terça-feira, abril 06, 2010

A desconstrução de Geisel

Em sua trilogia sobre o regime militar, Elio Gaspari colocou indícios relevantes de que Geisel não era o defensor da civilização contra a barbárie de Médici. Ele jogava com os porões sem nenhum escrúpulo.

Do Valor

Uma história sem inocentes

Por Maria Inês Nassif e Paula Simas, de Brasília
01/04/2010

Jarbas Passarinho, 90 anos: para ex-ministro, no governo Geisel houve uma política de Estado de extermínio de adversários quando os militares já haviam feito a limpeza da guerrilha urbana

O aniversário de 46 anos do golpe de 1964, neste 31 de março de 2010, encontra o coronel da reserva, ex-ministro e ex-senador Jarbas Passarinho com 90 anos. Mesmo debilitado por um longo período de doença – uma septicemia que se seguiu a uma pneumonia valeu a ele uma estada na UTI e três momentos em que a morte quase bateu à porta -, Passarinho mantém uma surpreendente lucidez. Retoma quase do mesmo ponto uma conversa que teve com as repórteres oito anos atrás, quando expôs seu grande incômodo pela maneira como a história enxerga os governos dos generais-presidentes Costa e Silva (1967-1969), Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) e Ernesto Geisel (1974-1978).

Para a história, segundo ele, os dois primeiros (aos quais serviu como ministro) ficaram como governos duros – como se as atitudes tomadas por ambos decorressem de uma vontade pessoal ou do espírito antidemocrático dos dois. Do último ficou a impressão de que era alguém com grande espírito democrático – e que, dessa forma, se contrapunha aos dois governos anteriores. O ex-ministro praticamente sugere uma inversão da maneira como a história deve ver cada um desses personagens.

Passarinho propõe uma releitura que, se não consegue atenuar o conteúdo das decisões dos presidentes Costa e Silva e Médici que foram interpretadas pela história como antidemocráticas, de outro recoloca Geisel na história como um presidente particularmente duro. Para o ex-senador, Costa e Silva foi o responsável pelo AI-5, embora a decretação do ato tenha ocorrido por pressão militar, não pela convicção pessoal daquele presidente; da decisão de Médici de dar autonomia ao aparelho de repressão decorreram o descontrole e a tortura generalizada, embora tivesse deixado claro antes a seus auxiliares que não concordava com a tortura. Mas, segundo Passarinho, no governo Geisel houve política de Estado de extermínio de adversários quando os militares já haviam feito, na gestão anterior, a limpeza da guerrilha urbana, que era o que efetivamente ameaçava o regime militar.

Uma decisão presidencial, a de Geisel, eliminou fisicamente a guerrilha rural que estava isolada e matou vários dirigentes do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que nunca pegou em armas contra o regime. “Uma ordem para não fazer prisioneiros só podia vir do presidente da República, de mais ninguém.”

Passarinho define as políticas de Estado que endureceram o regime nos governos Costa e Silva e Médici como reações a ações da esquerda armada. O fato de o poder não ter sido entregue aos civis no período pós-Médici, governo que exterminou a guerrilha urbana e entregou ao sucessor a guerrilha rural – do Araguaia – totalmente isolada, foi, para ele, um ato autoritário de Geisel. “Eu tenho a triste impressão de que a guerrilha do Araguaia foi utilizada como pretexto para continuar o regime autoritário”, disse, há oito anos.

“Não havia, do meu ponto de vista, a menor razão para continuar um processo autoritário por causa da guerrilha do Araguaia [1969-1975, do PCdoB]. Era um movimento inexpressivo. Ali era uma área que, cercada, poderia resultar até na morte por fome dos guerrilheiros”, disse, na primeira entrevista. “Era um grupo de 60 pessoas completamente isolado, rompido com a União Soviética, rompido com a China de Mao Tsé-tung e apenas apoiado pela Albânia, que era o pior país em matéria de PIB da Europa”, reiterou.

Foi a convicção de que a luta armada da esquerda não constituía mais nenhum risco ao regime que levou Passarinho, no processo de escolha do sucessor do presidente Médici, a defender a entrega do poder para os civis. “Num dia qualquer de 1973, em janeiro ou fevereiro, procurou-me o meu colega de ministério Costa Cavalcanti [Passarinho era ministro da Educação]. Ele me perguntou: você tem alguma coisa contra o Geisel? Eu falei: olha, não tenho nada contra o Geisel, mas sou a favor de que, quando chegar ao fim do ano de 1973, o presidente Médici entregue o poder aos civis”, relatou.

O ex-senador teria defendido, na época, a candidatura de Leitão de Abreu, ministro da Justiça que, na sua opinião, teria sido eleito até pelo voto direto, na esteira da popularidade de Médici. “O Ronaldo Costa Couto entrevistou o nosso famoso presidente, que então era líder sindical, o Lula, em 1989, e o Lula disse que Médici ganharia qualquer eleição que disputasse. Costa Couto perguntou por que e Lula disse: ‘Porque na época nós, trabalhadores, escolhíamos o emprego que quiséssemos’.”

Na biblioteca de sua casa no Lago Norte, onde está cercado de livros que cita em profusão e de um computador que espera a pronta recuperação do dono para cumprir a sua determinação de escrever sobre a tese de que o AI-5 só ocorreu porque existia a Guerra Fria, Passarinho reitera afirmações passadas. E começa do começo.

Descreve a história brasileira no período 1964-1985 como uma sucessão de reações, que tinham, de um lado, uma ação revolucionária de esquerda, e de outro, as Forças Armadas exercendo o papel de guardiãs da ordem interna. No primeiro tempo do jogo, um presidente, João Goulart, que queria “dar um golpe de instituir a república sindicalista”. O golpe militar, por essa visão, teria sido um contragolpe – uma reação militar a uma ação da esquerda. O segundo tempo foi a decretação do AI-5 por Costa e Silva – numa reunião do Conselho Político do governo da qual Passarinho participou e declarou seu voto favorável ao ato com a frase que ficou famosa, “às favas os meus problemas de consciência”, reproduzida posteriormente. Seria, segundo ele, a reação aos grupos de esquerda que se armavam.

Nesse dia de 2010 que chegava claro pela janela de seu escritório, o ex-ministro do Trabalho de Costa e Silva explicava por que os militares pressionaram pela edição do ato institucional que dava aos militares todo o poder discricionário – de fechar o Congresso, intervir no Judiciário, suspender o habeas corpus e editar leis – ao presidente, que também era um general do Exército (e foi imposto ao Congresso numa eleição indireta, por um colégio eleitoral).

“O Costa e Silva não queria nem decretar o estado de sítio, mas ele foi compelido pelos militares a editar o AI-5. O problema é que o estado de sítio mantinha o habeas corpus. O [Carlos] Marighela [da ALN], por exemplo, foi preso e solto 21 dias depois por causa do habeas corpus. Então os militares disseram: se continuar assim, não podemos garantir a manutenção da ordem. Faz-se um esforço para prender um chefe [guerrilheiro] e a Justiça libera, a Constituição libera.”

Daí por que, diz o coronel da reserva, a proposta mediadora do vice-presidente civil Pedro Aleixo, de decretar o estado de sítio em vez de se tomar a extrema medida de edição do AI-5, não resolvia. “Qualquer medida de restrição das liberdades aplicada pelo governo no estado de sítio e aprovada, naturalmente, pelo Congresso, mantém o habeas corpus.” Costa e Silva não chegou a se utilizar do instrumento entre a sua edição, em dezembro de 1968, e a trombose que o levaria ao seu afastamento e à sua morte, em agosto de 1969.

No governo Médici, o movimento reativo teria sido a descentralização da comunidade de informações. E, no fim desse período, admite Passarinho, o extermínio de opositores como política de Estado. Essas duas decisões partiram, segundo o ex-ministro, do recrudescimento da ofensiva da guerrilha urbana. Ao receber um informe do seu chefe da Casa Militar, Orlando Geisel, sobre um jovem major que começava o treinamento no setor de informações do Exército e foi metralhado por um guerrilheiro, Médici disse ao chefe militar: “Mas só os nossos é que morrem?” A decisão de descentralizar as decisões, para que a comunidade de informações tivesse autonomia para reprimir os adversários políticos do regime, teria sido tomada aí, segundo o ex-ministro. No fim do governo, a decisão do extermínio foi de Médici – e mantida pelo chefe de governo posterior, Ernesto Geisel – em função dos sequestros de embaixadores pelos grupos armados de esquerda, para libertar quadros que estavam na prisão.

“Tinha mortes do lado de cá para lutar para destruir uma organização guerrilheira qualquer e, se o chefe de facção era preso, se fazia um sequestro de um embaixador e daí se soltava todo mundo. No meu entender foi uma resposta – eu não tenho nenhuma autoridade moral para dizer isso, eu deduzo – a um tipo de ação guerrilheira. Nunca antes uma ação guerrilheira tinha sequestrado um embaixador. Acredito que a ordem de não deixar prisioneiros tenha sido tomada a partir de ações de guerrilha que o governo não teria como combater.”

A decisão de descentralizar as decisões de repressão política, reconhece Passarinho, recrudesceu a tortura. Mas, embora o presidente tenha sido a voz final nessa decisão, haveria atenuantes. “Só se fala no Médici, mas não se fala que o poderoso ministro do Exército na ocasião se chamava Orlando Geisel [irmão de Ernesto], que era duro, da linha dura. O Médici descentralizou as regiões e os comandos passaram a ser autônomos, pois até uma ação chegar ao presidente da República, ao Serviço Nacional de Informações (SNI), demorava muito, dificultava o combate à guerrilha. Então se decidiu que a ação ia ser resolvida dentro da região. Nessa descentralização é que, no meu entender, apareceu um comando paralelo, o comando da chamada Comunidade de Informações”, disse, anos atrás.

Eliminar fisicamente adversários seria uma decisão estrita de um presidente da República, segundo Passarinho. Ele reconhece que essa decisão foi tomada no fim do governo Médici – e portanto esse presidente foi parte de uma ofensiva que, entre o seu governo e o seguinte, exterminou centenas de adversários. Mas acha que, no caso de Geisel, as mortes e os desaparecimentos foram mais numerosos e menos justificáveis. “Vocês mesmos [a imprensa] publicaram sobre o Massacre da Lapa [chacina que, em 1976, praticamente dizimou o comitê central do PCdoB que estava reunido numa casa em São Paulo, no bairro da Lapa]. Eles entraram atirando. Quem fez isso? E quem matou o Comitê Central do Partidão? Não foi o Médici, não”, afirmou, enfático, o ex-senador. “Isso foi uma política de Estado? É lógico que foi. De quem seria? De quem sairia a ordem para cercar um grupo desses? Era exatamente a chamada Comunidade de Informações que existia nos três ministérios, Marinha, Exército e Aeronáutica. Hoje tenho a impressão de que, se o Geisel tivesse sido presidente antes do Médici, teria mostrado exatamente que o Médici era um anjo.”

Na defesa de Médici, Passarinho enumera fatos institucionais e decisões de caráter pessoal. A descentralização das decisões sobre a repressão intensificou a tortura, reconhece, mas isso fugiu ao seu controle. Pessoalmente, era contra, garante seu ex-ministro. E repete um “testemunho pessoal”: quando assumiu o Ministério da Educação, Passarinho foi procurado por um sindicalista que levava a ele a denúncia de que uma bancária se encontrava em coma, por causa de choques elétricos que recebera na tortura. Passarinho, depois de investigar a veracidade da acusação, levou-a a Médici.

“Eu levei a denúncia ao presidente e disse a ele: acho que nem o senhor pode passar para a história como um presidente da República que permitiu a tortura nem o seu ministro da Educação. Na hora ele chamou a ordenança e deu ordem para ligar para uma determinada pessoa e disse: ‘Quero saber quem foram os responsáveis’. E puniu, transferiu para a fronteira. Vocês podem dizer que foi pouco, devia ter matado, exonerado que fosse, mas puniu!”, contou. O ex-senador chamou também, para defender sua argumentação, o testemunho de um livro do ex-chanceler Mário Gibson Barbosa, no qual o diplomata relatou que Médici convocou uma reunião de ministros para dizer que não aceitava a tortura.

Para justificar suas afirmações em relação a Geisel, começa apontando pecados de origem do ex-presidente. “Vejam a diferença entre o italiano e o alemão. Médici, italiano e o Geisel, alemão. O Médici, para assumir o governo, exigiu a volta da eleição direta para governadores de Estado, reduziu o mandato dele para somente quatro anos e procurou pessoas para compor o seu governo que eram consideradas liberais – eu, o [Mário] Andreazza, o Delfim [Neto] e o [Hélio] Beltrão”, enumerou Passarinho. “O general Geisel colocou o Congresso em recesso e fez o que o [Paulo] Brossard [senador pelo então MDB do Rio Grande do Sul] chamou de Constituinte do Riacho Fundo [alusão ao sítio que era a residência oficial do presidente no período]. O Médici tinha deixado a eleição direta para governador e voltou a ser indireta; o Médici tinha deixado o mandato de quatro anos para presidente e passou a ser de seis anos, e entregou esse mandato para um general que acabava de ser promovido a quatro estrelas”, dizia, há oito anos (esse foi o chamado “Pacote de Abril” de Geisel, que também editou, por AI-5, uma reforma do Judiciário e mudanças na lei eleitoral que favoreciam o regime).

Geisel foi uma opção de sucessão que não agradou a Médici, segundo Passarinho. “Ele não tinha simpatia pelo Geisel porque não suportava o [general] Golbery [do Couto e Silva]. O Golbery fundou o SNI [Serviço Nacional de Informações] e em seguida, no governo Costa e Silva, o Médici assumiu. Quando Médici chegou lá para passar o serviço, as gavetas estavam vazias, porque o Golbery tinha levado todos os arquivos”, relatou. “O Médici não queria que Geisel o sucedesse porque temia que ele fosse levar o Golbery. Daí o Figueiredo [João Figueiredo, chefe do SNI de Médici e sucessor de Geisel na Presidência] assegurou para o Médici que o Golbery estava rompido com o Geisel. Quando o Geisel chegou, já trouxe o Golbery, que foi ser chefe da Casa Civil.”

O ex-ministro de Costa e Silva e Médici oscila quando fala da tortura, que marcou o período de Médici, principalmente. “Eu chamo esse período de guerra suja porque a Convenção de Genebra não funcionava para nenhum dos lados”, afirmou, há oito anos. E, na época, também rejeitou as interpretações de que o período militar foi o império do “mal”. “É preciso acabar com esse maniqueísmo: se houve erro, houve de parte a parte e uns foram consequência e outros foram causa.”

Nesse dia de março, Passarinho disse reiteradas vezes que não aprovava a tortura, mas tampouco o terrorismo. “Tudo o que aconteceu na luta armada deve aparecer dos dois lados. Eu coloco na mesma linha de crime hediondo não só a tortura, mas o terrorismo também”. Todavia, definiu as ações da guerrilha que vitimaram militares e civis como “ódio ideológico”; a tortura, como “tática”.

“A tortura desce da área propriamente intelectual e passa para a área tática, é a luta pela obtenção da informação. Aí aparecem os exagerados de ambos os lados”, afirma. Aí, Passarinho lembra o atentado no aeroporto de Guararapes, no Recife, em 1967, com saldo de 17 vítimas; e o atentado ao II Exército, com uma vítima fatal. “Qual é a diferença entre isso e a tortura? Não consigo diferenciar em termos de consequência, de hediondez.”

Duas horas depois de uma segunda entrevista – separada por oito anos da primeira -, Passarinho dá mostras de cansaço. A filha, Júlia, já ligou duas vezes. “É a policial da família, não queria que desse entrevistas”, diz, rindo muito. Ele se declara exausto. Mas continua falando por um tempo. Mais uma história, que puxa a outra – o ex-ministro adora contar histórias com todos os detalhes, como aquela que começa com a descoberta de um d. Helder Câmara ainda integralista, quando estava no colégio, em Belém, e termina com uma negociação secreta com o já bispo de esquerda, em Crato (PE), para evitar que uma greve de trabalhadores se alastrasse pelo Estado, quando era ministro do Trabalho.

E termina com a última: de como uma carta apócrifa, que atribui ao SNI de Golbery, tentava acusá-lo de corrupção por causa da venda de um apartamento, quando era ministro de Médici. Segundo ele, não teve nenhuma dificuldade para desmentir a acusação, já que o apartamento e a casa onde ainda hoje mora foram os únicos patrimônios adquiridos ao longo de toda a sua vida pública. Mas, deixa claro, ficou o ressentimento.

Texto do Valor, mas visto no blog do Luís Nassif.


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