Blog Entrelinhas: Leitura no Estadão de Hoje
Vale a pena ler a entrevista abaixo, do historiador Carlos Guilherme Mota, publicada neste domingo pelo jornal O Estado de S. Paulo. É uma análise vigorosa.
Você também está atrás das grades
Fred Melo Paiva
No final dos anos 70, Carlos Guilherme Mota costumava receber em sua casa a visita do também historiador Caio Prado Júnior. Tomavam vinho juntos. Caio Prado gostava dos chilenos da marca Concha y Toro. Carlos Guilherme gostava de Caio Prado - sentia-se visitado pela versão brasileira de um Eric Hobsbawm. Diante do grande mestre, tentava extrair dele “umas cinco frases para repassar aos seus filhos e alunos”. Certa vez, foi direto ao ponto: “Professor, qual é a sua mensagem? O que o senhor me diz sobre a história do Brasil?”. Caio Prado Júnior respondeu: “O Brasil é muito atrasado”. Carlos Guilherme Mota achou a frase “um pouco pobre”. Insistiu: “Mas como assim?”. O Caio: “Muito atrasado. Muito”. Carlos Guilherme deixou pra lá.
“Historiador das idéias”, Carlos Guilherme Santos Serôa da Mota é professor titular de história da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade São Paulo (FFLCH-USP) e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Foi diretor-fundador do Instituto de Estudos Avançados da USP. É pesquisador da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas. Autor, entre outros, de Ideologia da Cultura Brasileira (Editora 34), prepara-se para o lançamento de História do Brasil - Uma Interpretação (Senac), escrito em parceria com sua mulher, a historiadora Adriana Lopez.
Na semana que passou, Carlos Guilherme Mota lembrou-se muito da frase de Caio Prado Júnior. E à luz dessa lembrança, ele concedeu ao Aliás a entrevista que segue:
A história do sistema prisional no Brasil é uma seqüência de atos de barbárie?
Quando houve a Inconfidência Mineira, ou mesmo a Revolta dos Alfaiates, as condições carcerárias eram miseráveis. Há descrições disso. E olha que foram presos ouvidor, desembargador, advogado. Tem-se a idéia de que (o jurista e poeta luso-brasileiro) Cláudio Manuel da Costa não teria suportado a situação e cometido suicídio. Mais adiante, em 1817, revolucionários do Nordeste foram presos na Bahia, entre eles Antônio Carlos de Andrada, irmão de José Bonifácio, e o clérigo Francisco Muniz Tavares. Eram pessoas, digamos, de alto coturno, tiveram alguns privilégios. Ainda assim seus testemunhos do cárcere são um horror. Durante todo o século 19 as condições são, sim, de barbárie. Não há a idéia de cidadania como a temos hoje, nem minimamente. Nos anos 1920 e 1930, comunistas e anarquistas eram recolhidos em presídios como o famoso Maria Zélia, no bairro da Liberdade, em São Paulo. Ficavam confinados em solitárias com água pingando na cabeça. Imperava por aqui - e de alguma forma ainda impera - a lei da fazenda: se você fez alguma coisa errada, mando um capanga te pegar. Se você é um criminoso, significa que pode ser morto. É por isso que, risonhamente, diz-se que a única contribuição que o Brasil deu para a república no mundo foi a tocaia. Aqui sempre houve exímios matadores.
Por que a maneira cruel de lidar com a pessoa presa se perpetua na história do Brasil?
O ex-presidente Fernando Henrique disse o seguinte à revista Piauí: “Falta ao Brasil a convicção profunda de que a lei conta”. É uma boa frase. Mas por que falta essa convicção? Porque a maneira como se pensa o direito no País permanece dentro de uma tradição estamental, do senhoriato, escravagista. Desde o Império, nossa elite nunca deixou de ser colonial e senzaleira, ainda que tenhamos transitado da economia dos escravos para a economia assalariada. Ela é aquilo que o ex-governador Cláudio Lembo denominou muito bem, num desabafo: a elite branca e má. Hoje é sabido que, no episódio dos ataques do PCC, Lembo foi acossado para mandar matar todo o mundo.
A elite brasileira é atrasada a esse ponto?
O Brasil nunca foi dado a revoluções, como as que aconteceram em outros países. O resultado é que o senhoriato gerado pelo período colonial se metamorfoseia e não há uma ruptura. Essa camada dirigente se reformula cada vez que há um movimento social mais vigoroso. A ele se opõe uma contra-revolução preventiva. Isso é o que explica a paz no Segundo Reinado, de 1840 a 1889. E ainda há muitos historiadores ingênuos que vêem dom Pedro II como grande imperador, transformado-o até em capa de Veja como “o imperador-presidente”. Este foi um período em que não se construíram universidades no ritmo que se fez em outros lugares, não se aboliu a escravidão - somente ao final e mesmo assim por pressões externas. A tal “paz imperial” se deveu a uma máquina de opressão plena. O senhoriato de então vem até os dias de hoje. O Sarney não pode vir a ser presidente do Senado? Veja Sarney e Roseana, ACM e ACM Neto. O que existe no Brasil são capitanias hereditárias.
E o que isso tem a ver com a situação das cadeias?
O problema não é apenas daqueles que estão atrás das grades. Não adianta ficarmos daqui como biólogos de laboratório olhando as formigas. Nós todos somos as formigas, aprisionadas por um modelo ancestral. A sociedade civil, se é que ela existe, só faz grandes movimentos quando há carestia. Projetos sociais e políticos mais vigorosos nem entram na pauta dos partidos. Veja a inconsistência ideológica atual do PSDB, por exemplo. É um partido que se pretende socialista. O próprio petismo está dividido. Em quantas facções? Essa semana, uma matéria do Estadão disse que as cadeias de São Paulo têm 231 adolescentes. O ponto mais grave disso é que há uma indiscriminação entre adultos e menores, homens e mulheres. Estamos caminhando de marcha à ré e em alta velocidade. Tudo isso faz parte da situação em que nos metemos: há bolsões socioeconômicos de riqueza e ilhas da fantasia socioculturais. O que se vê é a vitória da cultura do marketing e da sociedade do espetáculo. E com isso se enterra a memória de qualquer pretensão à sociedade civil moderna.
Qual é seu conceito de sociedade civil moderna?
Uma sociedade em que o contrato social é nítido e respeitado. Em que são observados os deveres e as obrigações dos cidadãos. Nós somos todos prisioneiros. Chegamos a um momento-limite da história. Não é que “daqui para a frente é a barbárie”. Já é a barbárie. O sistema carcerário é apenas o intestino de todo um organismo doente.
Essa imagem remete a uma parcela, digamos, descartável da população. É isso mesmo?
É uma imagem forte. Mas pense em Tropa de Elite, o filme. Há boas cabeças dizendo que é daquela forma mesmo que o sistema vai se depurar. Eu acho que falta a essas pessoas consultar os grandes historiadores. Em Formação do Brasil Contemporâneo, Caio Prado Júnior faz um corte no ano de 1808. Ali se vê algo que é importante para entendermos a sociedade brasileira de hoje: há uma imensa massa de população que, não sendo de escravos, não podia ser de elite. São aqueles que (a historiadora) Laura de Mello e Souza chama de “os desqualificados” - a massa. Se você quiser reencontrar esses personagens pode ir, por exemplo, à fila de uma lotérica. São pessoas que estão ali para fazer uma aposta: não sendo escravos, gostariam de ser ricos. É uma massa que mal sabe fazer fila. Não quero propor disciplina militar, mas isso denota alguma coisa sobre a posição de cada um numa sociedade minimamente organizada. Aqui na Oscar Freire (nos Jardins, onde mora), catadores de papel andam com seus carrinhos na contramão às 6 horas da tarde. Por outro lado, há executivos de Harley Davidson que trafegam pela calçada. Chegamos a um ponto em que o cárcere não é a grande questão.
O senhor parece discordar da visão de um Brasil que, embora desigual, mantém uma certa harmonia.
Um país com 400 anos de escravidão não pode ser harmonioso. No Brasil, a ideologia exerce seu papel, que é o de arredondar as diferenças e ocultar o real. Mas o real está posto, nas lutas de classes entre os estamentos senhoriais e as castas lá embaixo. Somos uma sociedade muito conflituada, e por aí podemos entender melhor os fatos que sempre ocorreram nos cárceres brasileiros.
A Justiça não deveria dar conta dos excessos ocorridos nas prisões?
A legislação brasileira sempre funcionou para proteger a propriedade. Em outros tempos, se houve uma preocupação com o escravo, era de que não fosse “danificado” enquanto mercadoria. Com a imigração acontecida em princípios do século 20, muitas idéias de caráter socialista, sindicalista e anarquista acabavam em ações de deportação ou desterro - “Desterro”, aliás, batiza muitas cidades brasileiras. No Estado Novo, por volta de 1937, o então ministro da Justiça Francisco Campos criou uma frase emblemática: “Governar é prender”. Como falar de uma nova sociedade civil a partir de uma idéia como essa? Como pensar nisso se sempre tomamos o criminoso por um ser execrável - e, pior, uma pessoa matável?
Como funcionavam as masmorras do Estado Novo?
O militante comunista Harry Berger, figura de porte internacional, esteve preso com Luís Carlos Prestes em uma dessas masmorras. Com o passar do tempo, as unhas e os cabelos de Berger foram ficando muito compridos. Durante rompantes de loucura, ele urrava. A idéia era fazer o mesmo com Prestes - deixá-lo louco. Mas ele agüentou firme. Sobral Pinto, que era católico, foi quem conseguiu a soltura de Harry Berger. Diante de Getúlio, o que o grande jurista fez foi citar as normas da Sociedade Protetora dos Animais.
Como o golpe de 64 contribuiu para a escalada desse tipo de violência?
Os militares substituíram os delegadões pseudoliberais - xerifes com alguma bibliografia - que haviam surgido no final dos anos 40. Com o Deops, introduziram-se os métodos sistemáticos de mapeamento e extração de informação. Até 1976, pelo menos, muita gente foi morta sob tortura nos porões da ditadura, como se sabe. É dessa época também o nosso baby boom. Explico: Marcola não tem por volta de 40 anos? Ele não é filho de Kennedy, como se diz nos Estados Unidos a respeito dos baby boomers. Marcola, podemos dizer, é um sobrinho do Delfim.
Por que a abertura política não conseguiu mudar a situação nas cadeias no Brasil?
O deputado José Genoino já disse que, por terem sido policiados, muitos dos políticos eleitos depois da ditadura não sabem organizar a força policial. Todos os ministros da Justiça desse período - quase todos meus amigos - foram razoavelmente condescendentes com este quadro mental. Para além dos direitos humanos, há uma coisa que são os direitos da cidadania, que por aqui nunca foram observados. No Brasil, as fronteiras da cidadania e da não-cidadania se confundem. Na Inglaterra, Estados Unidos, Alemanha, isso é diferente porque há uma sociedade de contratos, a começar pelos de trabalho. Se a loja fecha às 18 horas, ninguém será atendido em Paris às 18h10. Nós ainda vivemos numa sociedade de status - dependendo do seu, você pode ser recebido em qualquer lugar, ainda que esteja complemente fora do horário. Há uma segunda questão: em 1970, éramos 90 milhões de habitantes no Brasil. Esse número dobrou. Como este Estado patrimonialista, afeito ao neocoronelismo político e ao populismo vai providenciar educação para a cidadania dessa gente? Aliás, aí estão eles, os tais desqualificados do período colonial...
Como promover a inclusão dessas pessoas?
Inclusão onde? Num sistema que tinha como chefe de um dos poderes o Renan Calheiros? Que pode agora ser substituído por José Sarney? Num sistema que tem o pântano do PMDB, em que todas as boas idéias chafurdam? A cada vez que a sociedade civil avança, é preciso que se construam mecanismos para que não haja retrocessos. Mas, infelizmente, a história do Brasil mostra que fazemos o contrário e andamos para trás.
O senhor vê alguma chance de um presidiário sair da cadeia melhor do que entrou?
Os presídios, hoje, comportam pelo menos o dobro de gente do que deveriam. Não há nenhum projeto consistente de reeducação. Dizer que não há verbas para tal é besteira. Para a sociedade civil burguesa, seria muito mais barato bancar isso do que ficar pagando automóveis blindados e seguranças. Mas não: esses figuras fora da lei são colocadas também para fora do direito, e assim podem ser mortas. É desse jeito desde a época da Colônia - uma jurisprudência rústica do mundo real. Daí que, em certos bairros das periferias brasileiras, é quase normal a presença dos justiceiros. De dia eles estão de farda, de noite fazem o serviço extra.
Se é mais barato recuperar o preso, por que isso não acontece?
Justamente porque vivemos o capitalismo senzaleiro. Nosso empresariado ainda é colonial. O supermercado ao lado da minha casa funciona como um porto: caminhões-contêiners chegam a qualquer hora da noite para descarregar mercadoria, em total desacordo com a lei. Na outra ponta, senhoras que lá fazem compras deixam seus motoristas estacionados onde não pode. E o menino do caixa, coitado, tem 15 minutos para almoçar. Se o sistema carcerário é o intestino, a cabeça do organismo é essa elite com mentalidade imperial. Aquilo que Cláudio Lembro chamou de a elite branca e má, está bem descrito sociológica e juridicamente por Raymundo Faoro. O modelo que estamos vivendo hoje, que nem Lula nem FHC desmontaram, é o modelo autocrático burguês. Podia ser democrático burguês, mas não é. Mário Covas dizia: “Precisamos de um choque de capitalismo”. Capitalismo vem junto com projeto nacional. Mas não é isso o que temos. Ao contrário, são medidas provisórias, essa negociação indecente com a Câmara e o Senado, as concessões insuportáveis para que se aprove a CPMF. Uma vez, Caio Prado Júnior me disse a seguinte frase: “Toda a história do Brasil sempre foi um negócio. Só um negócio”. É isso.
O que fazer diante do quadro crítico que estamos vivendo com relação à questão carcerária?
Com a ausência de políticas públicas que coloquem nos eixos a antiga questão nacional, não chegaremos a lugar nenhum. Conselhinhos ou conselhões, quase figurativos, com figurinhas marcadas, vão fazer com que continuemos em marcha à ré. A propósito, se é para andar para trás, que os juízes pelo menos saiam de vez em quando dos tribunais para inspecionar as cadeias, inclusive na calada da noite. Assim prescreviam as Ordenações Filipinas. Além disso, que se sonegue menos, que a máquina do Estado seja desinchada de aspones e parentelas, que o rigor com a coisa pública seja observada. Não se trata, em casos de desvios vultosos de verbas, de perda do cargo - mas de prisão rigorosa, de ministros a servidores subalternos, como acontece na França, nos Estados Unidos, na Alemanha. Que os aparelhos de Estado se reaparelhem, a partir de novas concepções de educação, com pedagogos universitários especializados em educação prisional. Que requalifiquem carcereiros e funcionários de presídios com professores nos locais, assim como médicos, dentistas, profissionais da computação e bons psicólogos. Um serviço social genérico consola, mas não adianta. Em suma, profissionais que forneçam elementos para uma requalificação social dos marginalizados nos vários ramos, de hotelaria e marcenaria ao torno mecânico. Caso contrário, os presídios continuarão sendo escolas do crime.
Para fechar: qual foi o primeiro pensamento que lhe veio à cabeça quando viu as fotos de presos acorrentados a pilastras numa delegacia de Santa Catarina?
O Brasil é muito atrasado. Muito atrasado. Muito...
Como dito, visto no Blog Entrelinhas.
Você também está atrás das grades
Fred Melo Paiva
No final dos anos 70, Carlos Guilherme Mota costumava receber em sua casa a visita do também historiador Caio Prado Júnior. Tomavam vinho juntos. Caio Prado gostava dos chilenos da marca Concha y Toro. Carlos Guilherme gostava de Caio Prado - sentia-se visitado pela versão brasileira de um Eric Hobsbawm. Diante do grande mestre, tentava extrair dele “umas cinco frases para repassar aos seus filhos e alunos”. Certa vez, foi direto ao ponto: “Professor, qual é a sua mensagem? O que o senhor me diz sobre a história do Brasil?”. Caio Prado Júnior respondeu: “O Brasil é muito atrasado”. Carlos Guilherme Mota achou a frase “um pouco pobre”. Insistiu: “Mas como assim?”. O Caio: “Muito atrasado. Muito”. Carlos Guilherme deixou pra lá.
“Historiador das idéias”, Carlos Guilherme Santos Serôa da Mota é professor titular de história da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade São Paulo (FFLCH-USP) e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Foi diretor-fundador do Instituto de Estudos Avançados da USP. É pesquisador da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas. Autor, entre outros, de Ideologia da Cultura Brasileira (Editora 34), prepara-se para o lançamento de História do Brasil - Uma Interpretação (Senac), escrito em parceria com sua mulher, a historiadora Adriana Lopez.
Na semana que passou, Carlos Guilherme Mota lembrou-se muito da frase de Caio Prado Júnior. E à luz dessa lembrança, ele concedeu ao Aliás a entrevista que segue:
A história do sistema prisional no Brasil é uma seqüência de atos de barbárie?
Quando houve a Inconfidência Mineira, ou mesmo a Revolta dos Alfaiates, as condições carcerárias eram miseráveis. Há descrições disso. E olha que foram presos ouvidor, desembargador, advogado. Tem-se a idéia de que (o jurista e poeta luso-brasileiro) Cláudio Manuel da Costa não teria suportado a situação e cometido suicídio. Mais adiante, em 1817, revolucionários do Nordeste foram presos na Bahia, entre eles Antônio Carlos de Andrada, irmão de José Bonifácio, e o clérigo Francisco Muniz Tavares. Eram pessoas, digamos, de alto coturno, tiveram alguns privilégios. Ainda assim seus testemunhos do cárcere são um horror. Durante todo o século 19 as condições são, sim, de barbárie. Não há a idéia de cidadania como a temos hoje, nem minimamente. Nos anos 1920 e 1930, comunistas e anarquistas eram recolhidos em presídios como o famoso Maria Zélia, no bairro da Liberdade, em São Paulo. Ficavam confinados em solitárias com água pingando na cabeça. Imperava por aqui - e de alguma forma ainda impera - a lei da fazenda: se você fez alguma coisa errada, mando um capanga te pegar. Se você é um criminoso, significa que pode ser morto. É por isso que, risonhamente, diz-se que a única contribuição que o Brasil deu para a república no mundo foi a tocaia. Aqui sempre houve exímios matadores.
Por que a maneira cruel de lidar com a pessoa presa se perpetua na história do Brasil?
O ex-presidente Fernando Henrique disse o seguinte à revista Piauí: “Falta ao Brasil a convicção profunda de que a lei conta”. É uma boa frase. Mas por que falta essa convicção? Porque a maneira como se pensa o direito no País permanece dentro de uma tradição estamental, do senhoriato, escravagista. Desde o Império, nossa elite nunca deixou de ser colonial e senzaleira, ainda que tenhamos transitado da economia dos escravos para a economia assalariada. Ela é aquilo que o ex-governador Cláudio Lembo denominou muito bem, num desabafo: a elite branca e má. Hoje é sabido que, no episódio dos ataques do PCC, Lembo foi acossado para mandar matar todo o mundo.
A elite brasileira é atrasada a esse ponto?
O Brasil nunca foi dado a revoluções, como as que aconteceram em outros países. O resultado é que o senhoriato gerado pelo período colonial se metamorfoseia e não há uma ruptura. Essa camada dirigente se reformula cada vez que há um movimento social mais vigoroso. A ele se opõe uma contra-revolução preventiva. Isso é o que explica a paz no Segundo Reinado, de 1840 a 1889. E ainda há muitos historiadores ingênuos que vêem dom Pedro II como grande imperador, transformado-o até em capa de Veja como “o imperador-presidente”. Este foi um período em que não se construíram universidades no ritmo que se fez em outros lugares, não se aboliu a escravidão - somente ao final e mesmo assim por pressões externas. A tal “paz imperial” se deveu a uma máquina de opressão plena. O senhoriato de então vem até os dias de hoje. O Sarney não pode vir a ser presidente do Senado? Veja Sarney e Roseana, ACM e ACM Neto. O que existe no Brasil são capitanias hereditárias.
E o que isso tem a ver com a situação das cadeias?
O problema não é apenas daqueles que estão atrás das grades. Não adianta ficarmos daqui como biólogos de laboratório olhando as formigas. Nós todos somos as formigas, aprisionadas por um modelo ancestral. A sociedade civil, se é que ela existe, só faz grandes movimentos quando há carestia. Projetos sociais e políticos mais vigorosos nem entram na pauta dos partidos. Veja a inconsistência ideológica atual do PSDB, por exemplo. É um partido que se pretende socialista. O próprio petismo está dividido. Em quantas facções? Essa semana, uma matéria do Estadão disse que as cadeias de São Paulo têm 231 adolescentes. O ponto mais grave disso é que há uma indiscriminação entre adultos e menores, homens e mulheres. Estamos caminhando de marcha à ré e em alta velocidade. Tudo isso faz parte da situação em que nos metemos: há bolsões socioeconômicos de riqueza e ilhas da fantasia socioculturais. O que se vê é a vitória da cultura do marketing e da sociedade do espetáculo. E com isso se enterra a memória de qualquer pretensão à sociedade civil moderna.
Qual é seu conceito de sociedade civil moderna?
Uma sociedade em que o contrato social é nítido e respeitado. Em que são observados os deveres e as obrigações dos cidadãos. Nós somos todos prisioneiros. Chegamos a um momento-limite da história. Não é que “daqui para a frente é a barbárie”. Já é a barbárie. O sistema carcerário é apenas o intestino de todo um organismo doente.
Essa imagem remete a uma parcela, digamos, descartável da população. É isso mesmo?
É uma imagem forte. Mas pense em Tropa de Elite, o filme. Há boas cabeças dizendo que é daquela forma mesmo que o sistema vai se depurar. Eu acho que falta a essas pessoas consultar os grandes historiadores. Em Formação do Brasil Contemporâneo, Caio Prado Júnior faz um corte no ano de 1808. Ali se vê algo que é importante para entendermos a sociedade brasileira de hoje: há uma imensa massa de população que, não sendo de escravos, não podia ser de elite. São aqueles que (a historiadora) Laura de Mello e Souza chama de “os desqualificados” - a massa. Se você quiser reencontrar esses personagens pode ir, por exemplo, à fila de uma lotérica. São pessoas que estão ali para fazer uma aposta: não sendo escravos, gostariam de ser ricos. É uma massa que mal sabe fazer fila. Não quero propor disciplina militar, mas isso denota alguma coisa sobre a posição de cada um numa sociedade minimamente organizada. Aqui na Oscar Freire (nos Jardins, onde mora), catadores de papel andam com seus carrinhos na contramão às 6 horas da tarde. Por outro lado, há executivos de Harley Davidson que trafegam pela calçada. Chegamos a um ponto em que o cárcere não é a grande questão.
O senhor parece discordar da visão de um Brasil que, embora desigual, mantém uma certa harmonia.
Um país com 400 anos de escravidão não pode ser harmonioso. No Brasil, a ideologia exerce seu papel, que é o de arredondar as diferenças e ocultar o real. Mas o real está posto, nas lutas de classes entre os estamentos senhoriais e as castas lá embaixo. Somos uma sociedade muito conflituada, e por aí podemos entender melhor os fatos que sempre ocorreram nos cárceres brasileiros.
A Justiça não deveria dar conta dos excessos ocorridos nas prisões?
A legislação brasileira sempre funcionou para proteger a propriedade. Em outros tempos, se houve uma preocupação com o escravo, era de que não fosse “danificado” enquanto mercadoria. Com a imigração acontecida em princípios do século 20, muitas idéias de caráter socialista, sindicalista e anarquista acabavam em ações de deportação ou desterro - “Desterro”, aliás, batiza muitas cidades brasileiras. No Estado Novo, por volta de 1937, o então ministro da Justiça Francisco Campos criou uma frase emblemática: “Governar é prender”. Como falar de uma nova sociedade civil a partir de uma idéia como essa? Como pensar nisso se sempre tomamos o criminoso por um ser execrável - e, pior, uma pessoa matável?
Como funcionavam as masmorras do Estado Novo?
O militante comunista Harry Berger, figura de porte internacional, esteve preso com Luís Carlos Prestes em uma dessas masmorras. Com o passar do tempo, as unhas e os cabelos de Berger foram ficando muito compridos. Durante rompantes de loucura, ele urrava. A idéia era fazer o mesmo com Prestes - deixá-lo louco. Mas ele agüentou firme. Sobral Pinto, que era católico, foi quem conseguiu a soltura de Harry Berger. Diante de Getúlio, o que o grande jurista fez foi citar as normas da Sociedade Protetora dos Animais.
Como o golpe de 64 contribuiu para a escalada desse tipo de violência?
Os militares substituíram os delegadões pseudoliberais - xerifes com alguma bibliografia - que haviam surgido no final dos anos 40. Com o Deops, introduziram-se os métodos sistemáticos de mapeamento e extração de informação. Até 1976, pelo menos, muita gente foi morta sob tortura nos porões da ditadura, como se sabe. É dessa época também o nosso baby boom. Explico: Marcola não tem por volta de 40 anos? Ele não é filho de Kennedy, como se diz nos Estados Unidos a respeito dos baby boomers. Marcola, podemos dizer, é um sobrinho do Delfim.
Por que a abertura política não conseguiu mudar a situação nas cadeias no Brasil?
O deputado José Genoino já disse que, por terem sido policiados, muitos dos políticos eleitos depois da ditadura não sabem organizar a força policial. Todos os ministros da Justiça desse período - quase todos meus amigos - foram razoavelmente condescendentes com este quadro mental. Para além dos direitos humanos, há uma coisa que são os direitos da cidadania, que por aqui nunca foram observados. No Brasil, as fronteiras da cidadania e da não-cidadania se confundem. Na Inglaterra, Estados Unidos, Alemanha, isso é diferente porque há uma sociedade de contratos, a começar pelos de trabalho. Se a loja fecha às 18 horas, ninguém será atendido em Paris às 18h10. Nós ainda vivemos numa sociedade de status - dependendo do seu, você pode ser recebido em qualquer lugar, ainda que esteja complemente fora do horário. Há uma segunda questão: em 1970, éramos 90 milhões de habitantes no Brasil. Esse número dobrou. Como este Estado patrimonialista, afeito ao neocoronelismo político e ao populismo vai providenciar educação para a cidadania dessa gente? Aliás, aí estão eles, os tais desqualificados do período colonial...
Como promover a inclusão dessas pessoas?
Inclusão onde? Num sistema que tinha como chefe de um dos poderes o Renan Calheiros? Que pode agora ser substituído por José Sarney? Num sistema que tem o pântano do PMDB, em que todas as boas idéias chafurdam? A cada vez que a sociedade civil avança, é preciso que se construam mecanismos para que não haja retrocessos. Mas, infelizmente, a história do Brasil mostra que fazemos o contrário e andamos para trás.
O senhor vê alguma chance de um presidiário sair da cadeia melhor do que entrou?
Os presídios, hoje, comportam pelo menos o dobro de gente do que deveriam. Não há nenhum projeto consistente de reeducação. Dizer que não há verbas para tal é besteira. Para a sociedade civil burguesa, seria muito mais barato bancar isso do que ficar pagando automóveis blindados e seguranças. Mas não: esses figuras fora da lei são colocadas também para fora do direito, e assim podem ser mortas. É desse jeito desde a época da Colônia - uma jurisprudência rústica do mundo real. Daí que, em certos bairros das periferias brasileiras, é quase normal a presença dos justiceiros. De dia eles estão de farda, de noite fazem o serviço extra.
Se é mais barato recuperar o preso, por que isso não acontece?
Justamente porque vivemos o capitalismo senzaleiro. Nosso empresariado ainda é colonial. O supermercado ao lado da minha casa funciona como um porto: caminhões-contêiners chegam a qualquer hora da noite para descarregar mercadoria, em total desacordo com a lei. Na outra ponta, senhoras que lá fazem compras deixam seus motoristas estacionados onde não pode. E o menino do caixa, coitado, tem 15 minutos para almoçar. Se o sistema carcerário é o intestino, a cabeça do organismo é essa elite com mentalidade imperial. Aquilo que Cláudio Lembro chamou de a elite branca e má, está bem descrito sociológica e juridicamente por Raymundo Faoro. O modelo que estamos vivendo hoje, que nem Lula nem FHC desmontaram, é o modelo autocrático burguês. Podia ser democrático burguês, mas não é. Mário Covas dizia: “Precisamos de um choque de capitalismo”. Capitalismo vem junto com projeto nacional. Mas não é isso o que temos. Ao contrário, são medidas provisórias, essa negociação indecente com a Câmara e o Senado, as concessões insuportáveis para que se aprove a CPMF. Uma vez, Caio Prado Júnior me disse a seguinte frase: “Toda a história do Brasil sempre foi um negócio. Só um negócio”. É isso.
O que fazer diante do quadro crítico que estamos vivendo com relação à questão carcerária?
Com a ausência de políticas públicas que coloquem nos eixos a antiga questão nacional, não chegaremos a lugar nenhum. Conselhinhos ou conselhões, quase figurativos, com figurinhas marcadas, vão fazer com que continuemos em marcha à ré. A propósito, se é para andar para trás, que os juízes pelo menos saiam de vez em quando dos tribunais para inspecionar as cadeias, inclusive na calada da noite. Assim prescreviam as Ordenações Filipinas. Além disso, que se sonegue menos, que a máquina do Estado seja desinchada de aspones e parentelas, que o rigor com a coisa pública seja observada. Não se trata, em casos de desvios vultosos de verbas, de perda do cargo - mas de prisão rigorosa, de ministros a servidores subalternos, como acontece na França, nos Estados Unidos, na Alemanha. Que os aparelhos de Estado se reaparelhem, a partir de novas concepções de educação, com pedagogos universitários especializados em educação prisional. Que requalifiquem carcereiros e funcionários de presídios com professores nos locais, assim como médicos, dentistas, profissionais da computação e bons psicólogos. Um serviço social genérico consola, mas não adianta. Em suma, profissionais que forneçam elementos para uma requalificação social dos marginalizados nos vários ramos, de hotelaria e marcenaria ao torno mecânico. Caso contrário, os presídios continuarão sendo escolas do crime.
Para fechar: qual foi o primeiro pensamento que lhe veio à cabeça quando viu as fotos de presos acorrentados a pilastras numa delegacia de Santa Catarina?
O Brasil é muito atrasado. Muito atrasado. Muito...
Como dito, visto no Blog Entrelinhas.
Marcadores: Brasil, cidadania, direitos da cidadania, direitos do cidadão, direitos humanos
2 Comments:
Dois excelentes textos ai abaixo – o primeiro publicado na coluna do "Ombudsman", na Folha de São Paulo, e o segundo na página na Internet, do Observatório da Imprensa – que demonstram como a Folha de S. Paulo faz a blindagem do governador paulista José Serra. São imperdíveis e os leitores da Folha precisam conhecê-los:
1 - Coluna do "Ombudsman" - São Paulo, domingo, 23 de dezembro de 2007:
Folha, Serra, tendência e método
(Reproduzo nota que escrevi na crítica da terça-feira.)
Na semana passada, lamentei que a Folha não tivesse procurado o governador José Serra para ele se pronunciar sobre a reintegração de posse na favela Real Parque. O terreno pertence a uma empresa ligada ao Estado; a Polícia Militar, que executou a ordem judicial, é subordinada ao governador e a autoridades que ele nomeia diretamente ou não.
Ontem, lamentei que o jornal não tivesse procurado Serra para ele se pronunciar sobre a morte de um lutador (...) em dependências do Estado.
Hoje, lamento que o jornal não tenha procurado Serra para ele se pronunciar sobre a morte por tortura -de acordo com laudo do IML- de um adolescente (...) preso por policiais militares.
Três exemplos não asseguram que se esteja diante de um método. Indicam, no entanto, uma tendência.
O jornal, cujo dever é fiscalizar o poder, todos os poderes, deveria refletir sobre isso.
2 – "Observatório da Imprensa" - em 25/12/2007:
SERRA NA FOLHA:
Como fazer dos limões uma laranjada
Por Celene Araújo
Criado para realizar pesquisas de opinião pública e eleitorais com o máximo rigor técnico e agilidade, o Datafolha firmou sólida reputação a partir de 1989, com a volta das eleições diretas, para as quais a própria Folha de S.Paulo teve um papel crucial e digno de constar como capítulo da História do Brasil.
Desviando-se dessa trajetória memorável, os belos limões do Datafolha ajudaram o jornal a fazer uma laranjada no domingo (16/12) para parafrasear uma expressão em voga atualmente.
Como chamada na primeira página, saiu uma relevante e oportuna pesquisa do instituto com um ranking de avaliação de governadores. O resultado mostrou a seguinte classificação e suas respectivas notas e porcentagem de aprovação:
1º - Aécio Neves (PSDB) - Minas Gerais - 7,7
2º - Cid Gomes (PSB) - Ceará - 6,6
3º - José Serra (PSDB) - São Paulo - 6,5
4º - Eduardo Campos (PSB) - Pernambuco - 6,4
5º - Roberto Requião (PMDB) - Paraná - 6,3
6º - Luiz Henrique da Silveira (PMDB) - Santa Catarina - 6,1
7º - Jacques Wagner (PT) - Bahia - 6,0
8º - Sérgio Cabral (PMDB) - Rio de Janeiro - 5,9
9º - José Roberto Arruda (DEM) - Distrito Federal - 5,3
10º - Yeda Crusius (PSDB) - Rio Grande do Sul - 4,2
O "foguete" Serra
Nas páginas internas, o assunto se desdobra ao longo de seis merecidas páginas, com matérias específicas dedicadas a vários dos governadores ranqueados. Veja se um leitor atento da edição de domingo consegue descobrir o que está destoando na série de títulos escolhidos pela Folha para suas matérias internas:
** "Aécio sofre poucas resistências para administrar Minas"
** "Tucana [Yeda Crusius] se tornou alvo no RS da classe média, do funcionalismo e do Judiciário"
** "Aprovação a Serra aumenta 10 pontos percentuais em 7 meses"
** "Avaliação positiva de Cabral cai 25%"
** "Governo do DF é rejeitado por 30% do eleitorado"
** "Só 2 dos 45 deputados do Ceará fazem oposição aberta a Cid Gomes"
** "Wagner ainda tem problemas essenciais"
Não precisa ser catedrático em semiótica para se constatar que todas as matérias são críticas aos respectivos governadores que lhes servem de tema, exceto aquela dedicada a José Serra, o governador de São Paulo. Senão, vejamos: Aécio e Cid não têm oposição em seus estados. Yeda Crusius enfrenta o ataque da classe média e dos servidores. Cabral cai, Arruda é rejeitado e Wagner "ainda tem problemas essenciais". Mas José Serra, qual foguete, "aumenta 10 pontos percentuais em 7 meses"...
E quem desaprova?
De acordo com o Datafolha, as três maiores notas foram as seguintes: Aécio (7,7), Cid Gomes (6,6) e Serra (6,5). Nas matérias específicas sobre os governadores, o jornal Folha de S.Paulo procura mostrar que Aécio e Cid Gomes só têm um elevado grau de aceitação porque não são fustigados pela oposição no plano regional. De 77 deputados estaduais em Minas, apenas dez fazem oposição a Aécio. De 45 deputados estaduais do Ceará, só dois enfrentam Cid Gomes, mesmo assim para fazer "críticas pontuais" na área de segurança pública. Cid Gomes passeia "com um governo quase sem oposição, formado por um leque de aliados que vai do PT ao PSDB" – e "até deputados de partidos excluídos da base aliada, como o DEM, poupam Cid de críticas mais incisivas".
Por que a Folha não concedeu a Aécio e Cid Gomes o direito de serem bem avaliados pela população por méritos de suas administrações públicas, como fez com José Serra?
Além do festivo título, encontro na matéria de Serra que ele enfrentou crises com o meio acadêmico e com o acidente nas obras do Metrô, ameaças de greve e manifestações. A Folha me informa que o governador concedeu reajustes para os funcionários na área de segurança, antecipou bônus na Educação e adiantou o décimo terceiro. Apesar dos escândalos de corrupção que enfrentou, não houve ataques do PCC nem rebeliões na Fundação Casa. Melhor: conseguiu redução de 21,76% nos homicídios, vendeu a folha de pagamento para a Nossa Caixa, parcelou a dívida, aumentou o limite de endividamento do Estado, garantiu recursos para investimentos como recuperação de vicinais, faculdades de tecnologia e o Rodoanel. Uau!
O texto esmiúça o levantamento, identificando os melhores desempenhos alcançados de acordo com os extratos sociais definidos pela pesquisa. E quem desaprova o governo Serra, por que o faz?
Neste quesito vale observar que no caso dos governadores mais bem avaliados que Serra não se tem informação sobre nenhum recorte da pesquisa (renda, escolaridade etc.)
Informar o público
Ao interpretar os números do Datafolha, o jornal destilou o preconceito segundo o qual mineiros e cearenses – ao contrário dos paulistas – não conhecem a realidade e, por isso, apóiam Aécio e Cid Gomes. Ou está dizendo que, se houvesse uma oposição vigorosa na Assembléia, o povo certamente deixaria de apoiá-los. Mas, em que pilar da ciência política está assentada a ligação de causa e efeito entre baixa oposição parlamentar e elevada popularidade de um governante? Ou o seu contrário, de elevada oposição e baixa popularidade do governante? Por acaso José Serra também tem boa nota (6,5) e pouco abaixo de Cid Gomes) pelo fato de se beneficiar de uma oposição complacente em São Paulo?
A edição, de seis páginas, é um primor de descumprimento do Manual de Redação no célebre capítulo sobre "ouvir o outro lado". No Ceará, a Folha ouviu o oposicionista Heitor Férrer (PDT) e usou uma declaração do secretário da Fazenda apenas para confirmar a crítica da oposição. Em Minas, todas as fontes ouvidas são de oposição – foram entrevistados a deputada do PT Elisa Costa e um sindicalista. No Rio Grande do Sul a mesma coisa: deu-se voz apenas ao deputado Raul Pont (PT) e ao presidente da Federação Sindical dos Servidores Públicos. Já em São Paulo, sabem quem foi entrevistado da oposição para falar da avaliação positiva de Serra? Ninguém... A matéria é olímpica e não traz entrevistas, fazendo um oba-oba para o governador paulista.
Um dos nomes mais em evidência para disputar o cargo de presidente da República, José Serra é um político de grande capacidade e méritos reconhecidos e respeitados até por seus adversários. Se a Folha escolher o nome dele como seu preferido para a disputa de 2010, essa pode ser uma boa opção eleitoral e um direito do jornal em fazê-lo. A cada eleição, dois expoentes das rotativas no planeta, o New York Times e o Monde, comunicam a seus leitores quais os candidatos da sua preferência, mas procuram evitar que essa escolha política contamine o noticiário. Caso a Folha adote um caminho semelhante, seria pelo menos de bom tom informar isso a seu vasto público. Com transparência, de um limão é possível sempre fazer uma boa limonada.
Os artigos demonstram a relação entre a Folha e o Serra!
Muito oportuno o texto "Folha, Serra, tendência e método", do jornalista Mário Magalhães – Ombudsman da Folha, publicado no dia 23/12, em sua coluna semanal daquele jornal. Ele aponta as reiteras "omissões" do jornal na cobertura de fatos negativos que recentemente aconteceram em São Paulo e a estratégia do jornal em poupar o governador José Serra de situações que poderiam provocar desgaste à imagem dele.
Discordo do Ombudsman somente no que diz respeito à dúvida dele sobre se há apenas uma "tendência" ou já um "método" do jornal em preservar o Serra. Na minha opinião estamos mesmo é diante de um método amplamente adotado pela Folha.
Com relação ao texto "Como fazer dos limões uma laranjada", da consultora em comunicação Cilene Araújo, publicado pelo Observatório da Imprensa, no dia 24/12, ele é bastante esclarecedor com relação às reportagens que o jornal tem publicado sobre o Serra recentemente, no tocante à divulgação das pesquisas realizadas pelo Datafolha.
Já tenho feito análises sobre as divulgações de pesquisas pela Folha de São Paulo, como trabalhos para faculdade, e quero dar a minha contribuição nesta discussão.
Afinal qual o método ou a rotina da Folha no tratamento de suas pesquisas?
Duas perguntas:
A Folha repercute o resultado com os vencedores?
A Folha compara o desempenho de alguém com os seus antecessores no cargo para dar uma visão relativa – além da absoluta -do resultado?
Depende! Se o vencedor é o Serra, a Folha repercute. Se não é, não há repercussão.
Se a comparação é favorável ao atual governador paulista, ela compara com gestões anteriores. Se não é ignora, não há comparação.
Vejam exemplos recentes:
Compara?
Em 26 de março de 2007, a Folha publicou pesquisa de avaliação dos governos estaduais. Na primeira página, a manchete foi "Governo Serra tem aprovação de 39%". Neste caso, a Folha comparou os 100 dias do Serra com os de Alckmin e os de Covas. O resultado era favorável ao Serra.
O critério de comparação foi tão importante que foi ele que justificou a manchete do jornal - favorável ao Serra, é claro. Isso já que Sergio Cabral com 48% e Aécio Neves com 71% tiveram resultados melhores do que ele.
Agora, na pesquisa publicada no dia 16 de dezembro de 2007, Serra ficou em 3º lugar, mas desta vez a Folha não comparou o resultado da avaliação do atual governador paulista com o desempenho de Alckmin após o primeiro ano de governo dele.
Por quê? Porque se comparasse ficaria claro que em pesquisa realizada na mesma época, o resultado de Alckmin foi muito melhor. Enquanto Serra teve agora 49% de aprovação, em período semelhante, Alckmin teve 65% (Pesquisa Datafolha de 04/01/2004).
E não vale argumentar que Alckmin estava há mais tempo no governo, já que, a pesquisa do dia 26 de março, também se referia aos 100 primeiros dias do "segundo" mandato de Alckmin. Se essa comparação era justa em março, agora também é!
Repercute?
Pesquisa do Datafolha para presidente, publicada no dia 05 de fevereiro de 2006, mostrou o Serra com o melhor resultado, tanto frente ao Alckmin quanto ao Lula. No dia seguinte (06/02/06), a Folha voltou ao assunto, lembrando o belo resultado do Serra. Repercutiu amplamente a pesquisa, e trouxe a seguinte manchete: "Eleitores do PSDB preferem Serra a Alckmin".
No dia 02 de dezembro de 2007, a Folha publicou pesquisa para presidente, com Serra na liderança, com o título o seguinte título: "Serra é o favorito para suceder Lula; Ciro aparece em 2º". Como se vê uma manchete bem favorável ao atual governador de São Pulo.
Novamente a Folha repercutiu a pesquisa, 48 horas após a publicação da primeira reportagem. O jornal, na edição do dia 04/12/07, aproveita mais uma vez para destacar a excelente posição do tucano nas pesquisas e traz a seguinte manchete: "Fico satisfeito, mas não fui eleito para ser candidato, afirma Serra".
No dia 16 de dezembro de 2007, Aécio Neves foi o governador mais bem avaliado do país. No dia 17 de dezembro de 2007, Beto Richa foi o prefeito de capital mais bem avaliado do país. Na reportagem sobre esta pesquisa, o prefeito de Curitiba mesmo apontado como líder do ranking recebeu apenas um registro, de cinco linhas.
A Folha não voltou ao assunto e não repercutiu o resultado com nenhum deles.
Não era o Serra!
Valeu a visita.
E de fato a Folha parece estar blindando Serra.
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