terça-feira, março 30, 2010

Anistia pede que China divulgue número de execuções

Anistia pede que China divulgue número de execuções

O grupo de defesa dos direitos humanos Anistia Internacional (AI) pediu ao governo chinês que torne público o número de execuções realizadas no país, em seu relatório anual sobre a situação da pena de morte no mundo.

No documento divulgado nesta terça-feira, a AI afirma que pelo menos 714 pessoas foram executadas pelo Estado em 18 países em 2009.

Este número, no entanto, pode ser muito mais alto, diz a AI, estimando que milhares de execuções não divulgadas teriam sido realizadas apenas na China.

Pelo menos 366 pessoas foram executadas no Irã, 120 no Iraque e 52 nos Estados Unidos, no ano passado. A AI, no entanto, calcula que mais pessoas tenham sido executadas na China do que em todos os outros países juntos.

A ONG ainda elogiou o Burundi e o Togo, que aboliram a pena de morte em 2009. Segundo a AI, 2009 também foi o primeiro ano na história moderna em que ninguém foi executado pelo Estado na Europa ou nos países da antiga União Soviética.

‘Tortura’

O governo chinês afirma que executa menos prisioneiros hoje do que no passado, mas defende que os detalhes sobre as execuções são segredo de Estado.

Mas segundo a AI, “evidências de anos anteriores e várias fontes atuais indicam que a cifra permanece na casa dos milhares”.

A Anistia afirma que 68 crimes podem levar à pena de morte no país, entre eles crimes não-violentos. As execuções são realizadas por esquadrões de tiro ou injeção letal.

Muitas pessoas foram sentenciadas com base em confissões extraídas sob tortura e com acesso limitado a aconselhamento legal, afirma a AI.

“As autoridades chinesas alegam que estão executando menos prisioneiros”, disse o secretário-geral interino da Anistia, Claudio Cordone.

“Se isso é verdade, por que elas não dizem ao mundo quantas pessoas foram mortas pelo Estado?”

Desde 2007, todas as sentenças de morte na China são obrigatoriamente revistas por uma corte alta, um processo que, segundo o governo, diminuiu o número de execuções.

Mas a AI diz que "enquanto as estatísticas sobre a pena de morte na China permanecerem um segredo de Estado, será impossível verificar a alegação (de que uma redução nas execuções) e analisar a tendência atual”.

A Anistia destacou as execuções realizadas depois dos protestos políticos no Tibete e dos confrontos étnicos em Xinjiang , as pessoas condenadas à morte por fraude financeira e o caso do britânico Akmal Shaikh, executado por tráfico de drogas apesar de seu advogado argumentar que ele sofria de problemas mentais.

Segundo a AI, a China deveria aderir às leis e convenções internacionais sobre pena de morte e demonstrar transparência em sua aplicação.

Tendência positiva

Segundo a Anistia, até o fim de 2009 havia 17.118 pessoas em corredores da morte em todo o mundo. Durante o ano, 2.001 pessoas foram condenadas à morte.

Mas apesar de a pena capital ainda ser legal em 58 países, apenas 18 anunciaram ter executado prisioneiros em 2009.

A AI afirma ainda que “comutações e perdões de sentenças de morte parecem ser mais frequentes” em países onde a pena de morte ainda está em vigor. Só o governo do Quênia comutou a pena de mais de 4.000 prisioneiros em agosto passado.

O grupo ainda identificou um aumento acentuado em execuções no Irã após os protestos que se seguiram à contestada vitória do presidente Mahmoud Ahmadinejad nas eleições de junho de 2009.

O Irã também foi criticado, junto à Arábia Saudita, por ter executado prisioneiros condenados por crimes cometidos quando eram menores de 18 anos.

A Anistia afirma que a Arábia Saudita também realizou execuções “em um ritmo alarmante”. Pelo menos 69 pessoas teriam sido decapitadas em público em 2009.

Mas o relatório destaca a tendência a abolir a pena capital, que vem crescendo no mundo nos últimos anos.

Com o Burundi e o Togo abolindo a pena de morte, o número de países em que a prática não é prevista na lei chegou a 95.

A Anistia voltou a reforçar sua visão de que a pena de morte é cruel, “uma afronta contra a dignidade humana” e muitas vezes é usada de maneira desproporcional contra pobres e marginalizados.

O grupo ainda afirmou que o segredo em torno das execuções em muitos países é “indefensável”.

“Se a pena capital é um ato legítimo de governo com alegam esses países, então não há motivo para que seja usada de maneira escondida do público e do escrutínio internacional”, afirma o relatório.

Esta notícia é da BBC Brasil.

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Armando Nogueira - 1927-2010




Faleceu o jornalista Armando Nogueira.


A notícia de seu falecimento pode ser vista na Folha Online. Também vale o verbete sobre ele, na Wikipédia.


Não tenho muito para dizer a respeito de Armando Nogueira, só umas poucas coisas. Uma delas era o crédito como “Jornalista Responsável” pelo Jornal Nacional durante muitos anos, entre os anos 1970 e 1980. O Jornal Nacional era alguma coisa naquele tempo. Devia ter, sei lá, 80 a 90% das televisões brasileiras sintonizadas nele. E parece que além do Cid Moreira e do Sérgio Chapelin apresentando o telejornal da TV Globo, sempre veríamos o nome de Armando Nogueira ligado ao programa jornalístico.


A notícia do falecimento da Folha Online dá um resumo do currículo de Armando Nogueira, falando nos diversos veículos em que ele trabalhara. Não comenta da saída de Armando Nogueira do Jornal Nacional, e da TV Globo. Pois é, se não estou enganado, Armando Nogueira saiu da TV Globo, no rastro de uma edição feita pelo Jornal Nacional sobre o debate entre os então candidatos a presidente da república, Fernando Collor de Mello e Luiz Inácio Lula da Silva, ocorrido num domingo (acho que foi no domingo, mas posso estar enganado) às vésperas do segundo turno da primeira eleição direta para presidente, após quase 30 anos (sim, a eleição direta anterior fora a que elegera Jânio Quadros, em 1960). Está certo que o desempenho do então candidato Lula de 1989 não podia ser chamado de brilhante. É possível inclusive que Fernando Collor tenha se saído melhor no tal debate. Mas a versão do debate apresentada no Jornal Nacional daquela noite de segunda-feira (acho que foi na segunda-feira, mas posso estar enganado) foi algo próximo do criminoso, na manipulação feita para melhorar a imagem de Fernando Collor, e piorar a de Luiz Inácio. Naquela época acabaram saindo dos créditos de Jornal Nacional, os nomes de Armando Nogueira, e Alice Maria. Assumiu Alberico de Souza Cruz. Ou tudo isso pode ser invenção de minha cabeça, não? Afinal, que sei eu dos bastidores da Rede Globo, ainda mais de fatos que ocorreram há mais de 20 anos?


A outra lembrança que tenho de Armando Nogueira é num programa de debates esportivos, na TV Bandeirantes, na Copa de 1994. Um desses programas que reúnem narradores, comentaristas e ex-atletas para comentar resultados, avaliar desempenhos, estas coisas. O Brasil, comandado por Parreira, havia ganho a Copa do Mundo de Futebol nos Estados Unidos. Uma seleção que jogava feio, com escores sofridos, e título ganho nos pênaltis, quando o italiano Roberto Baggio desclassificou a Itália ao chutar a bola por cima da goleira defendida de Taffarel. Naquele programa um Armando Nogueira, com ar entre contrariado e condescendente, parabenizava Carlos Alberto Parreira e a seleção brasileira. O Brasil não tinha convencido, mas tinha vencido. A expressão de Armando Nogueira era a expressão de muitos brasileiros. Comemorava-se o título, mas sempre se achava que teria sido possível jogar melhor...


Segundo a Folha, o jornalista faleceu aos 83 anos em decorrência de câncer, diagnosticado em 2007.



A foto é de Márcio Fontes, para a Folha Imagem, disponível no linque aí de cima. Segundo a Folha, esta foto é de 1993.


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Os reféns da história da imigração para a Coreia do Norte

Os reféns da história da imigração para a Coreia do Norte



Philippe Pons

Enviado especial a Osaka (Japão)



Ko Chong-mi tinha 3 anos quando sua família decidiu deixar o Japão para voltar ao país, em 1963. Seus pais, coreanos que chegaram ao arquipélago durante a colonização japonesa (1910-1945), fizeram parte do grande êxodo da República Popular Democrática da Coreia [Coreia do Norte], que começou em dezembro de 1959. Na época foram 93 mil os que deixaram o Japão pela Coreia do Norte. Uma viagem muitas vezes sem volta, que vários desses repatriados lamentaram por um bom tempo.



Ko Chong-mi fugiu da Coreia do Norte em 2003 e hoje vive no Japão, em Osaka. Em 2009, ela entrou com um processo contra a Associação Geral dos Coreanos do Japão (Chosen Soren), pró-Pyongyang, por ter enganado milhares de seus congêneres ao lhes prometer uma vida que eles nunca tiveram, e que para milhares deles terminou em campos de trabalhos forçados na Coreia do Norte. “Fomos vítimas de um sequestro como uma criança aceitando doces de um estranho”, diz.



Esse processo despertou no Japão dramas esquecidos, mas ainda atuais. Entre esses repatriados, havia 1.800 japoneses, esposas de coreanos. Há cerca de dez anos cem delas conseguiram fugir da Coreia do Norte e voltar ao Japão. Outras estão atualmente na China, na embaixada do Japão, em Pequim, e no consulado em Shenyang, sem conseguir partir devido à recusa das autoridades chinesas em lhes conceder um visto de saída. Dez dessas mulheres contaram o drama que viveram na Coreia do Norte.



Em Niigata, na costa oeste do Japão, uma avenida leva um nome coreano niponizado: Botonamu (salgueiros, árvore-símbolo de Pyongyang). A avenida dos Salgueiros que leva ao porto foi tomada nos anos 1960 por dezenas de milhares de coreanos vindos dos quatro cantos do arquipélago, que embarcavam alegremente para aquilo que lhes havia sido apresentado como “o paraíso dos trabalhadores”. Um navio soviético, decorado com guirlandas e bandeiras com a estrela vermelha, os transportava até Chongjin na Coreia do Norte. Homens e mulheres, vestidos com o traje tradicional das grandes ocasiões, e seus filhos, trazendo somente objetos de uso pessoal. Antes de embarcar, esses repatriados passavam por escritórios da Cruz Vermelha. Perguntavam-lhes se eles tinham certeza de que queriam partir. Mas que sabiam eles sobre a região para onde iam? Poderia sua situação ser pior em “seu” país do que a que enfrentavam no Japão?



A maioria dos 2 milhões de coreanos que foram ao arquipélago durante a colonização japonesa – voluntariamente ou em condições de trabalho forçado – havia voltado para o sul da Coreia logo depois da rendição do Japão. Um terço permaneceu lá. Sua situação era precária: a comunidade dividida em dois grupos (pró-Coreia do Norte e pró-Sul) era vítima de discriminações e muitos viviam de auxílio social.



Na época, a Coreia do Norte parecia uma terra prometida: ela vivia um progresso econômico superior ao da Coreia do Sul, atolada no caos da ditadura de Rhee Syngman, instaurada pelos Estados Unidos. Mais do que a ideologia, um patriotismo visceral animava os repatriados. A grande maioria não era originária do norte, mas do sul da península – especialmente da ilha de Jeju onde, em abril de 1948, a população em rebelião foi vítima de massacres pela milícia de direita e pelo exército (15 mil mortos no mínimo). A Coreia do Norte prometia trabalho, moradia e educação gratuita aos repatriados. “Minha mãe era viúva, e Chosen Soren se aproveitou de sua angústia”, lamenta Ko. A esperança viria a se chocar contra uma amarga realidade.



Ao chegarem a Chongjin, cidade portuária próxima da Rússia, com suas lojas vazias e população maltrapilha, as mulheres desesperadas, debruçadas na balaustrada, se puseram a berrar que não queriam descer. “Isso também aconteceu com meu irmão mais velho, que tinha 15 anos. Ele foi desembarcado à força, e colocado em um ‘asilo psiquiátrico’, onde morreu”, conta Ko.



“Não tínhamos escolha, e desembarcamos”, lembra Hiroko Saito. Japonesa, 20 anos, ela era casada com um coreano e mãe de um recém-nascido. O casal e seu filho estavam entre os primeiros a partirem em 1961. “Nunca falamos sobre isso, mas logo na chegada meu marido e meu soubemos que havíamos sido enganados”, diz. “Mas pensávamos que o país estava em construção, e que era preciso arregaçar as mangas”.



Ela viveu 48 anos na pequena cidade de Hyesan, perto da fronteira chinesa. Após a morte de seu marido, seguida da de sua filha mais velha em um campo de trabalhos forçados, e depois da de sua segunda filha, morta pela fome dos anos 1990, ela fugiu para a China: “Eu não aguentava mais”. Hoje ela vive no subúrbio de Tóquio.



“Ao chegarem à Coreia do Norte, os repatriados foram divididos em função de seus antecedentes, de suas qualificações e das capacidades de suas famílias no Japão de enviarem dinheiro”, explica Ko. “Os ‘privilegiados’, dos quais fazíamos parte pois minha mãe havia se casado com um membro da Chosen Soren, eram enviados a Pyongyang ou a Sinuiju, cidade na fronteira com a China, onde as condições de vida eram melhores. Em nosso caso, foi Sinuiju”. Os outros iam para as províncias do Norte: a “Sibéria” da Coreia do Norte. “Em Heysan”, conta Saito, “todo mundo era pobre. Nós e todos os outros”.



Depois da guerra da Coreia (1950-1953), época dos grandes “expurgos” dentro do Partido dos Trabalhadores que permitiram que Kim Il-sung garantisse para si um poder absoluto na Coreia do Norte, a população foi dividida em três grupos (“fiéis”, “neutros” e “hostis”) em função dos antecedentes, revolucionários ou não, de cada um. “Como vínhamos de um país capitalista, éramos considerados pouco confiáveis”, diz Ko.



Essa classificação que determinava o destino de cada um se confundiu no caos da fome dos anos 1990, e depois foi enfraquecida pela monetarização da economia e pelo aparecimento de um mercado paralelo: “A análise da sociedade norte-coreana nesses termos está ultrapassada”, acredita Andrei Lankov, professor da Universidade Kookmin em Seul. “O sistema de classificação existe, mas a marca da origem das pessoas se perdeu”, diz Ko. “Não se pode generalizar o destino dos repatriados: alguns deles não conseguiram se adaptar, mas outros fazem parte da elite”, observa um membro da Chosen Soren, a associação que promovia a Coreia do Norte no Japão.



“Nos anos 1960, o desastre econômico norte-coreano não podia ser previsto”, escreve Kang Chol-hwan em “Les aquariums de Pyongyang. Dix ans au goulag nord-coréen” [“Os aquários de Pyongyang: dez anos no gulag norte-coreano”]. O autor teve “uma infância feliz”, ainda que espartana, em Pyongyang. Sua família fazia parte da elite dos repatriados. Mas nos anos 1970, privilegiados ou não, muitos eram suspeitos de espionagem: Kang Chol-hwan (ele tinha 9 anos então) e seus pais foram enviados a um campo por dez anos, cujas terríveis condições de detenção ele descreve. Em 1976, o sogro de Ko desapareceu durante um mês. “Ele foi interrogado e espancado sem nunca saber do que estava sendo acusado. Teve sorte: muitos repatriados morreram nos campos de trabalhos forçados”. Segundo os órgãos de defesa dos direitos humanos, a população dos campos chega atualmente a 200 mil.



Depois da morte de seu marido, médico “esgotado por ter dado seu sangue aos doentes”, Ko se envolveu em um caso de empréstimo clandestino e “enviada à montanha”: ou seja, a “um vilarejo isolado e vigiado”, diz. “Então fui fichada e meus filhos não tinham mais o direito de continuar com seus estudos”. Ela decidiu ir para a China, onde foi vendida como “esposa” a um camponês chinês. Fugiu. Foi detida, enviada novamente à Coreia do Norte, e internada durante meses. Foi libertada e fugiu novamente, dessa vez conseguindo chegar ao Japão. Hoje, ela pede por uma indenização “em nome de todos aqueles cuja vida foi arruinada”.



O destino dos coreanos repatriados na Coreia do Norte é uma “nota de rodapé” da história da guerra fria: eles foram vítimas de questões políticas, nas quais a dimensão humanitária era secundária. O impacto da propaganda da Coreia do Norte, orquestrada no Japão pela Chosen Soren, não teria sido tão grande se outros interesses não tivessem interferido: “Os da direita japonesa, que queria se livrar de uma comunidade indesejável, e os da esquerda, que procurava promover a imagem de uma Coreia socialista”, explica o professor Fumiaki Yamada, diretor de um organismo de auxílio aos refugiados da Coreia do Norte em Osaka.



A Cruz Vermelha internacional, que forneceu apoio para o repatriamento, é criticada por não ter procurado conhecer melhor os motivos que levaram esses coreanos a partir (os preconceitos do qual eram vítimas), nem o destino que os esperava na Coreia do Norte.



Os dirigentes da Coreia do Norte, por sua vez, viam no repatriamento diversas vantagens: uma leva de mão-de-obra e de técnicos, mas também um “coringa” nas negociações com o Japão que pretendia se livrar dessa minoria, vista como potencialmente subversiva, e indesejada pelo Sul.



Os Estados Unidos queriam evitar qualquer conflito com o Japão opondo-se a um repatriamento desejado por Tóquio, uma vez que estavam negociando a renovação do tratado de segurança entre os dois países (1960). O Kremlin, fornecedor dos navios, via nesse primeiro êxodo em massa de um país capitalista para um Estado socialista um tema de propaganda e um meio de contrabalançar a influência da China na Ásia.



E foi assim que os repatriados do Japão foram os reféns desse emaranhado de maquinações políticas e de indiferença que fez deles os esquecidos da História.



Tradução: Lana Lim



Reportagem do Le Monde, reproduzida no UOL.



http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/lemonde/2010/03/24/os-refens-da-historia-da-imigracao-para-a-coreia-do-norte.jhtm


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Hoje na História: General de Bollardière protesta contra a tortura na Argélia

Hoje na História: General de Bollardière protesta contra a tortura na Argélia

Por protestar contra a tortura na Argélia, o general Jacques Pâris de Bollardière pede, em 28 de março de 1957, para ser substituído em seu comando. Um pouco mais tarde o secretário-geral da Polícia na Argélia, Paul Teitgen, faz o mesmo, chocado com a utilização da tortura pelos pára-quedistas do general e pelos numerosos ‘desaparecimentos’ constatados.

A Argélia, à época um departamento francês, estava às voltas com uma sublevação armada conduzida por organizações independentistas. Para o governo francês, a guerra “era apenas uma operação para a manutenção da ordem”. Após a humilhante derrota na Indochina em 1954 diante das forças de Ho Chi Minh e Nguyen van Giap, estava fora de questão para o exército francês ser novamente derrotado.

A Argélia, com uma população razoavelmente alentada, ao contrário do restante do império colonial francês, apresentava-se como um problema bem mais espinhoso que uma clássica guerra de descolonização. A violência do conflito que só terminaria em 1962, encontrou ali raízes profundas. Massacres e torturas, dos dois lados, de uma guerra cujo nome os contendores buscavam evitar, iriam marcar a memória das duas costas do Mediterrâneo.

Por volta de 1957, a máxima autoridade militar na Argélia, o célebre general Jacques Massú autorizou o assassinato do dirigente da Frente de Libertação Nacional, Larbi Ben M'Hidi. O líder rebelde argelino havia sido capturado e sua eliminação física foi largamente discutida no alto comando. Massú chegou à conclusão que um processo judicial contra Ben M'Hidi não era desejável, pois implicaria repercussões internacionais. Isolaram o prisioneiro numa cela e com o apoio de alguns carcereiros o enforcaram de maneira a parecer que havia se suicidado.

Denúncia de Bollardière

Como os “procedimentos” de tortura e desaparecimentos prosseguissem, Bollardière escreve em 1957, uma carta ao diretor da revista L’Express, Jean-Jacques Servan-Schreiber. Na altura, Servan-Schreiber estava sendo acusado pela alta oficialidade de golpear a moral das tropas francesas na Argélia depois de ter publicado uma série de artigos em que denunciava abertamente a atitude do governo sobre a questão.

A carta de Bollardière é publicada desata um vespeiro, mas o governo acorre para abafá-la, até que Pierre Vidal-Naquet decide romper o silêncio com um livro histórico que relata cruamente os métodos de Massú e o sistema de tortura. A publicação, imediatamente proibida, só viria à luz uma década depois.

Contexto

A discussão da entrada da tortura nos quartéis do exército francês começou depois do início da ofensiva de Massú. O general Bollardière, tenente na Legião Estrangeira, maquisard nas Ardenas, páraquedista na Indochina e comandante na região dos montes Atlas na Argélia, resolveu enfrentá-lo. Bollardière o acusou de perseguir uma vitória que levaria “a mais desesperadora das derrotas, aquela do homem que renuncia a sua humanidade”. Deixou o gabinete de Massú dizendo “eu desprezo tuas ações”. Renunciou ao comando, voltou a Paris e prosseguiu nos ataques.

A hierarquia sinalizou solidariedade a Massú, aceitou a demissão de Bollardière e respaldou Massú quando condenou seu rival a dois meses de prisão numa fortaleza.

Em maio de 1958, as tropas francesas na Argélia davam um golpe de Estado e depuseram a administração civil da colônia. Duas semanas depois, Charles de Gaulle retornava à chefia do Estado e do governo. Era o fim da IV República. Levado de volta ao poder na ponta das baionetas, surpreende ao pronunciar a palavra maldita para os militares: autodeterminação. A isto, Massú respondeu: “Nossa maior decepção foi verificar que o general De Gaulle se tornou um homem de esquerda.”

De Gaulle achava que era preciso restabelecer incontinente a hierarquia e a disciplina. A batalha de Argel havia sido ganha. Mas a guerra que fazia sangrar a unidade interna e o prestígio internacional da França estava perdida.

*Com informações de letralibres.com e de Elio Gaspari em As Ilusões Armadas


Texto originário do Operamundi.

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sexta-feira, março 26, 2010

Aniversário de Porto Alegre

Hoje está sendo celebrado o aniversário de Porto Alegre. 238 anos segundo a tradição da cidade, que teria sido fundada em 1772.

Durante toda esta semana se celebrou a “Semana de Porto Alegre”. Momento para cantar conhecida canção composta pelo atual e quase ex alcaide, e interpretada pela atual e quase ex primeira-dama.

A canção também costuma embalar a propaganda de conhecida rede de supermercados local.

A musiquinha é simpática. Pena que seja tocada “ad nauseam” nesta Semana de Porto Alegre.

Tédio!...



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quinta-feira, março 25, 2010

Princípios e Valores

Quando comecei a espalhar meus textos na internet, percebi que nela o recurso à falsidade, à demagogia, à calúnia, à injúria, à difamação e à manipulação partiam de todas as coordenadas do espectro político.

Não havia mais escrúpulos, nem equilíbrio, nem mesmo respeito pela verossimilhança. Valia tudo para satanizar os inimigos e endeusar os amigos.
Então, tomei a decisão de preservar sempre meu compromisso com a verdade, minha independência de análise e meus princípios, até porque nunca me vi como integrante de hordas e rolos compressores. Sou psicologicamente incapaz de cometer injustiças e/ou avalizar mentiras convenientes, seja lá contra quem for e em nome de que causa for.

Ademais, percebi claramente que a falácia de um dia é jogada no dia seguinte na cara de quem com ela compactuou, pois as situações são dinâmicas; daí eu repetir sempre que a rua é de duas mãos.

[Em seu "Samba Chorado", Billy Blanco disse tudo: "O que dá pra rir dá pra chorar/ Questão só de peso e medida/ Problema de hora e lugar/ Mas tudo são coisas da vida"...]

Essa postura muito me valeu nos debates públicos sobre o Caso Battisti. O primeiro ataque dos linchadores era sempre alegando minha suposta incoerência, por estar defendendo o Cesare e não haver feito o mesmo pelos pugilistas cubanos, despachados a toque de caixa para a ilha. Davam como favas contadas que eu teria me omitido ou aprovado os trâmites açodados que o governo adotou.

Eu quebrava as pernas dos reacionários ao informar que, antes mesmo do senador Eduardo Suplicy, havia me posicionado publicamente contra o descumprimento do ritual a ser seguido nesses casos, para proteção dos direitos humanos dos envolvidos, pouco importando sua grandeza ou pequenez (aqueles boxeadores estavam muito longe de merecer admiração como seres humanos!).

Aí entrava, também, minha convicção de que certos princípios, institutos e entidades devem ser defendidos em toda e qualquer circunstância pelos revolucionários, pois podem significar a diferença entre a vida e a morte para os militantes das causas justas:
  • asilo político;
  • habeas corpus (mesmo que quem o conceda seja um vil serviçal dos poderosos e que quem o tente contornar com novo mandado de prisão esteja moralmente certo, pois o precedente da avacalhação do HC poderá ser aproveitado pelos gorilas e vitimar nossos companheiros adiante);
  • greves de fome como a do bispo do São Francisco e a de Orlando Zapata, pois não podemos jamais desacreditar uma forma de luta que, na grande maioria dos casos, é adotada por idealistas (trata-se de uma opção de homens, não de garotinhos);
  • organismos e ONGs que defendem os direitos humanos.
Quanto ao último item, no fundo, o que importa mesmo é se a denúncia em questão procede, não o encaminhamento dado a qualquer outro episódio.

A esquerda autoritária, ao defender governos transgressores dos direitos humanos, frequentemente tenta desqualificar os acusadores, alegando que não mostram o mesmo empenho quando as violações provêm do outro lado.

Isto, no fundo, equivale a uma admissão de culpa. E, sendo revolucionários, não podemos usar os pecados alheios como atenuante para nossos atos. O que Hitler fez, p. ex., nós não podemos fazer. Estamos aqui para libertar a humanidade, não para agrilhoá-la de outra maneira.

* * *
Por último: independentemente de quaisquer outras considerações, temos o compromisso moral de nos alinharmos com o cubano Guillermo Fariñas em sua HERÓICA luta pela liberdade de outros dissidentes.

Quem passa o que ele está passando, não o faz por dinheiro ou motivos indignos. Mercenários não são solidários. Só não vê quem não quer.

E temos também a obrigação de tudo fazermos para que não sejamASSASSINADOS os seis manifestantes que acabam de ser condenados à morte no Irã como "inimigos de Deus".

Fanáticos religiosos, obscurantistas e ultraconservadores, os mandatários iranianos consideram que o protesto pacífico desses pobres coitados merece pena capital por haver ocorrido no dia em que os muçulmanos relembram o martírio do neto de Maomé.

Pelo mesmíssimo critério, os futuros Pinochets poderão condenar à morte quem fizer passeata na 6ª Feira Santa ou no Natal.

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Levantamento inédito revela 57 mil imóveis israelenses na Cisjordânia

Levantamento inédito revela 57 mil imóveis israelenses na Cisjordânia

Um levantamento inédito realizado por um instituto de pesquisa israelense revela que há pelo menos 57.309 imóveis de colonos ou do governo israelenses nos territórios palestinos ocupados na Cisjordânia.

São 32.711 apartamentos, 22.997 casas, 187 shopping centers, 127 sinagogas, 717 instalações industriais, 15 salões de festas, 344 jardins de infância e 211 escolas.

Cerca de 500 mil cidadãos israelenses moram em assentamentos nos territórios ocupados, 300 mil deles na Cisjordânia e 200 mil em Jerusalém Oriental, que não foi mapeada.

A pesquisa foi realizada pela instituto de economia política Macro, que usou imagens de satélite pra registrar todos os assentamentos.

Custos

De acordo com o instituto, o custo direto da construção dos assentamentos para o governo de Israel foi de cerca de US$ 17 bilhões – valor que não inclui os gastos com a segurança dos complexos.

De acordo com o diretor do instituto, Robi Nathanson, “a maioria dos assentamentos é atrativa para os israelenses por razões econômicas”.

Em entrevista ao site de noticias do jornal Yediot Ahronot, Nathanson afirmou que “os governos de Israel criaram condições confortáveis para a colonização na Cisjordânia”.

Nathanson explicou que os preços dos imóveis na Cisjordânia são “especialmente baixos”, e os colonos desfrutam de “vias de acesso confortáveis para as grandes cidades (de Israel) que lhes possibilitam trabalhar dentro das fronteiras do Estado de Israel”.

Um apartamento no grande bloco de assentamentos de Gush Etzion, a apenas 15 minutos de Jerusalém, pode custar menos de um quarto de preço de um apartamento semelhante na cidade.

A razão para o custo bem mais baixo dos imóveis nesses locais é o valor do terreno - que é considerado o componente mais caro no custo dos imóveis em Israel, pela alta densidade populacional.

Outra razão para o preço baixo são os amplos subsídios dados pelo governo israelense à construção na Cisjordânia, como parte de uma política de estímulo para que os cidadãos israelenses se mudem para lá.

As estradas asfaltadas que servem os colonos cobrem uma área de 1,02 milhão de metros quadrados.

Barreira

Os pesquisadores também afirmam que, desde 2004, o governo de Israel passou a dar preferência à construção de assentamentos que ficam do lado oeste da barreira israelense na Cisjordânia, de acordo com o plano, já manifestado desde o governo do ex-primeiro ministro Ariel Sharon, de anexar esses territórios a Israel.

Nos últimos seis anos, assentamentos do lado leste da barreira receberam menos investimentos por parte do governo, pois de acordo com a avaliação das lideranças israelenses, esses territórios provavelmente serão devolvidos aos palestinos quando houver um acordo de paz.

A barreira construída por Israel na Cisjordânia, formada por muros e cercas, tem um traçado que atravessa o território palestino, anexando, na prática, cerca de 15% das terras ao lado israelense.

De acordo com o governo israelense a barreira não foi construída para anexar terras mas sim por razões de segurança e para impedir a entrada de homens-bomba palestinos no território israelense.

O Conselho da Judeia e Samaria, principal organização que representa os colonos, acusou o instituto Macro de ser “um grupo de esquerda não-confiável”.

De acordo com porta-vozes do Macro, “trata-se de um instituto acadêmico, apolítico e independente”.


Esta notícia é da BBC Brasil.


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quarta-feira, março 24, 2010

Padres e pedófilos

Padres e pedófilos


ESTAMOS SEMPRE a aprender: vocês sabem como se diz "bastardo" em língua germânica? "Pfaffenkind." Ou, em tradução literal, "o filho do padre". As curiosidades não acabam aqui: ainda na Alemanha protestante, a expressão coloquial para designar a frequência de bordéis era "agir como um bispo".
É claro que não precisamos viajar até a Alemanha para encontrar esse glorioso imaginário em que membros do clero (católico) se entregam à lascívia. De Chaucer a Boccaccio, passando pelos textos centrais do Iluminismo continental (a "Religiosa", de Diderot; o "Émile", de Rousseau; as múltiplas mediocridades de Sade), o padre não é simplesmente o pastor espiritual em missão evangélica.
O padre é o "fornicador" incansável, sempre disposto a atacar donzelas virgens ou mulheres casadas. Sem falar do resto: o lesbianismo das freiras, a sodomia entre monges e a tortura física por que passa o seminarista casto, que se fustiga com prazer masoquista para compensar uma dolorosa ausência de fêmea (ou de macho).
Sejam sinceros: quando existem escândalos sexuais na Igreja Católica, eles não são apenas escândalos sexuais pontuais e localizados. Esses escândalos, que existem em todo o lado (e em todas as denominações religiosas), bebem diretamente no patrimônio literário e anticatólico do Ocidente.
O caso é agravado pela arcana questão do celibato. No mundo moderno e hipersexualizado em que vivemos, o celibato não é visto como uma opção pessoal (e espiritual) legítima e respeitável. O celibato só pode ser tara; só pode ser um convite ao desvio; só pode ser pedofilia. Esses saltos lógicos são tão comuns que já nem horrorizam ninguém.
Ou horrorizam? Philip Jenkins é uma exceção e o seu "Pedophiles and Priests: Anatomy of a Contemporary Crisis" (Oxford, 214 págs.) é o mais exaustivo estudo sobre os escândalos sexuais que sacudiram a Igreja Católica nos Estados Unidos durante a década de 1990.
Jenkins não nega o óbvio: que existiram vários abusos; e, mais, que as autoridades eclesiásticas falharam na detecção ou denúncia dos mesmos.
Porém, Jenkins é rigoroso ao mostrar como os crimes foram amplificados de forma desproporcionada com o objetivo de cobrir toda a instituição com cores da infâmia.
Padres católicos cometem crimes sexuais? Fato. Mas esses crimes, explica Jenkins, existem em proporção idêntica nas outras denominações religiosas (e não celibatárias). A única diferença é que, sendo o número de padres católicos incomparavelmente superior ao número de pastores de outras igrejas; e estando os crimes de pedofilia disseminados pela população adulta, será inevitável que exista um maior número de casos entre o clérigo católico.
Como explicar, então, que as atenções mediáticas sejam constantemente voltadas para os suspeitos do costume?
Jenkins não é alheio à dimensão "literária" do anticatolicismo ocidental; muito menos à hipersexualização moderna, que vê na doutrina sexual da igreja um anacronismo e, em certos casos, uma ameaça.
Mas o autor vai mais longe e revela como a amplificação dos crimes é, muitas vezes, promovida por facções dissidentes dentro da própria Igreja Católica que esperam assim conseguir certas vitórias "culturais" (o fim do celibato, a ordenação de mulheres para o sacerdócio etc.) pela disseminação de uma imagem de corrupção endêmica. "A maior ameaça à sobrevivência da igreja desde a Reforma", escreve Jenkins, citando as incontáveis reportagens que repetiam essa bovinidade.
Isso significa que os crimes das últimas semanas na Europa podem ser desculpados ou justificados? Pelo contrário: esses crimes não têm desculpa nem justificação. E é de saudar que o papa Bento 16, em atitude inédita, tenha escrito uma carta plena de coragem e dignidade ao clérigo irlandês, condenando os abusadores, pedindo perdão às vítimas e esperando que a justiça faça o seu caminho.
Mas não é apenas a justiça que tem de fazer o seu caminho. O jornalismo preguiçoso também deveria trilhar o seu, separando a histeria anticatólica da verdade criminal.
Um contributo: para ficarmos no país de Ratzinger, existiram na Alemanha, desde 1995, 210 mil denúncias de abusos a menores. Dessas 210 mil, 300 lidaram com padres católicos. Ou seja, menos de 0,2%. Será isso a maior ameaça à sobrevivência da igreja desde a Reforma?


Texto de João Pereira Coutinho, na Folha de São Paulo, de 23 de março de 2010.


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Abusos sexuais derrotam o papa

Abusos sexuais derrotam o papa



Juan G. Bedoya

Em Madri



O pontífice alemão chegou ao poder há cinco anos clamando contra a "sujeira" em sua Igreja, mas não conseguiu lavá-la nem erradicá-la



Bento 16 completará cinco anos no cargo em 19 de abril sem ter cumprido sua promessa mais famosa: acabar com a corrupção sexual e afastar os acobertadores, em sua maioria membros da hierarquia. A realidade é contumaz. Todos os dias são descobertos novos casos de abusos sexuais e de maus-tratos em centros educacionais católicos. E o que é pior: muitos prelados, em vez de combatê-los, os explicam com clamorosas acusações. É o que acaba de fazer o cardeal Antonio Cañizares, presidente da Pontifícia Congregação para o Culto. "Atacam-nos para que não se fale de Deus; pior é o aborto", disse o ex-primaz de Toledo. Com a mesma displicência se expressou o secretário de Estado da Santa Sé, Tarcisio Bertone. "Há pessoas que tentam nos desgastar, mas a Igreja conta com a ajuda do Alto", desculpa-se o cardeal italiano.



Há cinco anos, João Paulo 2º agonizava depois de 27 anos no cargo. Foi sucedido por Joseph Ratzinger, até então presidente da Congregação para a Doutrina da Fé (antigo Santo Ofício da Inquisição). Os cardeais logo tomaram a decisão. Sua Igreja estava mergulhada em uma grave crise de prestígio, e a solução exigia conhecimento do problema e mão firme. O alemão Ratzinger era o homem. Havia demonstrado isso na Via Crúcis de 24 de março anterior, Sexta-Feira Santa. Em cada reza das estações do fundador cristão até o Calvário, havia acrescentado comentários de programa de governo.



Na nona estação - terceira queda de Jesus sob o peso da cruz -, Ratzinger exclamou: "Quanta sujeira na Igreja e entre os que, por seu sacerdócio, deveriam estar entregues ao Redentor! Quanta soberba! A traição dos discípulos é a maior dor de Jesus. Só nos resta gritar-lhe: 'Kyrie, eleison. Senhor, salvai-nos'".



Aquela arenga lhe valeu o pontificado. Cinco anos depois, o clamor pela sujeira continua. O papa voltou a decepcionar no sábado, em sua pastoral sobre a Irlanda. Pede a seus bispos que enfrentem os problemas com "coragem", mas não prometeu sanções aos culpados nem reparações às vítimas.



A mesma atitude teve diante da corrupção dos Legionários de Cristo, tolerada durante décadas. Seu fundador, Marcial Maciel, movimentou-se nesse tempo como peixe na água por Roma. Inclusive gozou da amizade de João Paulo 2º. Mas o famoso sacerdote era um pederasta recalcitrante e teve meia dúzia de filhos. Muitas de suas vítimas foram alunos do seminário de Ontaneda (Cantábria), também submetidos a vexações por outros sacerdotes do grupo.



As denúncias contra Maciel chegaram à mesa do papa polonês durante anos. Ratzinger também as conhecia. Ambos as desprezaram. Maciel enchia estádios de futebol nas viagens do líder católico. Aquela proteção obscurece a beatificação de João Paulo 2º e ameaça a credibilidade de Ratzinger. Este papa foi eleito em 19 de abril de 2005 e não tomou qualquer medida contra os Legionários até maio de 2006.



A decisão era pano quente. O fundador não tinha outro castigo além de abandonar Roma e levar "uma vida reservada de oração e penitência" em seu México natal. A organização saía ilesa. Roma continuava surda à dor das vítimas. Só mandou investigar quando os filhos e mulheres de Maciel começaram a reclamar atenção e direitos. Com o título melífluo de "visitadores", cinco bispos estudaram o caso durante quase meio ano, entre eles o prelado de Bilbao, Ricardo Blázquez, hoje arcebispo de Valladolid. Seu relatório já está em Roma e o papa continua sem atuar.



A primeira demanda contra Maciel foi apresentada em Roma por sete de suas vítimas em 1998, com o título de "Absolutionis complicis. Arturo Jurado et alii versus Rev. Marcial Maciel Degollado", mas os abusos sexuais do fundador legionário já tinham sido investigados entre 1956 e 1959. Durante esse tempo, Maciel foi expulso de Roma. O cardeal Ottaviani, então grande inquisidor, encomendou a investigação ao claretiano basco e futuro cardeal Arcadio Larraona. Mas não resolveu nada. O despropósito chegou ao cúmulo quando, quase meio século depois, João Paulo 2º propôs Maciel como "guia da juventude" durante a viagem do distraído pontífice ao México em 1994.



Agora Ratzinger tem dados suficientes. Por que retarda uma decisão? Desde a dissolução dos jesuítas em 1773 por Clemente 14, forçado pelos reis da França, Espanha, Portugal e das Duas Sicílias - por motivos de poder, portanto -, a Igreja Católica não havia enfrentado um caso igual. O escândalo mais clamoroso por abusos sexuais ocorreu no século 17 em torno das escolas pias do aragonês são José de Calasanz. Um de seus colaboradores, Stefano Cherubini, membro de uma família bem relacionada no Vaticano, teve tanto êxito no encobrimento de sua pederastia que chegou a ser o superior da ordem, derrubando de má forma o fundador. Inocêncio 10º demorou 15 anos para tomar medidas e a ordem foi temporariamente fechada.



Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves





Reportagem do El País, reproduzida no UOL.



http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/elpais/2010/03/23/abusos-sexuais-derrotam-o-papa.jhtm

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terça-feira, março 23, 2010

Em Gaza, Israel foi longe demais

Finkelstein: Em Gaza, Israel foi longe demais

3/3/2010

“A devastação de Gaza pelos israelenses, contra uma população civil cercada – e usando bombas, dinheiro e cobertura diplomática dos EUA – foi tão brutal e horrenda que mudou para sempre o modo como o mundo vê o conflito no Oriente Médio” [Glenn Greenwald, blogueiro de Salon.com, durante a guerra de Gaza].

por Norman Finkelstein, em Counterpunch

A indignação mundial gerada pela invasão de Gaza não nasceu do nada nem foi repentina. De fato, foi a culminação de uma curva que há muito tempo marcava o crescente declínio do apoio a Israel em todo o mundo. Como mostram dados de pesquisas recolhidos nos EUA e Europa, todos os públicos, de judeus e não-judeus, foram-se tornando cada vez mais críticos das políticas israelenses ao longo de toda a última década. As imagens horrendas de morte e destruição mostradas pela televisão em todo o mundo durante a invasão de Gaza aceleraram aquele processo. “A frequência brutal e sempre crescente de guerra naquela região volátil fez mudar a tendência da opinião internacional” – escreveu o britânico Financial Times em editorial, um ano depois da invasão de Gaza –, “fazendo lembrar que Israel não está acima da lei. Israel não pode continuar a ditar os termos dessa discussão.”

Pesquisa feita nos EUA logo depois do ataque israelense a Gaza mostrou que o número de eleitores norte-americanos que se autodefiniam como apoiadores de Israel havia caído de 69% antes do ataque, para 49% em junho de 2009; e o número de eleitores que acreditavam que os EUA deveriam continuar a apoiar Israel, caiu de 69% para 44%.

Consumida pelo ódio, cheia de arrogância e confiante de que poderia controlar ou intimidar toda a opinião pública, Israel atacou Gaza com fúria de assassino que confia que jamais será apanhado, mesmo que promova assassinatos em massa à luz do dia. Mas, embora o apoio oficial a Israel não se tenha alterado no ocidente, a carnificina fez crescer uma onda sem precedentes de indignação popular em todo o mundo. Seja porque o ataque contra Gaza veio depois da devastação que Israel provocou no Líbano, ou por causa da incansável perseguição contra o povo de Gaza, ou seja, porque o ataque a Gaza foi ataque covarde, fato é que o ataque a Gaza em dez.-jan. 2009, parece ter marcado um ponto de virada na opinião pública em relação a Israel. O mesmo tipo de mudança aconteceu também depois do massacre de negros em Sharpeville, em 1960, na África do Sul.

Nas organizações oficiais da diáspora judaica, que têm laços antigos com Israel, o apoio continuou como sempre, cego. Ao mesmo tempo, contudo, organizações de judeus progressistas começaram a afastar-se de Israel, umas mais, outra menos. Enquanto, antes, todos os judeus mais conhecidos no mundo sempre apoiaram as guerras de Israel, muitos, dessa vez, mostraram-se ambivalentes durante a invasão, com uma maioria mais idosa e declinante que saiu em defesa de Israel e uma minoria crescente, mais jovem, que declaradamente fez oposição à invasão de Gaza. Entre o crescente incômodo dos mais jovens em face do belicismo israelense e as muitas vacilações ante a tarefa de apoiar Israel, o massacre de Gaza marcou uma primeira grande fissura no, antes, irrestrito apoio dos judeus a todas as guerras de Israel. Muitos constataram que, ao mesmo tempo em que em todo o ocidente as manifestações contra os ataques a Gaza foram sempre multiétnicas (com a presença de muitos judeus), as demonstrações ‘pró’ Israel sempre reuniram quase exclusivamente judeus.

A evidência de que a oposição ativa à política de Israel – por exemplo, nas universidades – já extrapolou os limites do mundo árabe-muçulmano e já alcançou públicos aos quais antes não chegava, ao mesmo tempo em que encolheu o apoio ativo a Israel, já confinado a uma fração do núcleo mais conservador dos judeus étnicos, é importante indicador da direção para a qual as coisas estão andando. A era da “bela” Israel já passou, parece que para sempre; foi substituída por uma Israel desfigurada que, nos últimos tempos ocupa a consciência pública e provoca embaraço cada dia maior. Não se trata apenas de Israel agir ainda mais mal do que antes, mas, sobretudo, de as ações de Israel terem ultrapassado o limite do que as consciências toleram.

Já não é possível negar ou desqualificar o que todos veem. A documentação do conflito árabe-israelense estabelecida por historiadores conhecidos conflita com versões popularizadas por livros como Êxodo de Leon Uris. Há evidências de inúmeras violações por Israel dos direitos humanos básicos dos palestinos, todas documentadas por organizações conhecidas; essas evidências não confirmam os discursos israelenses e o muito alardeado compromisso com “a Pureza das Armas” [heb. Tohar HaNeshek; ing. Morality in Warfare; é o código ético do Exército de Israel: “moralidade/pureza na guerra”]. As deliberações de corpos políticos e jurídicos respeitados manifestam graves dúvidas quanto ao alardeado compromisso de Israel com a resolução pacífica de conflitos. Por muitos anos, os ‘apoiadores’ de Israel conseguiram evitar o impacto da documentação que se foi acumulando; na maioria dos casos, ocultaram-se por trás de duas espadas gêmeas sempre em riste: o Holocausto e um “novo antissemitismo”.

Houve quem dissesse que os judeus não poderiam ser avaliados pelos padrões morais/legais comuns, depois do inexcedível sofrimento pelo qual passaram durante a II Guerra Mundial e que toda e qualquer crítica às políticas de Israel seriam sempre motivadas por um jamais extinto ódio aos judeus. Quanto a isso, além do desgaste que sofrem todos os argumentos excessivamente usados, esse argumento perdeu muito da eficácia que algum dia teve quando as críticas às políticas de Israel chegaram, afinal, às correntes mais amplas da opinião pública. Incapazes de responder àquelas críticas, os apologistas de Israel conjuram hoje as mais bizarras teorias para explicar o ostracismo ao qual se condenaram. Para George Gilder, guru ‘econômico’ do governo Reagan, o sistema de livre mercado teria modo específico para desencadear os potenciais humanos; e que portanto, sob sistemas de livre mercado, os judeus deveriam “estar sempre representados não proporcionalmente nos escalões superiores”, porque seriam seres humanos naturalmente mais bem dotados que outros. Inversamente, se os judeus não estiverem no comando, comprovar-se-ia que o sistema econômico não alcançou a perfeição.

O antissemitismo brotaria do ressentimento provocado pela “superioridade e excelência dos judeus” e pela “manifesta supremacia dos judeus sobre todos os demais grupos étnicos”; e o ódio contra Israel, do fato de Israel ter evoluído (sob a inspirada tutela de Benjamin Netanyahu) num perfeito sistema de livre mercado que “concentra o gênio dos judeus,” fazendo de Israel “uma das potências capitalistas mundiais líderes” e inveja do mundo: “Israel é odiada sobretudo por suas virtudes.”

Se há judeus que criticam Israel, tratar-se-ia de pura inveja: “os judeus destacam-se tanto e tão rapidamente nos campos intelectuais, que deslocam e derrotam todos os rivais antissemitas.” O ocidente deve tratar, isso sim, de proteger Israel e os israelenses contra “as quimeras mundiais de soma-zero e as fantasias de vingança e morte dos jihadistas”, e contra “as massas bárbaras”, porque foram os talentos e dotes dos judeus que levaram a humanidade “a crescer e prosperar”; em conclusão, porque os judeus são “decisivos para a raça humana”.

E prossegue: “se Israel for destruída, toda a Europa capitalista morrerá; e os EUA, epítome do capitalismo criativo e produtivo empurrado pelos judeus, estará sob grave risco”; “Israel é a vanguarda da próxima geração de tecnologia; está na linha de defesa de uma nova guerra racial contra o capitalismo, contra a individualidade e o gênio judeu”; “Assim como o livre mercado é necessário à sobrevivência das populações humanas sobre a face da Terra, a sobrevivência dos judeus é necessária para garantir o triunfo das economias livres. Se Israel for calada ou destruída, todos sucumbiremos ante as forças que hoje combatem o capitalismo e a liberdade em todo o mundo.”

Do outro lado do Atlântico, Robin Shepherd, diretor de assuntos internacionais da Henry Jackson Society, sediada em Londres, garante que Israel foi alvo de críticas fortes pelo ocidente, não porque seja campeã da defesa dos direitos humanos, mas porque é Estado capitalista democrático obrigado a lutar na linha de frente, ao lado dos EUA, contra o islã radical que seria “ameaça civilizacional”: “Israel tornou-se inimiga não por algo que tenha feito”, mas “porque estava do lado errado das barricadas”. A “principal plataforma de energização no ocidente” para essa “maré incontrolável de histeria, mistificação e distorções contra o Estado judeu” são “os marxistas totalitários e a esquerda liberal, viajantes que, desapontados pelo proletariado ocidental e desiludidos das lutas de libertação do Terceiro Mundo, uniram-se em causa comum com “o islã militante” para destruir a ordem mundial liberal-capitalista. Embora esses críticos de Israel não sejam antissemitas no tradicional sentido “subjetivo” de desprezar os judeus por serem judeus, são agentes de um antissemitismo “objetivo”, porque Israel tornou-se fator central da identidade dos judeus no mundo contemporâneo.

Mas a oposição a Israel também emanaria dos ‘sangue-azul’ do antigo regime que sonham com restaurar as hierarquias do velho mundo, devolvendo-as ao ponto em que teriam sido rompidas pelos arrivistas judeus. Essa conspiração neoantissemita reuniria “quase todos” os que acusam Israel de ter cometido crimes de guerra e de outras violações das leis internacionais. Evidentemente, deve-se entender que, por trás da condenação de Israel pela Anistia Internacional e pela Corte Internacional de Justiça, Jimmy Carter e Mairead Corrigan Maguire ganhadores do Prêmio Nobel, o Financial Times e a BBC, age a mão oculta da gangue dos radicais esquerdistas fanáticos aristocratas islâmicos. Para os que queiram saber mais, Shepherd recomenda “fortemente” que leiam The Case for Israel, de Alan M. Dershowitz.

Embora falte credibilidade a essas explicações para o isolamento de Israel, não há dúvidas de que as ações de Israel entraram em queda livre. Embora Israel tenha conquistado muitos simpatizantes ocidentais depois de fulgurante vitória de junho de 1967, a verdade é que, nos anos mais recentes, já está reduzida a Estado pária, sobretudo entre os europeus. Pesquisa de 2003 feita pela União Europeia, classificou Israel como principal ameaça à paz do mundo. Em 2008, pesquisa de opinião pública global classificou Israel como o principal obstáculo à paz no conflito Israel-Palestina. Em pesquisa do BBC World Service, feita imediatamente depois da invasão de Gaza, 19 dos 21 países pesquisados manifestaram opinião negativa sobre Israel.

Simultaneamente, sob o título “Second Thoughts about the Promised Land” [“Pensando melhor sobre a Terra Prometida”][1], a revista The Economist reporta em 2007 que “embora a maioria dos judeus da diáspora ainda apóiem Israel, aumentaram as dúvidas e a ambivalência.” Vozes de judeus discordantes começam a fazer-se ouvir na Grã-Bretanha, na Alemanha e em outros países, desafiando a hegemonia das organizações judias oficiais que repetem como papagaios a propaganda israelense. Nos EUA as tendências ainda não são muito claras, mas nem por isso menos significativas. Avaliando-se pelos dados de pesquisa, pode-se dizer que os norte-americanos sempre tenderam consistentemente mais a favor de Israel que dos palestinos. Mas os norte-americanos cada vez mais claramente também apóiam que os EUA trabalhem para mediar o conflito; mais recentemente, já há pesquisas que mostram “níveis equivalentes de simpatia” pelos dois lados, e minoria já substancial opinou que as políticas dos EUA favorecem (ou favorecem muito) Israel; uma robusta maioria de norte-americanos “opinaram que Israel não está fazendo bem a parte que lhe cabe de esforços para resolver o conflito”; e já há muitos norte-americanos que pregam o uso de sanções para conter Israel.

Significativamente, a maioria dos norte-americanos também apoiaram um acordo de dois Estados sobre as fronteiras demarcadas em junho de 1967, com total retirada dos israelenses dos territórios ocupados na guerra de junho. “Sim, as pesquisas mostram forte apoio a Israel,” observou em 2007 M. J. Rosenberg, diretor de análises políticas do Israel Policy Forum, a respeito das tendências de então; contudo “esse apoio a Israel, como mostram as pesquisas, é amplo mas não é muito profundo.” Esse fenômeno observa-se quase todos os dias nas “Cartas do Leitor”. Cada vez que aparece alguma coluna sobre Israel, sobretudo se critica Israel, aparecem várias cartas de leitor. A maioria apoia a posição israelense. E quase sem exceção as cartas são assinadas por judeus. A vasta maioria [de não judeus norte-americanos] que se supõe que sejam também favoráveis às posições de Israel não escrevem. Conforme pesquisa de 2007 feita pela Liga Antidifamação [ing. Anti-Defamation League (ADL)] a opinião de norte-americanos a favor de Israel é acentuadamente menos favorável do que suas opiniões favoráveis pró Grã-Bretanha e Japão; e é praticamente tão favorável quanto as opiniões pró Índia ou México. Quase a metade dos respondentes entendem que os EUA devem trabalhar aliados a Estados árabes “moderados”, “mesmo que isso contrarie Israel”.

Metade ou mais dos norte-americanos pesquisados culpam igualmente Israel e o Hizbollah pela guerra do Líbano, no verão de 2006, e apoiaram uma posição (mais) neutra dos EUA. Além disso, em anos recentes, vários grupos religiosos, como a Igreja Presbiteriana dos EUA, o Conselho das Igrejas, a Igreja Unida de Cristo e a Igreja Metodista Unida têm apoiado iniciativas, inclusive a favor do desinvestimento em corporações, para forçar o fim da ocupação da Palestina. Em pesquisa de 2005, feita por Steven M. Cohen, judeu, constatou-se que “a ligação dos judeus norte-americanos com Israel enfraqueceu de modo mensurável nos últimos dois anos, (…) seguindo tendência que se observava há muito tempo.” Menos respondentes, em relação a pesquisas anteriores, declararam prontamente seu apoio a Israel, que conversavam sobre Israel ou que participavam de atividades de apoio a Israel.

Significativamente, não houve declínio semelhante em outras mensurações de identificação com os judeus, incluindo práticas religiosas, observação de preceitos religiosos ou afiliação comunitária. A pesquisa mostrou 26% que se declaram “muito” emocionalmente ligados a Israel, menos que os 31% que se viram em pesquisa de 2002. Cerca de 2/3, 65%, declararam que acompanham de perto o noticiário sobre Israel, menos que os 74% da pesquisa de 2002; e 39% disseram que conversam regularmente com amigos judeus; menos que os 53% de 2002.

Israel também caiu nas pesquisas como componente da identidade judaica pessoal dos respondentes. Quando lhes eram mostrados vários fatores, entre os quais religião, justiça social e comunidade, ao lado de “preocupação com o destino de Israel”, e perguntados “quanto, de cada um desses fatores, pesa no seu sentimento de ser judeu?”, 48% responderam que Israel pesa “muito”; em 2002, foram 58%. Apenas 57% afirmaram que “a preocupação com o destino de Israel é parte muito importante do meu sentimento de ser judeu”; em pesquisa idêntica, de 1989, foram 73%. Pesquisa de 2007, feita pelo Comitê Judeu Norte-americano [ing. American Jewish Committee] mostrou que 30% dos judeus sentiam-se “distantes” ou “muito distantes” de Israel. “No longo prazo”, prevê Cohen, haverá uma “polarização nos judeus norte-americanos: um grupo cada vez menor de judeus mais fortemente religiosos cada vez mais ligados a Israel; e um grupo maior, que se afastará do grupo menor.”

Pesquisa de 2006 mostrou que, entre os judeus norte-americanos de menos de 40 anos, 1/3 declarou-se “distante” e “muito distante” de Israel; pesquisa de 2007 mostrou que, entre os judeus de menos de 35 anos, 40% declarou “fraca ligação” com Israel (apenas 20% declararam “forte ligação”). Surpreendentemente, menos da metade dos respondentes responderam “sim; a destruição de Israel seria vivenciada como tragédia pessoal.” O ex-presidente da Agência Judaica [ing. Jewish Agency] fez soar sinal de alarme, ao divulgar que “menos de 24% dos judeus norte-americanos jovens participam de organizações judaicas. Menos de 50% dos judeus norte-americanos com menos de 35 anos sentem-se profundamente ligados ao povo judeu. Menos de 25% dos judeus norte-americanos com menos de 35 anos autodefinem-se como sionistas.”

Nas universidades norte-americanas, observa-se a queda no apoio a Israel não só entre os alunos judeus em geral, mas também, e principalmente, entre os sionistas reunidos nos Hillels [ing. Hillel Foundation for Jewish Campus Life][2]. “Alunos universitários judeus são claramente menos ligados a Israel hoje do que em gerações anteriores”, dizem vários relatórios de organizações de propaganda pró-Israel. “Israel está perdendo a disputa pelos corações e mentes dos judeus.” De fato, dos cerca de meio milhão de alunos judeus que frequentam instituições de ensino superior, “apenas 5% mantêm qualquer conexão com a comunidade de judeus.”

Observa-se a conversão da ambivalência em aberta oposição em relação a Israel também em outros setores influentes da sociedade norte-americana, mesmo entre as vacas-madrinhas da vida intelectual nos EUA e no público de leitores. Pesquisa recente descobriu que uma maioria de líderes de opinião nos EUA apóiam Israel “movidos sobretudo por insatisfação com os rumos dos EUA” em todo o mundo. Em ensaio publicado em 2003 na New York Review of Books, o historiador judeu Tony Judt escreveu que “a Israel de hoje não é boa para os judeus” e pôs em dúvida tanto a viabilidade quanto a desejabilidade de um Estado judeu. John J. Mearsheimer, da Universidade de Chicago e Stephen M. Walt da Harvard Kennedy School são co-autores de um importante ensaio, de 2006, no qual atacam a imagem idealizada da história de Israel e afirmam que Israel está convertida em “risco estratégico” para os EUA. Livro do ex-presidente Jimmy Carter, provocativamente intitulado Palestine: Peace Not Apartheid, lamenta a política de Israel para os Territórios Palestinos Ocupado e culpa integralmente Israel pela deterioração do processo de paz.

Apesar dos contra-ataques vitriólicos que o lobby pró-Israel lançou contra aquelas intervenções – o discurso usual que acusa todos de serem negadores do Holocausto e antissemitas –, dessa vez os contra-ataques não foram eficazes.

Quando em 2006 as pressões do lobby levaram ao cancelamento de uma das palestras já agendadas de Tony Judt, o caso tornou-se imediatamente cause célèbre nos círculos intelectuais dos EUA. Críticos de Judt, como Abraham H. Foxman da ADL, foram descritos como “gente que se esconde atrás de acusações sem sentido de antissemitismo” e como “anacrônicos”. Carter, por sua vez, foi acusado de plagiador, de haver sido subornado por xeiques árabes, de ser antissemita, de fazer apologia do terror, de simpatizante dos nazistas, e pouco faltou para ser acusado de negar o Holocausto.

Mesmo assim, o livro de Carter chegou rapidamente à lista dos mais vendidos do New York Times e lá permaneceu durante vários meses, tendo vendido mais de 300 mil cópias encadernadas. Embora duramente criticado pelo presidente da Universidade Brandeis, o ex-presidente Carter foi recebido pelos estudantes com uma retumbante ovação, ao chegar para falar naquela universidade judaica tradicional. (E metade da plateia levantou-se e saiu quando Alan M. Dershowitz, professor de Direito de Harvard, levantou-se para discursar em resposta à palestra de Carter.) Mearsheimer e Walt contrataram a publicação de seu livro com a editora Farrar, Straus and Giroux, e seu livro, The Israel Lobby and U.S. Foreign Policy, também esteve por muito tempo na lista dos mais vendidos do Times.

Demonstração extra de que a sorte de Israel está mudando é que, durante o mandato do primeiro-ministro Ehud Olmert, nem Foxman nem Elie Wiesel, perene apoiador de Israel responderam publicamente à evidência de que Israel não se dedicava suficientemente em busca da paz. A crescente insatisfação pública em relação à política de Israel nos últimos anos chegou a ponto de ebulição e converteu-se em indignação manifesta durante a invasão de Gaza. Apesar da cuidadosamente orquestrada blitz de propaganda israelense; apesar de a cobertura jornalística ter sido, como sempre, marcadamente tendenciosa pró-Israel, sobretudo nos primeiros dias do ataque; e apesar do apoio oficial do ocidente ao ataque contra Gaza – apesar de tudo isso, houve enormes manifestações de rua por toda a Europa Ocidental (na Espanha, Itália, França e Grã-Bretanha), tão grandes que encobriram as pequenas manifestações de apoio a Israel.

Estudantes ocuparam universidades por toda a Grã-Bretanha, inclusive nas universidades de Oxford, Cambridge, Manchester, Birmingham, na London School of Economics, na School of Oriental and Asian Studies, Warwick, King’s, Sussex e Cardiff. Mesmo em tradicionais bastiões de apoio a Israel, como no Canadá, onde é particularmente intenso o viés de apoio a Israel da extrema direita e do establishment político e da mídia, os mais diferentes grupos de opinião pública manifestaram-se contra o ataque a Gaza; e o Sindicato Canadense de Servidores Públicos [ing. Canadian Union of Public Employees] aprovou moção em que pede um boicote acadêmico contra Israel.

Declarando depois do cessar-fogo que “os eventos em Gaza nos chocaram profundamente”, um grupo dos 16 juízes e investigadores mais experientes do mundo – entre os quais Antonio Cassese (Primeiro Presidente e Juiz do Tribunal Criminal Internacional para a ex-Iugoslávia e Chefe da Comissão de Investigação da ONU para o Darfur) e Richard Goldstone (Promotor-chefe do Tribunal Criminal Internacional da Comissão de Investigação da ONU para o Kosovo) – pediram que se instalasse “investigação internacional que examine as graves violações da legislação internacional de guerra cometidas pelos dois lados no conflito de Gaza.”

Como sempre, invariavelmente, os apologistas de Israel atribuíram ao crescimento do antissemitismo a crescente indignação contra a ação israelense em Gaza. Deve-se registrar que, como regra geral, quanto mais profundamente violenta é a conduta criminosa de Israel, mais aumentam, em decibéis, as ‘denúncias’ de antissemitismo. Os judeus estariam enfrentando “uma epidemia, uma pandemia de antissemitismo”, declarou Abraham H. Foxman. “É a pior, a mais intensa, a mais global onda de antissemitismo que nossa memória registra.” Não que esse tipo de diagnóstico seja novidade para Foxman que, em 2003, não se cansava de repetir que “a ameaça à segurança do povo judeu é tão grande hoje quanto foi nos anos 30s.”

Como no passado, sempre aparecem dados de pesquisa que confirmam esses exageros, chamados “indicadores” das “mais perniciosas noções de antissemitismo”; por exemplo, uma pesquisa que descobriu que “grandes porções da opinião pública europeia continua a achar que os judeus falam demais sobre o que lhes aconteceu no Holocausto.” Segundo um “filósofo” midiático francês, Bernard-Henri Lévy, qualquer um que ponha em dúvida que o holocausto nazista “foi um ponto de virada irreversível da história da humanidade” deve ser considerado antissemita. Na Europa, poucas das manifestações ditas antissemitas foram além de manifestações covardes ou apenas desagradáveis, como emails ou graffiti, porque o antissemitismo europeu, por mais que se deixe ver vez ou outra, empalidece completamente se comparado à islamofobia no continente. (Observou-se de fato, recentemente, oposição crescente a judeus e muçulmanos – as duas curvas parecem estar correlacionadas –, resultado provável do ressurgimento do etnocentrismo entre os europeus mais velhos, menos letrados e de orientação política mais conservadora.)

Apesar de tudo, parece ser verdade que a execução, por um autoproclamado Estado judeu, de vários ataques assassinos no Líbano e em Gaza, e o apoio que esses ataques receberam de organizações oficiais de judeus em todo o mundo, determinaram um muito lamentável – embora absolutamente previsível – efeito de “respingamento” sobre todos os judeus, que parecem estar começando a ser, todos, considerados culpados. Se, como o Fórum Israelense de Coordenação da Luta contra o Antissemitismo [ing. Israeli Coordination Forum for Countering Anti-Semitism] afirmou “houve claro aumento no número e na intensidade de incidentes antissemitas” durante o massacre de Gaza; e se “com o cessar-fogo, houve marcado declínio no número e na intensidade dos incidentes antissemitas”; e “outro ataque semelhante à operação em Gaza determinará novo surto de atividade antissemita contra comunidades em todo o mundo”, então, método eficaz de combater o antissemitismo parece ser conseguir que Israel suspenda a prática de massacres.

Também é verdade que o crescente fosso entre apoio oficial aos belicistas israelenses e a rejeição popular aos mesmos belicistas parece estar servindo de combustível a mais teorias antissemitas conspiratórias. Na Alemanha, por exemplo, o establishment político e a mídia dominante não dão espaço a qualquer crítica contra Israel por causa do “relacionamento especial”, ideia que cresce na Alemanha, a partir do que se entende que seja “a responsabilidade histórica” da Alemanha. A chanceler Angela Merkel antecipou-se a outros líderes europeus na defesa de Israel durante a invasão de Gaza. Mesmo assim, pesquisas recentes mostraram que 60% dos alemães rejeitam a ideia de que os alemães tenham qualquer especial obrigação com Israel (entre os jovens, a porcentagem chega a 70%); 50% veem Israel como país agressivo; e para 60% Israel persegue seus interesses mediante métodos cruéis.

Em termos mais gerais, Gideon Levy lembrou “a cena surreal, no auge do brutal ataque contra Gaza, quando chefes de Estado da União Europeia vieram a Israel e jantaram com o primeiro-ministro, em manifestação de apoio unilateral ao lado que promovia matança e destruição.” E embora tenha sido Israel a quebrar o acordo de cessar-fogo e lançar a invasão, os líderes europeus fizeram coro aos EUA (e ao Canadá) e pregaram o desarmamento, não dos assassinos, mas das vítimas. É questão de tempo, e os europeus começarão a preocupar-se – se já não começaram – com os interesses que se escondem por trás das políticas internacionais de seus respectivos governos.

A acusação de antissemitismo contra os não-judeus que se indignaram contra o massacre de Gaza parece cada dia mais sem sentido e mais mal-intencionada, face à indignação crescente e claramente manifesta também entre os judeus. Ao mesmo tempo em que organizações oficiais de judeus lançavam manifestos de apoio a Israel na invasão de Gaza, por todos os lados surgiam manifestações contra o massacre de Gaza, e assinadas também por organizações de judeus.

Muitos judeus de alto prestígio na vida das comunidades judaicas criticaram também Israel, embora nem sempre essas falas tenham sido muito claras ou muito divulgadas. Quando Israel passou à ofensiva por terra, depois de uma semana de ataques aéreos, um grupo dos mais destacados judeus britânicos, que se autoapresentaram como “apoiadores profundos e apaixonados” de Israel, manifestaram-se “horrorizados” ante o crescente número de mortos dos dois lados” e conclamaram Israel a cessar imediatamente qualquer operação militar em Gaza. Em tom muito mais contundente, o deputado e ex-ministro de relações estrangeiras do “Shadow Cabinet” Gerald Kaufman declarou em debate na Casa dos Comuns sobre Gaza: “Minha avó estava de cama, doente, quando os nazistas chegaram à cidade dela, Staszow. Um soldado alemão matou-a a tiros, na cama. Minha avó não morreu para dar cobertura a soldados israelenses que assassinem avós palestinas em Gaza.” E acusou o governo de Israel de “explorar cruel e cinicamente o sentimento de culpa dos não-judeus pelo massacre de judeus no Holocausto, como justificação para o massacre de palestinos.”

Quase ao mesmo tempo, na França, Jean-Moïse Braitberg, escritor judeu muito popular exigiu que o presidente de Israel removesse o nome de seu avô do memorial no Yad Vashem dedicado às vítimas do holocausto nazista, “para que o nome do meu avô não continue a ser usado para justificar o horror praticado contra os palestinos.”

Na Alemanha, Evelyn Hecht-Galinski, filha de um ex-presidente do Conselho Geral dos Judeus na Alemanha, escreveu “Não o governo eleito do Hamás, mas o brutal exército ocupante (…) deve ser levado às barras do tribunal internacional de Haia”, ao mesmo tempo em que a seção alemã da organização Judeus Europeus a Favor de uma Paz Justa lançou manifesto em que se lia: “Os judeus alemães dizem NÃO à matança praticada pelo exército de Israel”.

No Canadá, oito mulheres judias que ocupavam o consulado de Israel conclamaram “todos os judeus a manifestar-se contra esse massacre”. E Anton Kuerti, aclamado pianista canadense declarou que “Os inacreditáveis crimes de guerra que Israel está cometendo em Gaza (…) fazem-me sentir vergonha de ser judeu.” Na Austrália, dois romancistas premiados e um ex-deputado assinaram declaração em que, como judeus, condenam “o ataque tão violentamente desproporcional de Israel contra Gaza”.

O governo Bush e o Congresso dos EUA deram absoluto apoio a Israel durante a invasão. Resolução culpando integralmente o Hamás por todas as mortes e pela destruição de Gaza foi aprovada unanimemente no Senado e por 390 votos a favor e 5 contra, na Câmara de Deputados. Praticamente toda a mídia corporativa nos EUA também ofereceu, sem qualquer pejo, total apoio a Israel. “No Dia de Ano Novo, o esquadrão de louvação a Israel ocupou todas as páginas de colunas assinadas de todos os principais jornais nos EUA, como se fossem quintal seu”, observou o jornalista Max Blumenthal. “De todas as colunas assinadas publicadas no Washington Post, no Wall Street Journal e no New York Times desde o início da guerra contra Gaza, apenas uma coluna manifestava alguma dúvida quanto à correção e justeza do assalto.”

O máximo em matéria de ouvir os dois lados, para o New York Times, consistiu em publicar, lado a lado, os delírios de Jeffrey Goldberg sobre o mal absoluto representado pelo Hamás, e os conselhos de Thomas Friedman, para que Israel infligisse “pesadas dores à população de Gaza”. O rival novaiorquino do Times, o New York Daily News publicou coluna assinada pelo rabino Marvin Hier que conclamava os líderes mundiais a “nunca mais reconstruir Gaza”, apesar do sofrimento de “muitos civis”, porque “terroristas e gente que apóia terroristas não merecem qualquer mercê por sua desumanidade, crimes e cumplicidade.” Hier é fundador e líder do Centro Simon Wiesenthal e do Museu da Tolerância. Na névoa desse esquadrão de linchamento, até organizações de defesa dos direitos humanos dedicaram-se a condenar pesadamente o Hamás.

Apesar dessas doses massivas de veneno, pesquisas de opinião pública mostraram que, embora a maioria criticasse sempre muito pesadamente o Hamás, apenas 40% dos norte-americanos aprovavam o ataque israelense; e entre os eleitores do Partido Democrata (onde há grande número de judeus), a aprovação caía a 30%. Numa dramática manifestação de independência, que fez lembrar Jimmy Carter ao publicar seu Palestine Peace Not Apartheid, um ícone liberal, Bill Moyers, criticou Israel em seu programa de grande audiência, “Bill Moyers Journal”: “Ao matar indiscriminadamente idosos, crianças, famílias inteiras, ao destruir escolas e hospitais, Israel fez exatamente o que fazem os terroristas.”

Como Carter, Moyers imediatamente se tornou também alvo preferencial de Abraham H. Foxman, que o acusou de “racismo, revisionismo histórico e complacência com terroristas”; e do professor de Direito em Harvard, Alan M. Dershowitz, que escreveu sobre a “falsa equivalência moral” que Moyers teria construído entre o terrorismo do Hamás e o exército de Israel que “inadvertidamente matou alguns poucos civis palestinos usados como escudos humanos pelo Hamás.” Mas, outra vez como Carter, Moyers não cedeu e, depois que vários outros liberais saíram em sua defesa, conseguiu emergir sem arranhões, dessa fuzilaria de críticas e calúnias.

Enquanto avançava a invasão de Gaza, e as imagens de uma carnificina chocante transmitidas ao vivo pela rede Al-Jazeera já não podiam ser ignoradas, começaram a surgir fissuras na corrente dos apoiadores de Israel ditos ‘moderados’. Sob o título de “A Solução dos Dois Estados perdeu a hora e a vez?” o programa “60 Minutos”, dos mais vistos nos EUA, levou ao ar matéria sobre colonos judeus na Cisjordânia, em que se viam “residências de famílias árabes ocupadas por soldados do exército de Israel”. A página dos editoriais do Wall Street Journal, tradicionalmente de direita, publicou artigo assinado pelo professor de Direito George E. Bisharat sob a manchete “Israel comete crimes de guerra.” Roger Cohen, colunista do New York Times e incansável defensor de Israel, confessou em várias colunas que “estou envergonhado de ver as ações de Israel”. Noutra coluna, Cohen especulava: “a continuada expansão das colônias, o bloqueio contra Gaza, o muro de separação na Cisjordânia e o recurso à tecnologia de guerra” parecem ter sido planejadas precisamente para “humilhar os palestinos, quebrar-lhes a resistência e a autoestima, até que desistam de lutar por seus sonhos legítimos de alcançar um Estado, cidadania e dignidade.”

Para Andrew Sullivan, ex-editor de New Republic e autor conservador, o ataque dos israelenses contra Gaza “está longe do que se pode considerar atitude moral (…), nessa guerra que parece ser guerra de um lado só”. E chamou de “bárbaros” os judeus de direita que defendiam “a terrível carnificina que Israel pratica hoje (financiada em parte pelos EUA).” Philip Slater, autor de The Pursuit of Loneliness, estudo sociológico, declarou que “A Faixa de Gaza é pouco diferente de um grande campo de concentração comandado por israelenses, nos quais os palestinos são perseguidos e atacados, morrem de fome, não têm nem gasolina, nem água, nem energia elétrica – não encontram nem materiais de primeiros socorros. (…) Difícil, isso sim, seria respeitar os palestinos se não reagissem, pelo menos, com alguns foguetes de fabricação caseira”.

Enquanto isso, o Conselho Municipal de Cambridge, Massachusetts, enclave liberal, que abriga a Universidade de Harvard, adotou resolução “condenando os ataques contra e a invasão de Gaza pelo exército de Israel e os ataques com rojões de fabricação caseira lançados contra a população de Israel”; e um grupo de professores universitários nos EUA lançou campanha nacional conclamando ao boicote acadêmico e cultura contra Israel. Pesquisa feita pela organização American Jews descobriu que 47% dos entrevistavam apoiavam fortemente o ataque israelense, mas – em violento contraste com a ideia de que haveria massiva solidariedade a Israel – 53% dos entrevistados mostraram-se ambivalentes: 44% aprovavam ou desaprovavam “com reservas”; e 9% declararam-se “absolutamente contrários”.

Analistas experientes da comunidade dos judeus norte-americanos já detectam “mudanças pós-Gaza”. À parte “o segmento dos mais conservadores da comunidade pró-Israel”, observou M. J. Rosenberg do Fórum Israel Policy, “poucos manifestam abertamente apoio àquela guerra. Em Nova York, cidade na qual, no passado, se reuniram multidões de 250 mil pessoas em manifestações de ‘solidariedade’ a Israel, apenas 8 mil foram a Manhattan para uma manifestação “de judeus” num domingo de sol. Em confronto público com a liderança tradicional da comunidade, organizações de judeus consideradas hegemônicas, embora menos conhecidas, como a J Street, ficaram a meio caminho e “reconhecem que nem os israelenses nem os palestinos têm qualquer monopólio dos certos e errados”; e recomendaram “que se evitem as posições estreitas de ‘nós contra eles’, em todas as questões do Oriente Médio. ”

Fundada em 2008, a organização J Street aspira a ser um contraponto liberal ao American Israel Public Affairs Committee (AIPAC). É cedo demais para saber se J Street – que trabalha atualmente numa agenda vagamente progressista, embora também se defina como “mais próxima” do Kadima, partido político israelense liderado por Tzipi Livni – chegará a firmar-se como “oposição leal” ou se aprofundará o teor das críticas contra a política israelense à medida que se aprofundar o fosso que separa os judeus norte-americanos e o atual governo de Israel.

Por sua vez, o grupo American Jews for a Just Peace divulgou manifesto conclamando os soldados israelenses “a porem fim à prática de crimes de guerra”. Outro grupo (“Judeus dizem não!”) reuniu-se em manifestação em frente da sede da Organização Sionista Mundial e dos escritórios da Agência Judia. E o grupo “Judeus contra a ocupação” distribuiu panfletos no West Side em Nova York, em que se lia “”Israel, saia de Gaza, AGORA!” Nos círculos intelectuais judeus liberais, só os apoiadores perpétuos de Israel, a maioria dos quais foram arregimentados depois da guerra de junho e já passam hoje dos 70 anos, ousaram manifestar-se em defesa da invasão de Gaza.

Para Michael Walzer, filósofo, pareceu óbvio que Israel exaurira todas as alternativas não violentas antes de atacar; e culpa do Hamás, se morreram civis. Para Walzer, a única “questão relevante” seria se Israel fez tudo que poderia ter feito para diminuir o número de baixas entre os civis.

Como sempre, para Alan M. Dershowitz, Israel “empreendeu seus melhores esforços para não matar civis”, estratégia que falhou porque o Hamas investiu na “estratégia de matar bebês”, para forçar Israel a matar crianças palestinas e, assim, conquistar a simpatia da comunidade internacional.

Também como sempre, para Martin Peretz, editor de New Republic, que examinou os sapatos dos palestinos, o bloqueio de Gaza seria benigno: “É preciso examinar os pés dos palestinos, para ver que usam tênis novos e, evidentemente, caros.”

Paul Berman entendeu como óbvia “uma possibilidade” de que o Hamás algum dia venha a promover o genocídio de judeus, “se se permitir que o Hamás continue a prosperar, e se seus aliados do Hezbollah e do governo iraniano conseguirem prosseguir com seus planos para construir bombas atômicas”. Sendo isso óbvio, Berman conclui que Israel, sim, tem todo o direito de atacar os palestinos, como medida de prevenção. (…)

Mas houve um influente contingente de intelectuais públicos liberais judeus que não se calou: a nova geração de bloggers judeus liberais e colaboradores regulares dos websites liberal-Democratas (p. ex., Salon.com e Huffington Post). Quase todos, são editores, anunciantes, patrocinadores, animadores de redes sociais, todos judeus, mas que falam por uma geração que, em larga medida amadureceu em mundo no qual a mitologia sionista já havia sido deslocada e superada por pesquisa histórica sóbria. O establishment político israelense é hoje magro e reacionário. As práticas de Israel no quesito Direitos Humanos já foram acuradamente analisadas pelos especialistas em direitos humanos.

A paranóia induzida pelo Holocausto e o ‘argumento’ do antissemitismo colidiram contra a realidade cotidiana de uma triunfante assimilação dos judeus em toda parte, da Ivy League a Wall Street, de Hollywood a Washington, do clube de campo ao altar de casamento. Profissionalmente, mentalmente e emocionalmente emancipada dos antolhos do passado, esse judeus íntimos da internet partiram para a ofensiva contra a invasão de Gaza desde o primeiro momento.

Há aí um simbolismo que não se pode ignorar. Onde os apologistas mais linha-dura a favor de Israel, como Walzer, Dershowitz e Peretz embarcam ainda no barco dos sionistas, os mais jovens, uma geração de intelectuais públicos judeus que hoje fazem nome e currículos na internet já saltaram dele. “Tenho pena deles, que desprezam sua herança”, sibilou Peretz. “São fedelhos barulhentos.”

Aqui estão alguns dos fedelhos barulhentos, representados por mensagens redigidas por eles.

Ezra Klein (25 anos; blogueiro da página American Prospect), em msg postada no 2º dia da invasão de Gaza: “Os rojões lançados pelos palestinos com certeza “perturbam profundamente” os israelenses. Os postos de controle, os bloqueios nas estradas, a restrição ao direito de ir e vir, a desesperadora falta de empregos, a opressão cada dia mais cruel, as humilhações diárias, as colônias ilegais – desculpem, “os assentamentos” – tudo isso perturba muito mais profundamente os palestinos; e são agressão muito mais grave. E os 300 palestinos mortos, esses, então, nos deveriam perturbar mais profundamente, a todos.”

Adam Horowitz (35 anos; blogueiro de Mondoweiss) escreveu, no 4º dia da invasão, em resposta à coluna de Benny Morris no New York Times: “É evidente que ele só vê as reações, não a causa. Lista respostas a Israel e a ininterrupta colonização da Palestina histórica, sem mencionar que há um elefante na sala; que, se Israel está encurralada, foi Israel quem buscou essa situação.”

Matthew Yglesias (28 anos; blogueiro de Think Progress) escreveu, no 6º dia: “Enquanto Israel diz que quer deixar os palestinos em paz em seu enclave minúsculo, superpovoado, economicamente inviável, o ‘desengajamento’ de Gaza [em 2005] jamais significou que os palestinos passariam a controlar suas fronteiras ou exercer qualquer soberania significativa sobre a área. A proposta, de fato, foi clara: os palestinos abdicam da violência armada contra Israel e, em troca, a Faixa de Gaza será tratada como reserva de índios.”

Dana Goldstein (24 anos; blogueira de American Prospect) escreveu, no 12º dia: “Quero ainda acreditar que a experiência histórica, coletiva do judaísmo e do sionismo pode levar a alguma coisa melhor – algo mais humano – do que o que vi no Oriente Médio semana passada!”.

Glenn Greenwald (42 anos; blogueiro de Salon.com) escreveu no 13º dia: “Não é uma guerra. É o massacre de um lado pelo outro”. E depois, dia 30/1/2010: “É simplesmente impossível fazer progresso real nos objetivos domésticos de restaurar a Constituição e reverter as expansões militares e de espionagem dos israelenses, se, simultaneamente, continuarmos a apoiar cegamente as muitas guerras de Israel (porque acabamos nos afundando, nós mesmos, naquelas guerras).”

Dia 20/2/2009, Greenwald respondeu insinuação de Jeffrey Goldberg de que ele seria “odiador de judeus”, “carrasco de Israel”:

“Pessoas como Jeffrey Goldberg” (…) respondeu Greenwald, “já abusaram, manipularam, exploraram tanto as acusações de “odiador de judeus”, “carrasco de Israel” e acusações de ‘antissemitismo’, sempre para fins desavergonhadamente pessoais, sempre impróprios, que, hoje, aquelas expressões já nada significam, perderam todo o conteúdo crítico, foram trivializadas até se converterem em caricaturas. (…). De fato, pessoas como Goldberg vão se tornando cada vez mais ácidas, mais rançosas, mais agressivas naquela sua retórica, precisamente porque sabem que seus aparelhos de sevícia e tortura retóricas já não servem para nada.” (…) “Há mudança definitiva e importante nos debates políticos nos EUA sobre Israel”, concluiu Greenwald. “Eles já não conseguem semear cada vez mais discórdia com suas táticas de intimidação; e já sabem disso; por isso é que subiram o volume dos seus ataques e dos palavrões e xingamentos. A devastação de Gaza pelos israelenses, contra uma população civil cercada – e usando bombas, dinheiro e cobertura diplomática dos EUA – foi tão brutal e horrenda que mudou para sempre o modo como o mundo vê o conflito no Oriente Médio”. (…)

A metamorfose generacional em relação a Israel é ainda mais evidente nos campi universitários. “Em alguns campi universitários houve mudança profunda em direção a sentimentos mais claramente pró-palestinos ou anti-Israel”, lia-se no Inside Higher Ed, que continua: “Essa mudança foi provocada, em parte, pela guerra do último inverno em Gaza”. Anfiteatros lotados para assistir palestras de comentaristas que se opunham firmemente ao massacre dos habitantes de Gaza. Os grupos ‘pró’-Israel manifestavam dentro dos anfiteatros ou à entrada, sempre grupos pequenos, muitos dos quais nem foram vistos.

Alunos da Cornell University atapetaram as trilhas do campus com 1.300 bandeiras negras, uma para cada palestino morto em Gaza. (Depois, a instalação foi depredada.)

Nas universidades de Rochester, de Massachusetts, de New York, na Columbia University, no Haverford College, no Bryn Mawr College e no Hampshire College, os alunos organizaram abaixo-assinados, manifestações e ocupações [ing. sit-ins] exigindo que se oferecessem bolsas de estudo para alunos palestinos e ações de desinvestimento em indústrias fabricantes de armas e empresas que negociassem com as colônias ilegais exclusivas para judeus. No Hampshire College, os alunos conseguiram que os acionistas e patrocinadores da escola se manifestassem a favor de desinvestir em corporações norte-americanas que auferissem lucros diretamente da ocupação da Palestina.

Embora as organizações ‘pró’-Israel tenham repetido que “colégios e universidades (…) tornaram-se caldo de cultura para o crescimento de uma nova cepa de antissemitismo”, em praticamente todas as principais instituições os alunos judeus participaram ativamente das manifestações pró-palestinos, em comitês locais de “Estudantes pela Justiça para a Palestina” e de “Anarquistas na luta contra o Muro” [ing. Anarchists Against the Wall, além de participações individuais, como de Anna Baltzer, autora de “Testemunha na Palestina”, que visitou várias escolas, para falar pessoalmente do que vira acontecendo na Palestina.

Os laços de solidariedade que se criaram entre jovens judeus e jovens muçulmanos que se opõem à ocupação – em várias universidades, os grupos mais militantes reúnem radicais judeus não-religiosos e mulheres muçulmanas – permitem ter esperança de que será possível construir uma paz duradoura.

Depois de uma palestra que fiz numa universidade canadense, sobre o massacre de Gaza, recebi de presente dos organizadores um broche em que se lia “I ♥ GAZA.” Prendi o broche na minha mochila e parti para a aeroporto. Na fila para o embarque, um passageiro atrás de mim disse-me baixinho “Gosto do seu broche”. Vejam só, pensei eu, the times they are a-changing, como cantou Bob Dylan. Horas depois, pedi um copo d’água ao comissário de bordo. Ao me servir a água, o rapaz curvou-se e disse “Gosto do seu broche”. Hmm, pensei comigo, alguma coisa já está acontecendo por aqui.

* Nota dos editores:

Esse artigo é excerto de um capítulo do novo livro de Norman Finkelstein sobre o conflito de Gaza, This Time We Went Too Far – Truth and Consequences of the Gaza Invasion, publicado esse mês pela editora OR Books. Para comprar o livro, visite http://www.orbooks.com/. O livro não está à venda em livrarias nem em distribuidores de livros por internet.

[1] Em http://www.acbp.net/About/PDF/ARTICLE-Second%20thoughts%20about%20the%20Promised%20Land.pdf

[2] Organização de judeus, ativa em todos os campus universitários em todo o mundo; para conhecer, por exemplo, o Hillel de São Paulo, ver http://www.hillel.org/about/news/2003/20030520_new.htm

O artigo original, em inglês, pode ser lido aqui.

Tradução de Caia Fittipaldi

Artigo originário do Vi o Mundo.


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