Para uma crítica da teoria crítica
Moralismo e lamúria aproximam a esquerda do pensamento conservador
UM PEQUENO teste para começar.
Leia atentamente as considerações abaixo e depois escolha o caso específico a que elas se aplicam. "No hipercapitalismo contemporâneo, em que tudo se reduz à forma da mercadoria, desaparecem os laços de solidariedade entre os indivíduos. O consumismo predomina em tudo, e com isso a busca imediata do prazer, maquinal e frenético, tem como efeito a desconsideração pelo Outro, reduzido à condição de mero objeto. O futuro deixa de ter sentido num mundo sem utopias, e os ideais coletivos são desprezados."
O trecho comenta (escolha a alternativa correta): A) Os comícios com sorteios de carro no Primeiro de Maio da Força Sindical.
B) A atitude dos plantadores de arroz com relação aos índios da Amazônia.
C) O mau desempenho da seleção brasileira de futebol nos últimos jogos.
D) O sucesso dos reality shows.
E) O assassinato da menina Isabella Nardoni.
Se você assinalou qualquer uma das alternativas, acertou. As considerações "críticas" sobre capitalismo, individualismo e consumismo, feitas a partir de um ponto de vista de esquerda, aplicam-se a qualquer um dos fenômenos que enumerei.
Mas podemos continuar o teste utilizando um vocabulário conservador. Examine o próximo trecho. "A ausência de responsabilidade e disciplina é característica do homem moderno. As falsas promessas de felicidade, difundidas a partir do século 18, nada mais criaram do que um vazio espiritual, incapaz de enfrentar o conteúdo essencialmente trágico da experiência humana. O materialismo mais grosseiro toma o lugar antes ocupado pelos valores do Sagrado, como a Família, a Vida, a Tradição, o Dever."
Desnecessário dizer que essas considerações, igualmente "críticas", mas a partir de um ponto de vista de direita, também se aplicam aos comícios da Força Sindical, à cobiça do agronegócio, ao desleixo dos craques canarinhos, ao "BBB" e ao caso Nardoni.
Claro, dirá o leitor: tanto esquerdistas quanto ultraconservadores sempre foram focos de resistência à mentalidade capitalista liberal.
O problema, a meu ver, é que nunca os discursos foram tão parecidos.
A velha lamúria da extrema direita católica, que parecia mais ou menos condenada ao esquecimento, ganha hoje em dia ares de novidade: é que muita gente já se cansou do vocabulário de esquerda.
Mas tudo se resume, a meu ver, a uma troca de vocabulário. No fundo, a atitude da esquerda, quando se exprime num tipo de crítica como a que reproduzi, tende a ser tão moralista quanto a dos teóricos conservadores.
Como foi que as coisas chegaram a esse ponto? É possível arriscar uma teoria a esse respeito.
Há coisa de 30 ou 50 anos, todas as condenações de esquerda ao consumismo, à destruição da natureza, à injustiça social, à desordem urbana, ao mundo contemporâneo em geral, tinham um horizonte muito claro: só uma mudança profunda na sociedade poderá solucionar esse conjunto de mazelas e misérias. Continua-se, com todos os motivos aliás, a desgostar do mundo contemporâneo. Mas, eliminada a perspectiva de revolucioná-lo, a crítica pode facilmente passar a ser uma simples lamúria.
Faltaria, então, recuperar a idéia de Revolução? Nunca fui entusiasta do termo e menos ainda das realidades que trazia consigo. Com revolução ou sem revolução, o pensamento de esquerda tinha entretanto outra característica.
É que a teoria não se contentava em relacionar episódios isolados a uma situação geral na sociedade (o "capitalismo tardio", a "pós-modernidade" etc.). Tratava-se de procurar, debaixo de tudo o que essa situação tem de cristalizado, as correntes que a tornam inviável.
O que pode salvar a esquerda da lamúria é procurar, segundo os velhíssimos ensinamentos de Marx, aquilo que há de diferente e de renovador, ou, vá lá a palavra, de "dialético", em cada manifestação dessa "mesma coisa" que tanto se quer criticar.
Sem ver a contradição, o que há de insustentável e de dialético na realidade, tudo (do caso Nardoni à crise do petróleo) se torna apenas "exemplo" de um esquema geral que é objeto de nosso asco; o caminho para o moralismo conservador se abrevia com isso. Sejamos mais dialéticos, companheiros.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo, de 25 de junho de 2008.
Marcadores: Marcelo Coelho, moralismo, teoria crítica
2 Comments:
O pensar dialético é fundamental. É ele que revoluciona a vida da gente. O problema é que certa esquerda aplica a dialética radical, sem síntese, sem consenso, sem convergência. E por isso, como diria o velho guerreiro, se trumbica.
Ok.
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