Pochmann disse e escreveu que a CPMF, dada a regressividade do sistema tributário brasileiro, é um dos impostos mais eficazes e mais justos. Sicsú escreveu, sempre de forma absolutamente fundamentada, que o Estado brasileiro, ao contrário do que dizem, é “nanico”.

Tenham tido essa intenção ou não, meteram o dedo na ferida. A essência do neoliberalismo, desde Hayek a Friedman, é a desconstrução do Estado. O árbitro de todas as soluções, desde o meio ambiente ao emprego, é o livre mercado. Para Hayek, até a moeda teria de ser privada – algo que fez recuar, assustado, seu parceiro Friedman. Não foi o caso, porém, de nossos neoliberais. Estes conseguiram a façanha inacreditável de privatizar o Banco Central, o que valeu a seu presidente uma honraria da “Euromoney”.

Pedro Malan (ex-presidente do Banco Central e ex-ministro da Fazenda, hoje Unibanco), Alexandre Schwartsman (ex-diretor do Banco Central, hoje no Real), Marcos Lisboa (ex-secretário de Política Econômica da Fazenda, hoje no Unibanco), Maílson da Nobre (ex-ministro da Fazenda, hoje dono de consultoria financeira), todos se insurgem diante da ousadia de Pochmann e de Sicsú ao apontarem, por exemplo, que enquanto o número de servidores públicos no Brasil representa 8% do total do emprego, nos Estados Unidos é 17%, na França, 27% , e nos países nórdicos europeus, em torno de 40%.

A administração pública direta está esgarçada. Do Ministério de Transportes ao Ministério do Meio Ambiente, não há gente para funções essenciais. Não temos fiscais sequer para supervisionar a produção de leite. Na rede estadual do estado do Rio, estima-se que faltam 30 mil professores de ensino médio. O que dizer dos outros? São notórias as deficiências de pessoal em toda a área pública de Educação, de Saúde, de Segurança Pública. Pacientes brasileiros têm recorrido à rede de saúde da Bolívia! Sucateamos nosso sistema de Defesa, e liquidamos com nossa infra-estrutura logística, a qual só começa a ser recuperada no segundo governo Lula.

Diante desse quadro de descalabro, vêm esses manipuladores de estatística dizer que o grande mal do Brasil é o aumento dos gastos públicos primários! Charlatães, omitem os juros. Shwartzman vai além. Para provar sua tese, faz uma série histórica de aumento da carga tributária entre 1994 e 2006 que simplesmente salta o período de governo de Fernando Henrique. Omite que foi justamente nesse governo que a carga tributária e a dívida pública explodiram, esta de 30% para quase 60% do PIB – sem qualquer relação, como afirma o vice-presidente Alencar, com o investimento público e até mesmo com gastos correntes. Tudo para pagar juros sobre juros!

Não tenho espaço para examinar detidamente cada artigo desse quarteto. Mas, como disse Galbraith, não se pode levar a sério opinião sobre economia de quem tem interesses próprios em jogo. E esses professores-banqueiros valem para seus bancos tanto pelo que omitem quanto pelo que expressam. Vejam as operações de swap reverso do Banco Central, cuja independência é tanto exaltada por Maílson da Nóbrega. Como posso esperar opinião independente de professores-banqueiros que certamente estão entre os beneficiários diretos dos R$ 30 bilhões que, desde 2005, o BC doou e continua doando graciosamente ao “mercado” nessas operações?

A cabeça de Medusa tem muitas serpentes, mas a cabeça da Medusa neoliberal tem serpentes de ouro. Sua infinita audácia, no Brasil, nada tem a ver com sua propensão a ganhar dinheiro e acumular fortunas individuais. Ela vai além disso. Consiste em tentar fazer com que os outros pensem que o interesse pessoal deles é o interesse da sociedade. O resultado disso é que, na média dos anos 1993 a 2005, os juros representaram 29% da renda interna disponível. Num desses anos, foi a 44%! É um escândalo, e um escárnio. Mas é, indiscutivelmente, o principal resultado prático do neoliberalismo no Brasil.

P.S.: Já estava escrito este artigo quando li em manchete de primeira página de “O Globo”, mais tarde replicada no Jornal Nacional, que Pochmann será convocado pelo líder tucano no Senado para dar satisfação do afastamento de quatro pesquisadores que se encontravam irregularmente desempenhando funções no IPEA. Lúcia Hipólito, que o próprio jornal laureou como grande cientista política, sustenta que aí estaria a prova de que o IPEA está sendo “aparelhado”. Pergunto: Por quem, e com que objetivo?

Não é exatamente o oposto? Ao tempo de Fernando Henrique, e mesmo depois, enquanto o governo Lula estava preocupado com outras coisas, não foi o IPEA, pelo trabalho ideológico de alguns de seus integrantes (emprestados) mais atrevidos, um instrumento do neoliberalismo incrustado no governo, vocalizador do pensamento único deste? Não é desse grupo ideológico “independente” que surgiram os textos “provando” que o Estado brasileiro é gastador, e que é do dispêndio público exagerado que resultam todos os males nacionais – sem uma única menção aos juros e à política monetária?

Não foi um desses pesquisadores que quis “provar” que no Brasil não há trabalho escravo? Obviamente, nenhum desses fâmulos neoliberais, que por certo estão contando pontos para saltar para consultorias privadas, foi afastado pelo que pensam. Foram afastados pela ilegalidade de sua posição. Se isso desagrada os neoliberais da grande mídia e do Congresso, paciência. Não existe nenhuma razão para que o governo abrigue em seu importante instituto de formulação de política de longo prazo os que querem trocar os gastos públicos necessários pelas receitas privadas de consultoria e de palestras regiamente pagas.

José Carlos de Assis é economista. - Originalmente publicado em www.desempregozero.org.br

Texto copiado do Correio da Cidadania.

Marcadores: , ,

quarta-feira, dezembro 12, 2007

Pobreza de idoso explodiria sem Previdência

Pobreza de idoso explodiria sem Previdência

Comparado com Argentina, México, Peru, Costa Rica e Bolívia, o Brasil é o país com maior cobertura previdenciária na população com mais de 65 anos de idade e onde os benefícios são mais representativos na renda total dos idosos. As informações estão na Folha, de hoje.

Sem esses ganhos, a taxa de pobreza urbana nessa faixa etária saltaria dos atuais 3,7% - o menor percentual entre os comparados - para 47,2%, o que a colocaria como a pior. Isso teria impactos também na taxa de pobreza (com base na linha de US$ 2 diários) de toda a população urbana, que passaria de 14,8% para 24,9%.


Essas são conclusões do mais recente estudo das pesquisadoras Ana Amélia Camarano e Maria Tereza Pasinato, do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). O trabalho indica que mudanças bruscas na Previdência podem aumentar significativamente a taxa de pobreza entre os idosos.



Um velho texto (de julho passado), do velho Diário Gauche.


Marcadores: , ,

terça-feira, dezembro 11, 2007

Os vigilantes da democracia


Os vigilantes da democracia

Em uníssono, governo e mídia dos Estados Unidos condenaram o governo de Hugo Chávez. Sem direito à defesa, e sem contestação. O resto é silêncio.

O governo e a principal mídia nos Estados Unidos tomaram partido ou pelo menos se declararam árbitros nom processo interno venezuelano, ao participar, opinar e criticar o referendo sobre a reforma constitucional.
Em novembro apareceram pelo menos 15 editoriais nos periódicos mais importantes, sem contar os que foram publicados no dia do plebiscito, uma série de artigos de opinião e de comentários na mídia norte-americana. O governo de George Bush não escondeu sua participação no debate venezuelano. Especialistas reconhecidos em matéria de transparência, direitos humanos e outros elementos-chave nos processos democráticos, como o ex-secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, puseram à disposição a sua sabedoria.

O aparente consenso editorial e político aqui [nos EUA] foi o de que o referendo representou não só uma tentativa do presidente Hugo Chávez de concentrar o poder, mas também de enfraquecer e até de abolir a democracia na Venezuela.

No dia do referendo o New York Times, o jornal mais influente desta nação, publicou um editorial, “Dizendo não a Chávez”, em que insta o povo venezuelano a votar contra as reformas constitucionais. Argumentando que Chávez se dedicou à acumulação de poder “explorando a riqueza petroleira de seu país para comprar o apoio popular, indica que há sinais “esperançosos” de que o eleitorado poderia recusar “seu plano para se converter em presidente vitalício. Os opositores convocaram um voto massivo no “não”. Para o bem da democracia ferida na Venezuela, os votantes deveriam atender esse chamado”.

O Los Angeles Times advertiu que o referendo sobre as 69 emendas constitucionais “mudaria o governo, de uma democracia, em algo que se parece muito a uma ditadura à cubana”. Disse o editorial: “um triunfo de Chávez seria uma derrota para a América Latina, os Estados Unidos e sobretudo para a Venezuela”. “Não há nada que os Estados Unidos possa ou deva fazer para prevenir tudo isso. O destino da Venezuela está nas mãos dos venezuelanos. Mas pagarão caro se tomarem a decisão errada no domingo”, era a conclusão.

Duas semanas antes do referendo, o Washington Post publicou sua posição editorial, com a manchete: “O golpe do Sr. Chávez”. Afirmou que as modificações constitucionais completariam a transformação da Venezuela “numa ditadura”. Afirmou que é alentador que tanta gente naquele país não esteja disposta a “ceder sua liberdade sem lutar por ela”.

De fato, até pequenos jornais em cidades como Evansville, Indiana, decidiram publicar sua opinião sobre o assunto. “Salvando a Venezuela”, é o título do editorial que caracterizava o voto como algo que efetivamente decidiria se o país se converteria numa “ditadura do tipo cubano”, com “Chávez no papel de Castro”. Concluía o Evansville Courier: “para o bem de todos, particularmente deles, esperemos que os venezuelanos votem “não” no domingo”.

Vários comentaristas e colunistas abordaram o tema, a maioria desse mesmo jeito. Por exemplo, o colunista Roger Cohen, do New York Times, escreveu que “o caudilho enfeitado de petróleo na América Latina se põe a sério sobre governar a vida, assim como Franco e Castro”. Diante disso conclamava a que os venezuelanos seguissem o exemplo do rei Juan Carlos e dissessem a Chávez que se cale.

Talvez a voz mais surpreendente – simplesmente porque estava retirada em silêncio, pelo resultado desastroso de suas políticas e pelas críticas de suas manipulações que violavam a Constituição norte-americana e as leis internacionais – foi a do Secretário de Defesa Donald Rumsfeld, que, no Washington Posto, decidiu oferecer uma série de “receitas” para enfrentar as “ameaças” do momento.

Num artigo chamado “A maneira inteligente de derrotar tiranos como Chávez”, Rumsfeld lamenta que “o mundo está dizendo pouco e fazendo menos enquanto o presidente Hugo Chávez desmantela a Constituição da Venezuela, silencia sua mídia independente e confisca a propriedade privada”, e adverte que ele representa uma ameaça além-fronteiras.

É interessante lembrar – como esses jornais não fizeram agora – que no golpe contra Chávez, em 2002, todos eles comemoraram. A organização independente Fairness and Accuracy in Reporting (FAIR) recorda que no dia 13 de abril de 2002 o New York Times declarou que a “renúncia” de Chávez implicava que “a democracia venezuelana já não estava ameaçada por um quase-ditador”. Na mesma semana o Chicago Tribune comentou: “nem todos os dias a democracia se beneficia por uma intervenção militar para afastar um presidente eleito”. O Los Angeles Times reprovou o golpe, mas observou que a Venezuela seria beneficiada se ele ensinasse a Chávez a ser “mais plural”. Tanto o Post como o New York Times asseguraram que Washington não tinha posto sua mão no golpe, embora não se tivessem ainda detalhes, e desde então os seus próprios repórteres têm afirmado o contrário.

O governo de Bush não escondeu sua “preocupação” com o processo político venezuelano. O porta-voz do Departamento de Estado, Sean McCormack, assegurou esperar que a contagem de votos “manifestasse a vontade do povo venezuelano”. Estava preocupado porque “não havia observadores em campo”. “Então o mundo exterior de fato não terá muitas informações sobre os procedimentos no dia da votação, mas também no momento da contagem”.

Mas no ato a embaixada da Venezuela lembrou num comunicado que 39 países enviaram missões e que haveria centenas de observadores internacionais e nacionais. Argumentou que “ao contrário das eleições nos Estados Unidos, nós, os venezuelanos, contamos sempre com um amplo sistema de auditoria e com a verificação imediata do voto através da papeleta eleitoral”.

Também os meios da mídia outorgaram ampla cobertura às manifestações da oposição (e muito menos àquelas pelo “sim”), e alguns dos âncoras não esconderam sua preferência pelo “não”.

Pelo que parece, a vitalidade do debate venezuelano contagiou alguns políticos e a mídia daqui [dos Estados Unidos]. Quem sabe seja um sinal esperançoso de que aplicarão o mesmo entusiasmo na defesa de uma democracia que padece de deterioração em sua credibilidade, em sua participação e em sua transparência: a daqui [norte-americana].

Texto publicado originalmente na Agência Carta Maior.

Marcadores: , , ,

segunda-feira, dezembro 10, 2007

Num mundo cheio de vida, não podem faltar os direitos humanos




Hoje, 10 de dezembro, é Dia Mundial dos Direitos Humanos. Casualmente eu vi num blog do digamos lado direito da blogosfera. E apoiada por ativistas Baha'is. Mas nada disto invalida um dia especial para pensar em direitos humanos, exceto, talvez, se resolvermos pensar apenas neste dia.

E é claro, quando eu penso em direitos humanos, eu penso na Anistia Internacional, e penso que o primeiro direito humano, fundamental, do qual derivam todos os demais é o direito à vida. É por isto que a Anistia Internacional é contra a pena de morte, e este blogueiro também. Mesmo para criminosos. Mas principalmente para todo e qualquer ser humano. E felizmente para nós, os criminosos assassinos ainda são minoria.

E em especial com relação ao Brasil, acho que a polícia precisa investigar e prender mais, e matar menos. E os criminosos do trânsito precisam ser mais punidos, de preferência presos.

Visite o saite da Anistia Internacional (em inglês). Também em espanhol.

Marcadores: ,

Dias de Ativismo contra a violência contra a mulher



Meio atrasado, entro na campanha que vi no blog Todos os Fogos o Fogo. Veja mais .

Marcadores: , ,

domingo, dezembro 09, 2007

Blog Entrelinhas: Leitura no Estadão de Hoje

Vale a pena ler a entrevista abaixo, do historiador Carlos Guilherme Mota, publicada neste domingo pelo jornal O Estado de S. Paulo. É uma análise vigorosa.

Você também está atrás das grades

Fred Melo Paiva

No final dos anos 70, Carlos Guilherme Mota costumava receber em sua casa a visita do também historiador Caio Prado Júnior. Tomavam vinho juntos. Caio Prado gostava dos chilenos da marca Concha y Toro. Carlos Guilherme gostava de Caio Prado - sentia-se visitado pela versão brasileira de um Eric Hobsbawm. Diante do grande mestre, tentava extrair dele “umas cinco frases para repassar aos seus filhos e alunos”. Certa vez, foi direto ao ponto: “Professor, qual é a sua mensagem? O que o senhor me diz sobre a história do Brasil?”. Caio Prado Júnior respondeu: “O Brasil é muito atrasado”. Carlos Guilherme Mota achou a frase “um pouco pobre”. Insistiu: “Mas como assim?”. O Caio: “Muito atrasado. Muito”. Carlos Guilherme deixou pra lá.

“Historiador das idéias”, Carlos Guilherme Santos Serôa da Mota é professor titular de história da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade São Paulo (FFLCH-USP) e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Foi diretor-fundador do Instituto de Estudos Avançados da USP. É pesquisador da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas. Autor, entre outros, de Ideologia da Cultura Brasileira (Editora 34), prepara-se para o lançamento de História do Brasil - Uma Interpretação (Senac), escrito em parceria com sua mulher, a historiadora Adriana Lopez.

Na semana que passou, Carlos Guilherme Mota lembrou-se muito da frase de Caio Prado Júnior. E à luz dessa lembrança, ele concedeu ao Aliás a entrevista que segue:

A história do sistema prisional no Brasil é uma seqüência de atos de barbárie?

Quando houve a Inconfidência Mineira, ou mesmo a Revolta dos Alfaiates, as condições carcerárias eram miseráveis. Há descrições disso. E olha que foram presos ouvidor, desembargador, advogado. Tem-se a idéia de que (o jurista e poeta luso-brasileiro) Cláudio Manuel da Costa não teria suportado a situação e cometido suicídio. Mais adiante, em 1817, revolucionários do Nordeste foram presos na Bahia, entre eles Antônio Carlos de Andrada, irmão de José Bonifácio, e o clérigo Francisco Muniz Tavares. Eram pessoas, digamos, de alto coturno, tiveram alguns privilégios. Ainda assim seus testemunhos do cárcere são um horror. Durante todo o século 19 as condições são, sim, de barbárie. Não há a idéia de cidadania como a temos hoje, nem minimamente. Nos anos 1920 e 1930, comunistas e anarquistas eram recolhidos em presídios como o famoso Maria Zélia, no bairro da Liberdade, em São Paulo. Ficavam confinados em solitárias com água pingando na cabeça. Imperava por aqui - e de alguma forma ainda impera - a lei da fazenda: se você fez alguma coisa errada, mando um capanga te pegar. Se você é um criminoso, significa que pode ser morto. É por isso que, risonhamente, diz-se que a única contribuição que o Brasil deu para a república no mundo foi a tocaia. Aqui sempre houve exímios matadores.

Por que a maneira cruel de lidar com a pessoa presa se perpetua na história do Brasil?

O ex-presidente Fernando Henrique disse o seguinte à revista Piauí: “Falta ao Brasil a convicção profunda de que a lei conta”. É uma boa frase. Mas por que falta essa convicção? Porque a maneira como se pensa o direito no País permanece dentro de uma tradição estamental, do senhoriato, escravagista. Desde o Império, nossa elite nunca deixou de ser colonial e senzaleira, ainda que tenhamos transitado da economia dos escravos para a economia assalariada. Ela é aquilo que o ex-governador Cláudio Lembo denominou muito bem, num desabafo: a elite branca e má. Hoje é sabido que, no episódio dos ataques do PCC, Lembo foi acossado para mandar matar todo o mundo.

A elite brasileira é atrasada a esse ponto?

O Brasil nunca foi dado a revoluções, como as que aconteceram em outros países. O resultado é que o senhoriato gerado pelo período colonial se metamorfoseia e não há uma ruptura. Essa camada dirigente se reformula cada vez que há um movimento social mais vigoroso. A ele se opõe uma contra-revolução preventiva. Isso é o que explica a paz no Segundo Reinado, de 1840 a 1889. E ainda há muitos historiadores ingênuos que vêem dom Pedro II como grande imperador, transformado-o até em capa de Veja como “o imperador-presidente”. Este foi um período em que não se construíram universidades no ritmo que se fez em outros lugares, não se aboliu a escravidão - somente ao final e mesmo assim por pressões externas. A tal “paz imperial” se deveu a uma máquina de opressão plena. O senhoriato de então vem até os dias de hoje. O Sarney não pode vir a ser presidente do Senado? Veja Sarney e Roseana, ACM e ACM Neto. O que existe no Brasil são capitanias hereditárias.

E o que isso tem a ver com a situação das cadeias?

O problema não é apenas daqueles que estão atrás das grades. Não adianta ficarmos daqui como biólogos de laboratório olhando as formigas. Nós todos somos as formigas, aprisionadas por um modelo ancestral. A sociedade civil, se é que ela existe, só faz grandes movimentos quando há carestia. Projetos sociais e políticos mais vigorosos nem entram na pauta dos partidos. Veja a inconsistência ideológica atual do PSDB, por exemplo. É um partido que se pretende socialista. O próprio petismo está dividido. Em quantas facções? Essa semana, uma matéria do Estadão disse que as cadeias de São Paulo têm 231 adolescentes. O ponto mais grave disso é que há uma indiscriminação entre adultos e menores, homens e mulheres. Estamos caminhando de marcha à ré e em alta velocidade. Tudo isso faz parte da situação em que nos metemos: há bolsões socioeconômicos de riqueza e ilhas da fantasia socioculturais. O que se vê é a vitória da cultura do marketing e da sociedade do espetáculo. E com isso se enterra a memória de qualquer pretensão à sociedade civil moderna.

Qual é seu conceito de sociedade civil moderna?

Uma sociedade em que o contrato social é nítido e respeitado. Em que são observados os deveres e as obrigações dos cidadãos. Nós somos todos prisioneiros. Chegamos a um momento-limite da história. Não é que “daqui para a frente é a barbárie”. Já é a barbárie. O sistema carcerário é apenas o intestino de todo um organismo doente.

Essa imagem remete a uma parcela, digamos, descartável da população. É isso mesmo?

É uma imagem forte. Mas pense em Tropa de Elite, o filme. Há boas cabeças dizendo que é daquela forma mesmo que o sistema vai se depurar. Eu acho que falta a essas pessoas consultar os grandes historiadores. Em Formação do Brasil Contemporâneo, Caio Prado Júnior faz um corte no ano de 1808. Ali se vê algo que é importante para entendermos a sociedade brasileira de hoje: há uma imensa massa de população que, não sendo de escravos, não podia ser de elite. São aqueles que (a historiadora) Laura de Mello e Souza chama de “os desqualificados” - a massa. Se você quiser reencontrar esses personagens pode ir, por exemplo, à fila de uma lotérica. São pessoas que estão ali para fazer uma aposta: não sendo escravos, gostariam de ser ricos. É uma massa que mal sabe fazer fila. Não quero propor disciplina militar, mas isso denota alguma coisa sobre a posição de cada um numa sociedade minimamente organizada. Aqui na Oscar Freire (nos Jardins, onde mora), catadores de papel andam com seus carrinhos na contramão às 6 horas da tarde. Por outro lado, há executivos de Harley Davidson que trafegam pela calçada. Chegamos a um ponto em que o cárcere não é a grande questão.

O senhor parece discordar da visão de um Brasil que, embora desigual, mantém uma certa harmonia.

Um país com 400 anos de escravidão não pode ser harmonioso. No Brasil, a ideologia exerce seu papel, que é o de arredondar as diferenças e ocultar o real. Mas o real está posto, nas lutas de classes entre os estamentos senhoriais e as castas lá embaixo. Somos uma sociedade muito conflituada, e por aí podemos entender melhor os fatos que sempre ocorreram nos cárceres brasileiros.

A Justiça não deveria dar conta dos excessos ocorridos nas prisões?

A legislação brasileira sempre funcionou para proteger a propriedade. Em outros tempos, se houve uma preocupação com o escravo, era de que não fosse “danificado” enquanto mercadoria. Com a imigração acontecida em princípios do século 20, muitas idéias de caráter socialista, sindicalista e anarquista acabavam em ações de deportação ou desterro - “Desterro”, aliás, batiza muitas cidades brasileiras. No Estado Novo, por volta de 1937, o então ministro da Justiça Francisco Campos criou uma frase emblemática: “Governar é prender”. Como falar de uma nova sociedade civil a partir de uma idéia como essa? Como pensar nisso se sempre tomamos o criminoso por um ser execrável - e, pior, uma pessoa matável?

Como funcionavam as masmorras do Estado Novo?

O militante comunista Harry Berger, figura de porte internacional, esteve preso com Luís Carlos Prestes em uma dessas masmorras. Com o passar do tempo, as unhas e os cabelos de Berger foram ficando muito compridos. Durante rompantes de loucura, ele urrava. A idéia era fazer o mesmo com Prestes - deixá-lo louco. Mas ele agüentou firme. Sobral Pinto, que era católico, foi quem conseguiu a soltura de Harry Berger. Diante de Getúlio, o que o grande jurista fez foi citar as normas da Sociedade Protetora dos Animais.

Como o golpe de 64 contribuiu para a escalada desse tipo de violência?

Os militares substituíram os delegadões pseudoliberais - xerifes com alguma bibliografia - que haviam surgido no final dos anos 40. Com o Deops, introduziram-se os métodos sistemáticos de mapeamento e extração de informação. Até 1976, pelo menos, muita gente foi morta sob tortura nos porões da ditadura, como se sabe. É dessa época também o nosso baby boom. Explico: Marcola não tem por volta de 40 anos? Ele não é filho de Kennedy, como se diz nos Estados Unidos a respeito dos baby boomers. Marcola, podemos dizer, é um sobrinho do Delfim.

Por que a abertura política não conseguiu mudar a situação nas cadeias no Brasil?

O deputado José Genoino já disse que, por terem sido policiados, muitos dos políticos eleitos depois da ditadura não sabem organizar a força policial. Todos os ministros da Justiça desse período - quase todos meus amigos - foram razoavelmente condescendentes com este quadro mental. Para além dos direitos humanos, há uma coisa que são os direitos da cidadania, que por aqui nunca foram observados. No Brasil, as fronteiras da cidadania e da não-cidadania se confundem. Na Inglaterra, Estados Unidos, Alemanha, isso é diferente porque há uma sociedade de contratos, a começar pelos de trabalho. Se a loja fecha às 18 horas, ninguém será atendido em Paris às 18h10. Nós ainda vivemos numa sociedade de status - dependendo do seu, você pode ser recebido em qualquer lugar, ainda que esteja complemente fora do horário. Há uma segunda questão: em 1970, éramos 90 milhões de habitantes no Brasil. Esse número dobrou. Como este Estado patrimonialista, afeito ao neocoronelismo político e ao populismo vai providenciar educação para a cidadania dessa gente? Aliás, aí estão eles, os tais desqualificados do período colonial...

Como promover a inclusão dessas pessoas?

Inclusão onde? Num sistema que tinha como chefe de um dos poderes o Renan Calheiros? Que pode agora ser substituído por José Sarney? Num sistema que tem o pântano do PMDB, em que todas as boas idéias chafurdam? A cada vez que a sociedade civil avança, é preciso que se construam mecanismos para que não haja retrocessos. Mas, infelizmente, a história do Brasil mostra que fazemos o contrário e andamos para trás.

O senhor vê alguma chance de um presidiário sair da cadeia melhor do que entrou?

Os presídios, hoje, comportam pelo menos o dobro de gente do que deveriam. Não há nenhum projeto consistente de reeducação. Dizer que não há verbas para tal é besteira. Para a sociedade civil burguesa, seria muito mais barato bancar isso do que ficar pagando automóveis blindados e seguranças. Mas não: esses figuras fora da lei são colocadas também para fora do direito, e assim podem ser mortas. É desse jeito desde a época da Colônia - uma jurisprudência rústica do mundo real. Daí que, em certos bairros das periferias brasileiras, é quase normal a presença dos justiceiros. De dia eles estão de farda, de noite fazem o serviço extra.

Se é mais barato recuperar o preso, por que isso não acontece?

Justamente porque vivemos o capitalismo senzaleiro. Nosso empresariado ainda é colonial. O supermercado ao lado da minha casa funciona como um porto: caminhões-contêiners chegam a qualquer hora da noite para descarregar mercadoria, em total desacordo com a lei. Na outra ponta, senhoras que lá fazem compras deixam seus motoristas estacionados onde não pode. E o menino do caixa, coitado, tem 15 minutos para almoçar. Se o sistema carcerário é o intestino, a cabeça do organismo é essa elite com mentalidade imperial. Aquilo que Cláudio Lembro chamou de a elite branca e má, está bem descrito sociológica e juridicamente por Raymundo Faoro. O modelo que estamos vivendo hoje, que nem Lula nem FHC desmontaram, é o modelo autocrático burguês. Podia ser democrático burguês, mas não é. Mário Covas dizia: “Precisamos de um choque de capitalismo”. Capitalismo vem junto com projeto nacional. Mas não é isso o que temos. Ao contrário, são medidas provisórias, essa negociação indecente com a Câmara e o Senado, as concessões insuportáveis para que se aprove a CPMF. Uma vez, Caio Prado Júnior me disse a seguinte frase: “Toda a história do Brasil sempre foi um negócio. Só um negócio”. É isso.

O que fazer diante do quadro crítico que estamos vivendo com relação à questão carcerária?

Com a ausência de políticas públicas que coloquem nos eixos a antiga questão nacional, não chegaremos a lugar nenhum. Conselhinhos ou conselhões, quase figurativos, com figurinhas marcadas, vão fazer com que continuemos em marcha à ré. A propósito, se é para andar para trás, que os juízes pelo menos saiam de vez em quando dos tribunais para inspecionar as cadeias, inclusive na calada da noite. Assim prescreviam as Ordenações Filipinas. Além disso, que se sonegue menos, que a máquina do Estado seja desinchada de aspones e parentelas, que o rigor com a coisa pública seja observada. Não se trata, em casos de desvios vultosos de verbas, de perda do cargo - mas de prisão rigorosa, de ministros a servidores subalternos, como acontece na França, nos Estados Unidos, na Alemanha. Que os aparelhos de Estado se reaparelhem, a partir de novas concepções de educação, com pedagogos universitários especializados em educação prisional. Que requalifiquem carcereiros e funcionários de presídios com professores nos locais, assim como médicos, dentistas, profissionais da computação e bons psicólogos. Um serviço social genérico consola, mas não adianta. Em suma, profissionais que forneçam elementos para uma requalificação social dos marginalizados nos vários ramos, de hotelaria e marcenaria ao torno mecânico. Caso contrário, os presídios continuarão sendo escolas do crime.

Para fechar: qual foi o primeiro pensamento que lhe veio à cabeça quando viu as fotos de presos acorrentados a pilastras numa delegacia de Santa Catarina?

O Brasil é muito atrasado. Muito atrasado. Muito...


Como dito, visto no Blog Entrelinhas.

Marcadores: , , , ,

sábado, dezembro 08, 2007

A Guiana quer virar protetorado florestal

ELIO GASPARI

A Guiana quer virar protetorado florestal

ENQUANTO A diplomacia-companheira brincou de potência emergente em Annapolis discutindo uma solução para a crise do Oriente Médio (encrenca com 60 anos de idade, a 10 mil quilômetros de Brasília), apareceu um verdadeiro problema com a Guiana, logo ali, na fronteira norte do país. Numa entrevista ao repórter David Howden, o presidente Bharrat Jagdeo anunciou que vai negociar a preservação de sua floresta amazônica em troca de recursos para o desenvolvimento. Nas suas palavras: "Eu não sou um mercenário e isso não é chantagem. Eu sei que não existe almoço grátis e não estou fazendo isso porque sou um bom sujeito que quer salvar o mundo. Precisamos de ajuda".
Medida pelo poder de compra, a renda per capita dos 770 mil habitantes da Guiana está em US$ 4.800. A dos brasileiros aproxima-se dos US$ 9.000. A floresta de Jagdeo ocupa uma área maior do que a Inglaterra e a mata seria administrada por uma organização internacional liderada pelos britânicos. Seria um dos maiores projetos de preservação do planeta. Seria também uma recaída colonial para o país, que se tornou independente em 1966.
É um direito do povo da Guiana fazer o que bem entende com seus recursos naturais, sobretudo numa época em que o progresso da região amazônica confunde-se com a ação predadora das motosserras e das queimadas.
Desde 1978, Brasil, Guiana, Bolívia, Colômbia, Equador, Venezuela e Peru são signatários do Tratado de Cooperação Amazônica. Por elegância, o presidente da Guiana poderia ter apresentado sua idéia nesse foro. Por cortesia, em outubro passado o presidente do Suriname, Roland Venetiaan, também poderia ter discutido com seus vizinhos a idéia de oferecer um campo de testes para veículos militares americanos em seu território.
A diplomacia-companheira faz figuração em Annapolis, enquanto nas fronteiras de Pindorama constrói-se a maloca da Mãe Joana. Na condição de grande potência poluidora da atmosfera, o governo brasileiro é responsável pelo que faz e sente-se bem na condição de malfeitor. Nosso Guia trata a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, como se fosse uma santa de procissão, seguida pela bandinha da diplomacia emergente, na suposição de que a questão amazônica pode ser resolvida com parolagem doméstica.
Admita-se um cenário no qual há uma base americana no Suriname e a Guiana transforma-se num protetorado ambiental da Inglaterra. Nessa hora, voltarão para a mesa as palavras do presidente francês François Mitterand, em 1989: "O Brasil precisa aceitar uma soberania relativa sobre a Amazônia". Ou ainda uma frase do Prêmio Nobel Al Gore: "Ao contrário do que os brasileiros pensam, a Amazônia não é deles. Ela pertence a todos nós".
Nunca é demais lembrar que o primeiro americano a descer o Amazonas, em 1851, foi o tenente William Herndon. Parecia um oficial curioso, mas era um observador da possibilidade de transplante da escravaria do sul dos Estados Unidos para os matos de Pindorama. Ele escreveu um livro que fez enorme sucesso, e um garoto de 16 anos, encantado pela narrativa, foi para Nova Orleans em busca de um navio com destino a Belém. Queria a aventura e um pouco de comércio de coca. Como a rota não existia, subiu o Mississippi com um amigo. Chamava-se Mark Twain.

Folha de São Paulo, 28/11/2007.


Marcadores: , ,

quarta-feira, dezembro 05, 2007

A Venezuela de hoje pode ser o Brasil de amanhã, quando apertar a sede do mundo por petróleo e água

CARACAS - Na madrugada de segunda-feira, numa praça de Altamira, um bairro de classe média da capital venezuelana, um estudante queima uma cópia da proposta de reforma constitucional que os venezuelanos rejeitaram. Foi uma festa modesta, com cerca de mil pessoas, multiplicadas por milhares pela presença maciça da mídia. Foi um evento midiático, como toda a política, enfim, vem se tornando um movimento midiático, apesar do esforço dos movimentos sociais de politização, sejam eles de direita ou de esquerda. Hoje é muito mais fácil conseguir alguns "atores sociais", legitimados pela própria mídia, do que se atirar à trabalhosa tarefa de conquistar eleitores pela conscientização. E quando você faz alguém pensar há um grande potencial de que essa pessoa discorde, uma lição que serve para o próprio presidente Hugo Chávez.

Chávez foi derrotado por chavistas. Conforme informei neste espaço, inclusive entrevistando um chavista que votou pelo NÃO na porta de uma zona eleitoral, houve uma debandada, que o próprio líder venezuelano constatou ao aceitar o resultado do referendo: o SIM teve quase três milhões de votos a menos que Chávez obteve nas eleições presidenciais de 2006. O bloco da oposição ganhou menos de 500 mil. A abstenção subiu de 25% para 44%. Dentre muitos outros fatores que causaram a derrota de Chávez, o mais importante foi esse: milhões de simpatizantes do presidente simplesmente não foram votar.

Os motivos são diversos: discordância em relação a pontos da reforma, como a reeleição indefinida; discordância das próprias declarações de Chávez, de que ficaria no poder até 2050 se os eleitores quisessem; dúvidas em relação ao conteúdo da reforma, especialmente nos pontos relativos ao direito à propriedade e rejeição a medidas tomadas pelo presidente desde que foi reeleito - do fechamento da emissora RCTV às polêmicas internacionais.

Depois de três dias em Caracas, estou esperando para ver a tal ditadura chavista se materializar em falta de liberdade de imprensa, de manifestação, de expressão, de trânsito... Não fui parado uma vez sequer filmando nas ruas da cidade, nem mesmo em zonas eleitorais. Tente filmar por quinze minutos, com uma câmera amadora, o prédio do Citibank em Nova York e você vai ver o que acontece...

De volta a Chávez, o cálculo dele era de que, reeleito com ampla maioria, tinha uma janela de oportunidade para fazer passar a reforma constitucional, aproveitando a "fraqueza" relativa do governo Bush. Porém, enfrentou uma barragem sem precedentes da artilharia midiática, no que talvez tenha sido a primeira grande campanha internacional, com métodos de guerrilha informativa, na História contemporânea da América Latina. Através da omissão, da manipulação, da seleção e da deturpação de imagens e informações.

O que sabem os leitores brasileiros sobre as propostas de Chávez? Que ele buscava a reeleição indefinida, com certeza. Mas, como sempre acontece, foram "escondidos" alguns pontos importantes que poderiam servir de "mau" exemplo para a população de outros países, como a redução da jornada de trabalho para 6 horas, a proibição da privatização da empresa petrolífera PDVSA e o completo monopólio estatal sobre os recursos naturais do país - petróleo e gás, essencialmente.

Os atores sociais que foram às ruas não podem ser desprezados. Embora sejam mesmo filhos da classe média, em sua maioria, os estudantes antichavistas estavam convictos ao defender o que consideravam uma ameaça à sua liberdade, embora seja irônico que gente que sempre mandou e teve completa liberdade, inclusive sob Chávez, tenha adotado essa palavra-de-ordem repentinamente. Chávez perdeu para os seus próprios erros mas também perdeu para a Igreja Católica, que silenciosamente, nas missas, pregou aberta ou indiretamente contra o SIM.

Quem acha que o Chávez é chucro pela sua aparência, se engana. É um leitor voraz, de formação militar, que acredita em fazer uma reforma que toca no que é realmente essencial na Venezuela: este é um país rico cheio de gente pobre. Como é possível que algumas centenas de milhares de pessoas concentrem o poder econômico e a renda em alguns bairros privilegiados de algumas cidades, enquanto convivem com milhões de deserdados nos morros e na zona rural? É o dilema de toda a América Latina.

Existem alguns outros assuntos sobre os quais eu gostaria de escrever, mas a hora do vôo se aproxima. Terei tempo para fazer isso nos próximos dias, inclusive com alguns vídeos bizarros da festa de comemoração pela vitória do SIM, a demonstração mais clara, em toda a minha carreira, de que alguns poucos podem ter um impacto gigantesco em uma sociedade, desde que tenham espaço garantido na mídia.

A mídia venezuelana é uma questão à parte, que merece muitos estudos. As formas de manipulação midiática se sofisticaram em relação ao golpe de 2002. Afinal, as empresas precisam garantir alguma credibilidade para manobras futuras. É por isso que critiquei, no site, deputadas que rasgaram elogios à RBS recentemente, sem fazer qualquer reparo à atuação do grupo na política brasileira. A mídia, em seu novo papel de protagonista da política, tão ou mais forte que os partidos políticos, com a capacidade de determinar a agenda política, criar e alimentar factóides e decidir eleições, "armazena" credibilidade como se fosse munição para ser usada no futuro.

Essa credibilidade é dada por todos os outros atores sociais, inclusive mas não somente leitores, telespectadores e ouvintes. Políticos de todos os partidos aceitam a barganha de ajustar o seu discurso para garantir espaço na mídia. Porém, é uma barganha que pode custar caro lá na frente. Digo isso a políticos do PT, do PDSB, do DEM e do PCdoB e a todos aqueles que são eleitos ou exercem cargos públicos. Amanhã pode chegar a SUA VEZ de ser demolido pela artilharia midiática.

Na Venezuela, Hugo Chávez tentou criar alternativas e foi razoavelmente bem sucedido para seus objetivos políticos, não para o meu gosto. A polarização no país é tamanha que os venezuelanos ficaram entre dois extremos. Insultos, insinuações e notícias plantadas foram usados tanto nos partidos midiáticos da oposição quanto nos oficialistas. Mas, pelo menos, para quem é curioso agora há mais de uma opção. Minha sugestão aos políticos brasileiros é que façam como a deputada Manuela D'Avila, do PCdoB, que interage com seus eleitores diretamente, principalmente através da internet, e não faz política PARA a mídia, como foi o caso do deputado Fernando Gabeira, em alguns episódios.

Uso aqui esta foto, feita hoje de manhã, no bairro de classe média de Altamira, reduto da oposição. É uma demonstração do nível de polarização e baixaria política vivida na Venezuela, em que o debate passou a ser travado por extremos e abafou a voz da maioria.

A camiseta é do Partido Socialista Unificado da Venezuela, formado por Hugo Chávez na cola do PC cubano, o que também acarretou a ele a perda de importantes aliados. O colante do NO foi acrescentado à peça e exibido como se fosse um "cadáver", bem diante de um pequeno "barrio", uma favelinha de algumas centenas de habitantes incrustrada entre prédios de "cidadãos do bem". Alguns chavistas vivem nela. O processo político, aqui, foi seqüestrado por extremistas. O discurso racional perdeu espaço para os apelos à emoção, típicos das campanhas publicitárias do medo, que se tornaram padrão na política internacional.

Hoje Caracas acordou respirando aliviada. Foi tamanha a tensão das últimas semanas, causada por fatos reais e notícias imaginárias, que mesmo o eleitor chavista deve ter pensado com seus botões: ainda bem que acabou. É assim que funcionam as campanhas de terror. Lembram-se daquele empresário que prometeu, em 1998, que se Lula fosse eleito 800 mil brasileiros fugiriam para Miami? A Venezuela é o Brasil de 1998, ainda. Os grandes interesses econômicos, representados pela mídia corporativa e os jornalistas-vereadores, jornalistas-deputados e jornalistas-senadores, colocam um bode em sua casa através dos jornais, das emissoras de rádio e de TV.

Para depois "tirar" esse bode imaginário, simplificado, diabolizado ou exagerado. Lula matou 200 brasileiros naquele acidente aéreo da TAM, escreveu um "especialista" em aviação (ou era um psicanalista?) na capa do maior jornal do Brasil, a "Folha de S. Paulo", que costumava ser também o mais responsável. Assim que Lula adotou um tucano no ministério o caos aéreo assumiu a sua devida importância. O bode foi tirado de sua sala. A oposição, embora derrotada nas eleições, governa junto sem ter de apresentar propostas aos eleitores, sem politizar a sociedade, sem correr o risco de desatar processos políticos que mais tarde fujam ao seu controle. É a extração política de concessões através do partido da mídia. Cadê o partido de direita puro-sangue do Brasil? Na TV Globo.

Finalmente, algumas considerações sobre aqueles que não estavam na praça de Altamira, na madrugada desta segunda-feira, que afinal são os mais importantes: os empresários de carne-e-osso e os executivos de carne-e-osso que representam os interesses que se opõem aos de Hugo Chávez. Também não estavam lá o embaixador-ativista dos Estados Unidos, nem os representantes das agências de fomento da "democracia" bancadas com dinheiro público americano, que só atuam onde interessa. Estava um rapaz, com uma bandeira americana, que não sabia que eu era jornalista. Quando perguntei a ele sobre o motivo da presença daquele símbolo, ele disse que era essencial reaproximar os dois países. Justo. Justíssimo. A câmera ainda estava ligada quando ele disse: "Sabe o que é? Trabalho para o banco Santander."

Voltando à indevida intervenção americana na política de outros países, não foi por acaso que Vladimir Putin, outro vilão da mídia internacional, restringiu a atuação política de ONGs financiadas pelos Estados Unidos na Rússia. Um artigo específico da reforma constitucional proposta por Hugo Chávez proibia o financiamento externo de atividades políticas na Venezuela. Não é teoria conspiratória. É verdade factual e a informação está à disposição de quem quiser, no site do National Endownment for Democracy, o NED - criado durante o governo de Ronald Reagan para "promover" a democracia. Está lá a lista de projetos financiados mundo afora, com valor e tudo.

Eu sou a favor da democracia, mas também no Egito, na Arábia Saudita, no Paquistão, respeitada a cultura e a soberania destes países. Ou seja, feito a repercussão seletiva de capas na TV brasileira - que no processo eleitoral do ano passado só repercutia capas de revista com manchetes contrárias a um candidato -, o NED promove a democracia seletivamente.

Existe uma rede de prestadores de serviço a essa causa, que acho justa, DO PONTO-DE VISTA DOS INTERESSES DOS ESTADOS UNIDOS. Eu, se fosse eles e quisesse exercer a hegemonia mundial, faria exatamente a mesma coisa. Essa rede de "denuncismo" ou "patrulhamento" de outros países - que raramente faz denúncias que envolvam os próprios Estados Unidos - é formada por entidades que se apresentam como defensoras da liberdade de imprensa, quando na verdade defendem mais o direito das empresas que o dos jornalistas. Procurem saber quem financia quem e vocês vão entender melhor a lógica desse novo "negócio".

O NED, com apoio desses monitores de mídia, dos institutos internacionais do Partido Republicano e Democrata e entidades afins, financia - com dinheiro público americano, apropriado pelo Congresso - , além do dinheiro de empresários-ativistas, um novo modelo de "golpe branco", que não envolve a ocupação física de território, mas estratégias sofisticadas de organização política, estratégia eleitoral, marketing e propaganda.

Uma bala para quem advinhar onde é que essa estratégia foi aplicada: em países pobres, sem recursos naturais ou importância geopolítica? Ou em países ricos de recursos naturais e estrategicamente importantes? Deu certo na Ucrânia e na Geórgia, que passaram do guarda-chuva russo para o pró-ocidental. Deu certo por 47 horas, em 2002, quando Hugo Chávez foi apeado do poder na Venezuela. Deu certo de novo neste domingo, embora tenha sido apenas um ingrediente da receita.

Dos escombros da oposição venezuelana emergiram partidos como o Primero Justicia, que começou uma ong da sociedade civil com ajuda do NED. Os mecanismos de atuação dos grupos financiados pelos Estados Unidos incluem monitoramento de eleições, formação de lideranças, consultoria eleitoral e pesquisas de opinião. O que prega o Primero Justicia? Uma plataforma pró-americana, com uma concessão aqui ou ali aos interesses locais, que ninguém é de ferro.

Tenham em mente que a proposta de reforma constitucional de Hugo Chávez, rejeitada pela maioria dos venezuelanos por diversos motivos que não este, tinha um capítulo que proibía a privatização da petroleira PDVSA, a segunda maior empresa da América Latina e controladora das maiores reservas de gás e petróleo do continente. O texto também reafirmava o completo monopólio estatal sobre as reservas. É a verdade factual. O controle dessas reservas é essencial para o que os Estados Unidos definem como sua "segurança energética", além de representarem um gigantesco lucro em potencial para as petroleiras internacionais.

Digam o que disserem de Hugo Chávez, ele é um estrategista que tinha isso em mente. Sabia que ia peitar grandes interesses econômicos e políticos. Em seu estilo tudo ou nada, calculou o risco e jogou o jogo. Perdeu. O essencial é que os brasileiros - sejam do DEM, do PT, do PSDB ou do PP - tenham em conta que esse é o jogo da política internacional. E que a Venezuela de hoje pode ser o Brasil de amanhã, quando alguém decidir que precisa de água ou de um naco da floresta amazônica. Não se preocupem, que desculpa eles arranjam e há os jornalistas-vereadores, jornalistas-deputados e jornalistas-senadores dispostos a representá-los na linha de frente da artilharia midiática.

O senador José Sarney, nosso grande democrata maranhense, literato e estrategista de visão mundial, num artigo que escreveu para a "Folha de S. Paulo", recentemente, perguntou: "Para que a Venezuela precisa de armas?" Eu gostaria de perguntar ao senador: "Para que os Estados Unidos estacionam a Sexta Frota no Mediterrâneo?"

É viagem de turismo?

Para que os Estados Unidos orçaram U$ 127 bilhões para a Marinha só no ano fiscal de 2007?

Chávez tem um milhão de defeitos, além de ser brega e feio, como diz a oposição venezuelana. Mas em oito anos transformou a política local de tal forma que hoje a oposição defende com unhas-e-dentes a Constituição de 1999, que na época boicotou e não subscreveu. Chávez rompeu com o bipartidarismo que sufocou o país política e economicamente e esse fato fez emergir novas forças políticas, algumas das quais vão competir com ele para modernizar a Venezuela e desfazer o extremo fosso social que divide o país. Chávez fez mil vezes mais pela Venezuela, em nove anos, do que Sarney fez pelo Maranhão em quarenta.



Texto copiado do Vi o Mundo, o saite do Luiz Carlos Azenha. Quem quiser ver o original, pode ir lá. Tem figurinhas, e mais algumas notas interessantes.

Marcadores: , , , ,