sexta-feira, janeiro 29, 2010

A "ocupação eterna" interessa a Israel

Porque a "ocupação eterna" interessa a Israel

Atualizado em 24 de janeiro de 2010 às 08:55 | Publicado em 24 de janeiro de 2010 às 08:42

Lieberman+Barak: animal bicéfalo

E uma 'universidade da ocupação'

23/1/2010, Uri Avnery, Gush Shalom [Grupo da Paz], Telavive


Parece ser governo de Benjamin Netanyahu. Mas não é.

Netanyahu jamais passou de vendedor ambulante de remédios. Aquele tipo que se vê nos filmes western americanos, que vende elixires que curam tudo: de gripe a tuberculose, de ataques cardíacos a miolo mole. A principal arma desse tipo de vendedor é a língua: uma catarata de palavras que inventa castelos no ar, libera bolhas luminosas e silencia qualquer dúvida.

Desde a eleição, há quase um ano, seu maior (literalmente) feito foi ter conseguido montar um gabinete: 30 ministros e um punhado de deputados, a maioria dos quais incapazes de produzir uma dúvida criativa sobre coisa alguma, alguns encarregados de ministérios para os quais foram os candidatos menos qualificados que se poderia imaginar. Dali em diante, Netanyahu só se ocupou na tarefa para a qual tem talento especial: sobreviver no mundo político.

Nesse zoológico governamental, a única criatura realmente importante chama-se [Avigdor] Lieberman, o-Barak-que-fala, o Lieberman-Barak – um monstro bicéfalo que mantém aterrorizados todos os demais animais. Esse monstro bicéfalo é 50% Lieberman, 50% Barak, 0% humano.

Quando Lieberman pela primeira vez apareceu em cena, muitos o olharam com desprezo. Tal ser, decidiram, não teria futuro na política israelense.

Por dez anos esteve sob investigação policial suspeito de prática de corrupção, de ter recebido dinheiro de misteriosas fontes estrangeiras e outros crimes.

Não bastasse, é a figura menos israelense que se possa imaginar, aos olhos de muitos israelenses. Então foi rotulado como “imigrante novo”, embora tenha imigrado há mais de 30 anos. Muitos israelenses “lêem” sua linguagem corporal e seu modo de agir e de ser como flagrantemente “não-israelenses”, um tipo de homem que “não é um de nós”. Como, então, os israelenses, de repente, elegeram tal figura?

Lieberman é colono e vive em Nokdim, uma colônia exclusiva para judeus próxima de Belém; os colonos de Nokdim não são populares em Israel. É racista declarado, odeia árabes e despreza a paz, homem cujo projeto declarado é “limpar Israel”, o que significa tirar de lá todos os árabes. Sim, há em Israel (como em todos os países) muito racismo latente, em parte inconsciente, mas esse racismo não é ostentado. Em Israel sempre foi impensável que os israelenses algum dia elegessem um racista declarado.

As últimas eleições puseram fim a essa certeza. O partido de Lieberman obteve 15 votos no Parlamento, dois a mais que o partido de Barak, e tornou-se a terceira força no Parlamento. Não poucos “verdadeiros” jovens israelenses, muitos Sabras votaram em Lieberman. Viram aí um bom destino para seus votos de protesto.

O establishment não pareceu muito chocado. OK, era apenas um voto de protesto. Em todas as campanhas eleitorais em Israel sempre aparece uma lista eleitoral de última hora, que some no dia seguinte, como o pé de hera do profeta Jonas. Onde andarão hoje todos aqueles candidatos?

Mas Lieberman não é o general Yigael Yadin, que criou o partido Dash, ou Tommy Lapid, líder do Shinui. É homem de poder brutal, sem qualquer tipo de escrúpulo, homem sempre rápido a apelar – nas palavras de Joseph Goebbels – aos instintos mais primitivos das massas.

Já se vê em Israel uma coalizão dos insatisfeitos com os furiosos, como a Bíblia diz de David, ao fugir do rei Saul: “E todos os homens que estavam em dificuldades, ou com dívidas, ou insatisfeitos também foram, e Davi se tornou o chefe deles” (1 Samuel 22:2). O grupo original de Lieberman é a comunidade de russos emigrados da ex-URSS que não foram absorvidos na sociedade israelense e que continuam a viver num gueto espiritual e social. Outros se juntam a eles: os colonos, os judeus orientais que se sentem traídos pelo partido Likud, jovens para os quais Lieberman manifesta abertamente o que eles só pensam em segredo: que os árabes devem ser expulsos do Estado e de todo o país.

Os ares não-israelenses de Lieberman são, em certo sentido, uma vantagem para ele. Alguém bem pouco israelense pode ser o líder ideal de um campo no qual se reúnem os que são movidos pelo ódio contra as “elites”, a Corte Suprema, a polícia, a imprensa e outros pilares da democracia israelense.

O fato de ser objeto de investigações policiais, também, o eleva aos olhos desse tipo de público. Crêem que esteja sendo perseguido pelas elites hipócritas. Nem a nuvem escura de suspeita que sempre acompanha Lieberman impediu Netanyahu de dar-lhe controle completo sobre dois ministérios – o ministério que controla a polícia interna e o ministério da Justiça, os dois ministérios aos quais compete preservar a lei, e que, hoje, estão entregues aos lacaios de Lieberman.

Esse perigo é terrível e não se o deve subestimar. Outros líderes históricos dessa mesma cepa, também foram ridicularizados, vistos como palhaços, antes de chegarem ao poder e a desgraça estar completa.

Mas a segunda cabeça do monstro Barak-Lieberman é ainda mais perigosa que a primeira. A metade Lieberman do monstro representa perigo futuro; a metade [Ehud] Barak do monstro representa perigo imediato e real.

Essa semana, Barak fez algo que obriga a acender mais um alarme vermelho. Atendendo a pedido de Lieberman, Barak promoveu a Escola da Colônia em Ariel ao status de universidade.

Ao contrário de Lieberman (que é “estrangeiro”), Barak é nascido no epicentro do Israel “dos velhos tempos”. Foi criado num kibutz, foi comandante no comando de elite do Estado-maior israelense, fala hebraico perfeito, com o sotaque ‘certo’. Como ex-comandante do Estado-maior e atual ministro da Defesa, Barak representa a elite do mais poderoso setor em Israel: o exército.

Lieberman ainda não conseguiu ferir de morte toda e qualquer possibilidade de fazer-se a paz, senão em discursos. Barak está agindo. Uma vez o chamei de “criminoso de paz”, como variedade de “criminoso de guerra”; hoje, já faz jus aos dois títulos.

O golpe fatal com que Barak feriu de morte as chances de paz aconteceu depois da conferência de Camp David em 2000. Relembrando, para atualizar: quando foi eleito em 1999 com ampla maioria, na onda de entusiasmo no campo da paz, e com a ajuda de slogans declaradamente pacifistas (“Mais Educação, Menos Colônias!”), Barak induziu os presidentes Bill Clinton e Yasser Arafat a reunirem-se em conferência com ele.

Com mistura típica de arrogância e ignorância, Barak acreditava que, se oferecesse aos palestinos a chance de fundar um Estado, eles abririam mão de todas as demais exigências. O que ofereceu então foi de fato mais do que seus antecessores haviam oferecido, mas ainda muito menos do que o mínimo que os palestinos poderiam cogitar de aceitar. E a conferência fracassou.

Na volta de Camp David, Barak não fez o comunicado de praxe (“Avançamos muito e as conversações continuarão”), nem algum jamais acontecido “Desculpem, errei, não tinha nem ideia do que se discutiria lá”. Em vez disso, Barak cunhou um mantra que, incansavelmente repetido depois, se tornou o centro de um consenso nacional, como se fosse verdade indiscutível:

“Levantei cada pedra que encontrei na estrada da paz. / Ofereci aos palestinos tudo que poderiam desejar. / Rejeitaram tudo. / Não temos parceiros para a paz.”

Essa declaração, feita pelo líder do partido Trabalhista, que se intitula “líder do campo da paz”, foi golpe mortal contra as forças da paz em Israel – que tanto haviam esperado de Barak. A vasta maioria dos israelenses creem hoje, de todo o coração, que “não temos parceiros para a paz”. E assim Barak abriu caminho para a ascensão ao poder, de Ariel Sharon e Benjamin Netanyahu.

Durante todo o seu governo, Barak só fez criar e ampliar colônias exclusivas para judeus. Sob suas ordens, o Oficial Comandante do Comando Central autorizou a instalação de uma estação de rádio exclusiva para os colonos judeus (mais tarde convertida em rede nacional, depois que o Grupo da Paz perdeu longa luta de oposição à ampliação dessa rádio). Nesse ponto, também agiu “como um Lieberman”. A decisão de criar a universidade Ariel exclusiva para colonos judeus encaixa-se nesse padrão.

“Mas...calma lá” – dirão as almas sensíveis. “O que tem isso a ver com Barak? Barak é ministro da Defesa, não é ministro da Educação!”

Ariel é Território Ocupado. Nos Territórios Ocupados, o exército é o único poder soberano. Barak manda no exército. A ordem para converter o Colégio Ariel, numa colônia exclusiva para judeus, em universidade Ariel exclusiva para judeus foi ordem dada por Barak ao comandante do exército em Ariel. Como disse Yossi Sarid, ex-ministro da Educação, “a Universidade Ariel é a única universidade civil, no mundo democrático, criada pelo exército”.

Em Israel, uma instituição acadêmica tem de percorrer longo caminho e satisfazer vários requisitos antes de receber status de universidade pelas autoridades competentes. Há inúmeras escolas em Israel muito mais bem qualificadas que o Colégio Ariel, e que aspiram à promoção ao status de universidades. Mas, nos Territórios Ocupados, basta que um general ordene.

Esse fato lança luz sobre fato que é invenção sem precedentes, criação completamente israelense: a Ocupação Eterna.

Regimes de ocupação são, pela própria natureza, situação precária, temporária. Há ocupação quando um dos lados em guerra conquista território do adversário. O poder ocupante passa então a governar territórios ocupados, mas deve respeitar legislação internacional específica, até o final da guerra – quando se espera que o acordo de paz decida quanto ao futuro do território ocupado.

Guerras podem durar anos, até muitos anos, mas a ocupação não se torna ‘eterna’, a menos, é claro, que alguém aceite a ideia de uma guerra eterna. Aí está: vários governos israelenses estão convertendo tanto a ocupação quanto a guerra, em situação normal, permanente.

Por quê? No início da ocupação da Palestina, o ministro da Defesa, Moshe Dayan, descobriu que a ocupação é, de fato, uma situação perfeita! Pelas suas contas, a ocupação daria à potência ocupante poder absoluto, sem qualquer dever em relação à população que viva na área ocupada, sem que nada obrigue a respeitar quaisquer direitos!

Se Israel decidisse anexar os territórios, algo teria de ser feito com os seres humanos que lá viviam. A coisa poderia complicar… Os habitantes de Jerusalém Leste, por exemplo, formalmente anexada por Israel em 1967, não ganharam a cidadania israelense; são apenas “residentes”. De fato, há muitos anos os governos israelenses temem que o mundo não reconheça como “Estado democrático”, uma Israel na qual 1/3 da população não tem qualquer tipo de direitos.

A situação de 'ocupação eterna' resolve todas essas dificuldades. Quem viva nos territórios ocupados não tem, de fato, absolutamente direito algum – nem direitos nacionais, nem direitos civis, nem direitos humanos. O governo de Israel constrói colônias exclusivas para judeus onde bem queira – o que também é expressamente proibido pelas leis internacionais. Assim como implanta colônias, agora decidiu implantar também uma universidade exclusiva para judeus. (...)

O governo espanhol já declarou boicote ao Colégio Ariel e cancelou sua participação num concurso de arquitetura que a Espanha patrocina. Espero que mais governos e instituições acadêmicas sigam esse exemplo e boicotem a nova “universidade da ocupação eterna”.

Claro, o animal bicéfalo Lieberman+Barak, não se incomoda; as duas cabeças são indiferentes a boicotes. Mas se a comunidade acadêmica israelense não se erguer contra esse tipo de prostituição dos ideais acadêmicos – a criação de uma universidade exclusiva para colonos judeus, patrocinada pelo exército de ocupação na Palestina – bem pode ser o caso de que todas as universidades do mundo devessem boicotar todas as universidades israelenses.

Texto visto no Vi o Mundo.

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