A Venezuela de hoje pode ser o Brasil de amanhã, quando apertar a sede do mundo por petróleo e água
CARACAS - Na madrugada de segunda-feira, numa praça de Altamira, um bairro de classe média da capital venezuelana, um estudante queima uma cópia da proposta de reforma constitucional que os venezuelanos rejeitaram. Foi uma festa modesta, com cerca de mil pessoas, multiplicadas por milhares pela presença maciça da mídia. Foi um evento midiático, como toda a política, enfim, vem se tornando um movimento midiático, apesar do esforço dos movimentos sociais de politização, sejam eles de direita ou de esquerda. Hoje é muito mais fácil conseguir alguns "atores sociais", legitimados pela própria mídia, do que se atirar à trabalhosa tarefa de conquistar eleitores pela conscientização. E quando você faz alguém pensar há um grande potencial de que essa pessoa discorde, uma lição que serve para o próprio presidente Hugo Chávez.
Chávez foi derrotado por chavistas. Conforme informei neste espaço, inclusive entrevistando um chavista que votou pelo NÃO na porta de uma zona eleitoral, houve uma debandada, que o próprio líder venezuelano constatou ao aceitar o resultado do referendo: o SIM teve quase três milhões de votos a menos que Chávez obteve nas eleições presidenciais de 2006. O bloco da oposição ganhou menos de 500 mil. A abstenção subiu de 25% para 44%. Dentre muitos outros fatores que causaram a derrota de Chávez, o mais importante foi esse: milhões de simpatizantes do presidente simplesmente não foram votar.
Os motivos são diversos: discordância em relação a pontos da reforma, como a reeleição indefinida; discordância das próprias declarações de Chávez, de que ficaria no poder até 2050 se os eleitores quisessem; dúvidas em relação ao conteúdo da reforma, especialmente nos pontos relativos ao direito à propriedade e rejeição a medidas tomadas pelo presidente desde que foi reeleito - do fechamento da emissora RCTV às polêmicas internacionais.
Depois de três dias em Caracas, estou esperando para ver a tal ditadura chavista se materializar em falta de liberdade de imprensa, de manifestação, de expressão, de trânsito... Não fui parado uma vez sequer filmando nas ruas da cidade, nem mesmo em zonas eleitorais. Tente filmar por quinze minutos, com uma câmera amadora, o prédio do Citibank em Nova York e você vai ver o que acontece...
De volta a Chávez, o cálculo dele era de que, reeleito com ampla maioria, tinha uma janela de oportunidade para fazer passar a reforma constitucional, aproveitando a "fraqueza" relativa do governo Bush. Porém, enfrentou uma barragem sem precedentes da artilharia midiática, no que talvez tenha sido a primeira grande campanha internacional, com métodos de guerrilha informativa, na História contemporânea da América Latina. Através da omissão, da manipulação, da seleção e da deturpação de imagens e informações.
O que sabem os leitores brasileiros sobre as propostas de Chávez? Que ele buscava a reeleição indefinida, com certeza. Mas, como sempre acontece, foram "escondidos" alguns pontos importantes que poderiam servir de "mau" exemplo para a população de outros países, como a redução da jornada de trabalho para 6 horas, a proibição da privatização da empresa petrolífera PDVSA e o completo monopólio estatal sobre os recursos naturais do país - petróleo e gás, essencialmente.
Os atores sociais que foram às ruas não podem ser desprezados. Embora sejam mesmo filhos da classe média, em sua maioria, os estudantes antichavistas estavam convictos ao defender o que consideravam uma ameaça à sua liberdade, embora seja irônico que gente que sempre mandou e teve completa liberdade, inclusive sob Chávez, tenha adotado essa palavra-de-ordem repentinamente. Chávez perdeu para os seus próprios erros mas também perdeu para a Igreja Católica, que silenciosamente, nas missas, pregou aberta ou indiretamente contra o SIM.
Quem acha que o Chávez é chucro pela sua aparência, se engana. É um leitor voraz, de formação militar, que acredita em fazer uma reforma que toca no que é realmente essencial na Venezuela: este é um país rico cheio de gente pobre. Como é possível que algumas centenas de milhares de pessoas concentrem o poder econômico e a renda em alguns bairros privilegiados de algumas cidades, enquanto convivem com milhões de deserdados nos morros e na zona rural? É o dilema de toda a América Latina.
Existem alguns outros assuntos sobre os quais eu gostaria de escrever, mas a hora do vôo se aproxima. Terei tempo para fazer isso nos próximos dias, inclusive com alguns vídeos bizarros da festa de comemoração pela vitória do SIM, a demonstração mais clara, em toda a minha carreira, de que alguns poucos podem ter um impacto gigantesco em uma sociedade, desde que tenham espaço garantido na mídia.
A mídia venezuelana é uma questão à parte, que merece muitos estudos. As formas de manipulação midiática se sofisticaram em relação ao golpe de 2002. Afinal, as empresas precisam garantir alguma credibilidade para manobras futuras. É por isso que critiquei, no site, deputadas que rasgaram elogios à RBS recentemente, sem fazer qualquer reparo à atuação do grupo na política brasileira. A mídia, em seu novo papel de protagonista da política, tão ou mais forte que os partidos políticos, com a capacidade de determinar a agenda política, criar e alimentar factóides e decidir eleições, "armazena" credibilidade como se fosse munição para ser usada no futuro.
Essa credibilidade é dada por todos os outros atores sociais, inclusive mas não somente leitores, telespectadores e ouvintes. Políticos de todos os partidos aceitam a barganha de ajustar o seu discurso para garantir espaço na mídia. Porém, é uma barganha que pode custar caro lá na frente. Digo isso a políticos do PT, do PDSB, do DEM e do PCdoB e a todos aqueles que são eleitos ou exercem cargos públicos. Amanhã pode chegar a SUA VEZ de ser demolido pela artilharia midiática.
Na Venezuela, Hugo Chávez tentou criar alternativas e foi razoavelmente bem sucedido para seus objetivos políticos, não para o meu gosto. A polarização no país é tamanha que os venezuelanos ficaram entre dois extremos. Insultos, insinuações e notícias plantadas foram usados tanto nos partidos midiáticos da oposição quanto nos oficialistas. Mas, pelo menos, para quem é curioso agora há mais de uma opção. Minha sugestão aos políticos brasileiros é que façam como a deputada Manuela D'Avila, do PCdoB, que interage com seus eleitores diretamente, principalmente através da internet, e não faz política PARA a mídia, como foi o caso do deputado Fernando Gabeira, em alguns episódios.
Uso aqui esta foto, feita hoje de manhã, no bairro de classe média de Altamira, reduto da oposição. É uma demonstração do nível de polarização e baixaria política vivida na Venezuela, em que o debate passou a ser travado por extremos e abafou a voz da maioria.
A camiseta é do Partido Socialista Unificado da Venezuela, formado por Hugo Chávez na cola do PC cubano, o que também acarretou a ele a perda de importantes aliados. O colante do NO foi acrescentado à peça e exibido como se fosse um "cadáver", bem diante de um pequeno "barrio", uma favelinha de algumas centenas de habitantes incrustrada entre prédios de "cidadãos do bem". Alguns chavistas vivem nela. O processo político, aqui, foi seqüestrado por extremistas. O discurso racional perdeu espaço para os apelos à emoção, típicos das campanhas publicitárias do medo, que se tornaram padrão na política internacional.
Hoje Caracas acordou respirando aliviada. Foi tamanha a tensão das últimas semanas, causada por fatos reais e notícias imaginárias, que mesmo o eleitor chavista deve ter pensado com seus botões: ainda bem que acabou. É assim que funcionam as campanhas de terror. Lembram-se daquele empresário que prometeu, em 1998, que se Lula fosse eleito 800 mil brasileiros fugiriam para Miami? A Venezuela é o Brasil de 1998, ainda. Os grandes interesses econômicos, representados pela mídia corporativa e os jornalistas-vereadores, jornalistas-deputados e jornalistas-senadores, colocam um bode em sua casa através dos jornais, das emissoras de rádio e de TV.
Para depois "tirar" esse bode imaginário, simplificado, diabolizado ou exagerado. Lula matou 200 brasileiros naquele acidente aéreo da TAM, escreveu um "especialista" em aviação (ou era um psicanalista?) na capa do maior jornal do Brasil, a "Folha de S. Paulo", que costumava ser também o mais responsável. Assim que Lula adotou um tucano no ministério o caos aéreo assumiu a sua devida importância. O bode foi tirado de sua sala. A oposição, embora derrotada nas eleições, governa junto sem ter de apresentar propostas aos eleitores, sem politizar a sociedade, sem correr o risco de desatar processos políticos que mais tarde fujam ao seu controle. É a extração política de concessões através do partido da mídia. Cadê o partido de direita puro-sangue do Brasil? Na TV Globo.
Finalmente, algumas considerações sobre aqueles que não estavam na praça de Altamira, na madrugada desta segunda-feira, que afinal são os mais importantes: os empresários de carne-e-osso e os executivos de carne-e-osso que representam os interesses que se opõem aos de Hugo Chávez. Também não estavam lá o embaixador-ativista dos Estados Unidos, nem os representantes das agências de fomento da "democracia" bancadas com dinheiro público americano, que só atuam onde interessa. Estava um rapaz, com uma bandeira americana, que não sabia que eu era jornalista. Quando perguntei a ele sobre o motivo da presença daquele símbolo, ele disse que era essencial reaproximar os dois países. Justo. Justíssimo. A câmera ainda estava ligada quando ele disse: "Sabe o que é? Trabalho para o banco Santander."
Voltando à indevida intervenção americana na política de outros países, não foi por acaso que Vladimir Putin, outro vilão da mídia internacional, restringiu a atuação política de ONGs financiadas pelos Estados Unidos na Rússia. Um artigo específico da reforma constitucional proposta por Hugo Chávez proibia o financiamento externo de atividades políticas na Venezuela. Não é teoria conspiratória. É verdade factual e a informação está à disposição de quem quiser, no site do National Endownment for Democracy, o NED - criado durante o governo de Ronald Reagan para "promover" a democracia. Está lá a lista de projetos financiados mundo afora, com valor e tudo.
Eu sou a favor da democracia, mas também no Egito, na Arábia Saudita, no Paquistão, respeitada a cultura e a soberania destes países. Ou seja, feito a repercussão seletiva de capas na TV brasileira - que no processo eleitoral do ano passado só repercutia capas de revista com manchetes contrárias a um candidato -, o NED promove a democracia seletivamente.
Existe uma rede de prestadores de serviço a essa causa, que acho justa, DO PONTO-DE VISTA DOS INTERESSES DOS ESTADOS UNIDOS. Eu, se fosse eles e quisesse exercer a hegemonia mundial, faria exatamente a mesma coisa. Essa rede de "denuncismo" ou "patrulhamento" de outros países - que raramente faz denúncias que envolvam os próprios Estados Unidos - é formada por entidades que se apresentam como defensoras da liberdade de imprensa, quando na verdade defendem mais o direito das empresas que o dos jornalistas. Procurem saber quem financia quem e vocês vão entender melhor a lógica desse novo "negócio".
O NED, com apoio desses monitores de mídia, dos institutos internacionais do Partido Republicano e Democrata e entidades afins, financia - com dinheiro público americano, apropriado pelo Congresso - , além do dinheiro de empresários-ativistas, um novo modelo de "golpe branco", que não envolve a ocupação física de território, mas estratégias sofisticadas de organização política, estratégia eleitoral, marketing e propaganda.
Uma bala para quem advinhar onde é que essa estratégia foi aplicada: em países pobres, sem recursos naturais ou importância geopolítica? Ou em países ricos de recursos naturais e estrategicamente importantes? Deu certo na Ucrânia e na Geórgia, que passaram do guarda-chuva russo para o pró-ocidental. Deu certo por 47 horas, em 2002, quando Hugo Chávez foi apeado do poder na Venezuela. Deu certo de novo neste domingo, embora tenha sido apenas um ingrediente da receita.
Dos escombros da oposição venezuelana emergiram partidos como o Primero Justicia, que começou uma ong da sociedade civil com ajuda do NED. Os mecanismos de atuação dos grupos financiados pelos Estados Unidos incluem monitoramento de eleições, formação de lideranças, consultoria eleitoral e pesquisas de opinião. O que prega o Primero Justicia? Uma plataforma pró-americana, com uma concessão aqui ou ali aos interesses locais, que ninguém é de ferro.
Tenham em mente que a proposta de reforma constitucional de Hugo Chávez, rejeitada pela maioria dos venezuelanos por diversos motivos que não este, tinha um capítulo que proibía a privatização da petroleira PDVSA, a segunda maior empresa da América Latina e controladora das maiores reservas de gás e petróleo do continente. O texto também reafirmava o completo monopólio estatal sobre as reservas. É a verdade factual. O controle dessas reservas é essencial para o que os Estados Unidos definem como sua "segurança energética", além de representarem um gigantesco lucro em potencial para as petroleiras internacionais.
Digam o que disserem de Hugo Chávez, ele é um estrategista que tinha isso em mente. Sabia que ia peitar grandes interesses econômicos e políticos. Em seu estilo tudo ou nada, calculou o risco e jogou o jogo. Perdeu. O essencial é que os brasileiros - sejam do DEM, do PT, do PSDB ou do PP - tenham em conta que esse é o jogo da política internacional. E que a Venezuela de hoje pode ser o Brasil de amanhã, quando alguém decidir que precisa de água ou de um naco da floresta amazônica. Não se preocupem, que desculpa eles arranjam e há os jornalistas-vereadores, jornalistas-deputados e jornalistas-senadores dispostos a representá-los na linha de frente da artilharia midiática.
O senador José Sarney, nosso grande democrata maranhense, literato e estrategista de visão mundial, num artigo que escreveu para a "Folha de S. Paulo", recentemente, perguntou: "Para que a Venezuela precisa de armas?" Eu gostaria de perguntar ao senador: "Para que os Estados Unidos estacionam a Sexta Frota no Mediterrâneo?"
É viagem de turismo?
Para que os Estados Unidos orçaram U$ 127 bilhões para a Marinha só no ano fiscal de 2007?
Chávez tem um milhão de defeitos, além de ser brega e feio, como diz a oposição venezuelana. Mas em oito anos transformou a política local de tal forma que hoje a oposição defende com unhas-e-dentes a Constituição de 1999, que na época boicotou e não subscreveu. Chávez rompeu com o bipartidarismo que sufocou o país política e economicamente e esse fato fez emergir novas forças políticas, algumas das quais vão competir com ele para modernizar a Venezuela e desfazer o extremo fosso social que divide o país. Chávez fez mil vezes mais pela Venezuela, em nove anos, do que Sarney fez pelo Maranhão em quarenta.
Texto copiado do Vi o Mundo, o saite do Luiz Carlos Azenha. Quem quiser ver o original, pode ir lá. Tem figurinhas, e mais algumas notas interessantes.
Marcadores: Chávez, Governo Chávez, plebiscito, reeleição, Venezuela
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