Brasileiros e a cultura do "QI"
Cumplicidade na cultura do "QI"
NÃO me dei conta de quão pouco tinha me abrasileirado, até aceitar um bico aqui, anos atrás. Antes do bico, eu era um jornalista estrangeiro, e meu convívio com brasileiros acontecia em filas, festas e outras farras.
Mas o empreguinho me aproximou das pessoas no local de trabalho, onde as regras e hierarquias eram novas para mim. Meu bico -fazer a narração em inglês de um programa bilíngue que passava em voos internacionais- me tomava só uma hora por mês.
Minha relação com os colegas de trabalho era muito fraternal e tranquila.
Isso até o dia em que eu recebi uma ligação do sonoplasta que, acidentalmente, havia apagado parte da narração que eu acabara de gravar, pedindo que voltasse ao estúdio "já, já" para regravar.
Quando perguntei se eu ganharia pelo trabalho extra, ele ficou furioso. Por quê? O sonoplasta teria de pedir a permissão do patrão e, assim, expor seu erro.
Então, quando voltei ao estúdio, fui recebido com uma cara feia e um discurso.
"Pô, cara, você se recusou a quebrar um galho para mim, me expondo para o meu chefe. Aqui dentro todo o mundo é amigo, e uma mão lava a outra."
Eu disse que o pedido para que eu voltasse "já, já" me pareceu mais uma ordem do que um favor, e que eu nunca tinha pedido a ele que lavasse minha mão para encobrir um erro meu. Perguntei como esse acordo me beneficiaria.
Mas a cara feia não mudou. Então, para fazer as pazes, eu disse: "Venho de uma cultura que valoriza o tempo do funcionário, e você vem de uma que valoriza sua cumplicidade. Mas vivo na sua cultura. Então, se esse acidente se repetir, faça seu pedido parecer um favor, não uma ordem". E, de repente, a cara feia sumiu.
Às vezes, o que cria essa cumplicidade é uma rede QI (Quem Indica), que começa na juventude.
Os empregadores aqui esperam que os funcionários, especialmente os contratados via rede QI, sejam cúmplices de suas políticas injustas. Empregados provam sua cumplicidade, fazendo horas extras, não remuneradas.
Eles compensam essa exploração emendando feriados.
Os patrões fingem não notar, porque lucram mais com o desequilíbrio do tal "uma mão lava a outra". No caso do bico, entrei nesse esquema. E, quando o larguei, as mãos que lavei apertaram a minha, como se dissessem "parabéns, gringo, você se abrasileirou".
MICHAEL KEPP, jornalista norte-americano radicado há 27 anos no Brasil, é autor do livro de crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record)
Texto publicado na Folha de São Paulo, de 17 de agosto de 2010.
Marcadores: Brasil, relações de trabalho
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