terça-feira, março 30, 2010

Os reféns da história da imigração para a Coreia do Norte

Os reféns da história da imigração para a Coreia do Norte



Philippe Pons

Enviado especial a Osaka (Japão)



Ko Chong-mi tinha 3 anos quando sua família decidiu deixar o Japão para voltar ao país, em 1963. Seus pais, coreanos que chegaram ao arquipélago durante a colonização japonesa (1910-1945), fizeram parte do grande êxodo da República Popular Democrática da Coreia [Coreia do Norte], que começou em dezembro de 1959. Na época foram 93 mil os que deixaram o Japão pela Coreia do Norte. Uma viagem muitas vezes sem volta, que vários desses repatriados lamentaram por um bom tempo.



Ko Chong-mi fugiu da Coreia do Norte em 2003 e hoje vive no Japão, em Osaka. Em 2009, ela entrou com um processo contra a Associação Geral dos Coreanos do Japão (Chosen Soren), pró-Pyongyang, por ter enganado milhares de seus congêneres ao lhes prometer uma vida que eles nunca tiveram, e que para milhares deles terminou em campos de trabalhos forçados na Coreia do Norte. “Fomos vítimas de um sequestro como uma criança aceitando doces de um estranho”, diz.



Esse processo despertou no Japão dramas esquecidos, mas ainda atuais. Entre esses repatriados, havia 1.800 japoneses, esposas de coreanos. Há cerca de dez anos cem delas conseguiram fugir da Coreia do Norte e voltar ao Japão. Outras estão atualmente na China, na embaixada do Japão, em Pequim, e no consulado em Shenyang, sem conseguir partir devido à recusa das autoridades chinesas em lhes conceder um visto de saída. Dez dessas mulheres contaram o drama que viveram na Coreia do Norte.



Em Niigata, na costa oeste do Japão, uma avenida leva um nome coreano niponizado: Botonamu (salgueiros, árvore-símbolo de Pyongyang). A avenida dos Salgueiros que leva ao porto foi tomada nos anos 1960 por dezenas de milhares de coreanos vindos dos quatro cantos do arquipélago, que embarcavam alegremente para aquilo que lhes havia sido apresentado como “o paraíso dos trabalhadores”. Um navio soviético, decorado com guirlandas e bandeiras com a estrela vermelha, os transportava até Chongjin na Coreia do Norte. Homens e mulheres, vestidos com o traje tradicional das grandes ocasiões, e seus filhos, trazendo somente objetos de uso pessoal. Antes de embarcar, esses repatriados passavam por escritórios da Cruz Vermelha. Perguntavam-lhes se eles tinham certeza de que queriam partir. Mas que sabiam eles sobre a região para onde iam? Poderia sua situação ser pior em “seu” país do que a que enfrentavam no Japão?



A maioria dos 2 milhões de coreanos que foram ao arquipélago durante a colonização japonesa – voluntariamente ou em condições de trabalho forçado – havia voltado para o sul da Coreia logo depois da rendição do Japão. Um terço permaneceu lá. Sua situação era precária: a comunidade dividida em dois grupos (pró-Coreia do Norte e pró-Sul) era vítima de discriminações e muitos viviam de auxílio social.



Na época, a Coreia do Norte parecia uma terra prometida: ela vivia um progresso econômico superior ao da Coreia do Sul, atolada no caos da ditadura de Rhee Syngman, instaurada pelos Estados Unidos. Mais do que a ideologia, um patriotismo visceral animava os repatriados. A grande maioria não era originária do norte, mas do sul da península – especialmente da ilha de Jeju onde, em abril de 1948, a população em rebelião foi vítima de massacres pela milícia de direita e pelo exército (15 mil mortos no mínimo). A Coreia do Norte prometia trabalho, moradia e educação gratuita aos repatriados. “Minha mãe era viúva, e Chosen Soren se aproveitou de sua angústia”, lamenta Ko. A esperança viria a se chocar contra uma amarga realidade.



Ao chegarem a Chongjin, cidade portuária próxima da Rússia, com suas lojas vazias e população maltrapilha, as mulheres desesperadas, debruçadas na balaustrada, se puseram a berrar que não queriam descer. “Isso também aconteceu com meu irmão mais velho, que tinha 15 anos. Ele foi desembarcado à força, e colocado em um ‘asilo psiquiátrico’, onde morreu”, conta Ko.



“Não tínhamos escolha, e desembarcamos”, lembra Hiroko Saito. Japonesa, 20 anos, ela era casada com um coreano e mãe de um recém-nascido. O casal e seu filho estavam entre os primeiros a partirem em 1961. “Nunca falamos sobre isso, mas logo na chegada meu marido e meu soubemos que havíamos sido enganados”, diz. “Mas pensávamos que o país estava em construção, e que era preciso arregaçar as mangas”.



Ela viveu 48 anos na pequena cidade de Hyesan, perto da fronteira chinesa. Após a morte de seu marido, seguida da de sua filha mais velha em um campo de trabalhos forçados, e depois da de sua segunda filha, morta pela fome dos anos 1990, ela fugiu para a China: “Eu não aguentava mais”. Hoje ela vive no subúrbio de Tóquio.



“Ao chegarem à Coreia do Norte, os repatriados foram divididos em função de seus antecedentes, de suas qualificações e das capacidades de suas famílias no Japão de enviarem dinheiro”, explica Ko. “Os ‘privilegiados’, dos quais fazíamos parte pois minha mãe havia se casado com um membro da Chosen Soren, eram enviados a Pyongyang ou a Sinuiju, cidade na fronteira com a China, onde as condições de vida eram melhores. Em nosso caso, foi Sinuiju”. Os outros iam para as províncias do Norte: a “Sibéria” da Coreia do Norte. “Em Heysan”, conta Saito, “todo mundo era pobre. Nós e todos os outros”.



Depois da guerra da Coreia (1950-1953), época dos grandes “expurgos” dentro do Partido dos Trabalhadores que permitiram que Kim Il-sung garantisse para si um poder absoluto na Coreia do Norte, a população foi dividida em três grupos (“fiéis”, “neutros” e “hostis”) em função dos antecedentes, revolucionários ou não, de cada um. “Como vínhamos de um país capitalista, éramos considerados pouco confiáveis”, diz Ko.



Essa classificação que determinava o destino de cada um se confundiu no caos da fome dos anos 1990, e depois foi enfraquecida pela monetarização da economia e pelo aparecimento de um mercado paralelo: “A análise da sociedade norte-coreana nesses termos está ultrapassada”, acredita Andrei Lankov, professor da Universidade Kookmin em Seul. “O sistema de classificação existe, mas a marca da origem das pessoas se perdeu”, diz Ko. “Não se pode generalizar o destino dos repatriados: alguns deles não conseguiram se adaptar, mas outros fazem parte da elite”, observa um membro da Chosen Soren, a associação que promovia a Coreia do Norte no Japão.



“Nos anos 1960, o desastre econômico norte-coreano não podia ser previsto”, escreve Kang Chol-hwan em “Les aquariums de Pyongyang. Dix ans au goulag nord-coréen” [“Os aquários de Pyongyang: dez anos no gulag norte-coreano”]. O autor teve “uma infância feliz”, ainda que espartana, em Pyongyang. Sua família fazia parte da elite dos repatriados. Mas nos anos 1970, privilegiados ou não, muitos eram suspeitos de espionagem: Kang Chol-hwan (ele tinha 9 anos então) e seus pais foram enviados a um campo por dez anos, cujas terríveis condições de detenção ele descreve. Em 1976, o sogro de Ko desapareceu durante um mês. “Ele foi interrogado e espancado sem nunca saber do que estava sendo acusado. Teve sorte: muitos repatriados morreram nos campos de trabalhos forçados”. Segundo os órgãos de defesa dos direitos humanos, a população dos campos chega atualmente a 200 mil.



Depois da morte de seu marido, médico “esgotado por ter dado seu sangue aos doentes”, Ko se envolveu em um caso de empréstimo clandestino e “enviada à montanha”: ou seja, a “um vilarejo isolado e vigiado”, diz. “Então fui fichada e meus filhos não tinham mais o direito de continuar com seus estudos”. Ela decidiu ir para a China, onde foi vendida como “esposa” a um camponês chinês. Fugiu. Foi detida, enviada novamente à Coreia do Norte, e internada durante meses. Foi libertada e fugiu novamente, dessa vez conseguindo chegar ao Japão. Hoje, ela pede por uma indenização “em nome de todos aqueles cuja vida foi arruinada”.



O destino dos coreanos repatriados na Coreia do Norte é uma “nota de rodapé” da história da guerra fria: eles foram vítimas de questões políticas, nas quais a dimensão humanitária era secundária. O impacto da propaganda da Coreia do Norte, orquestrada no Japão pela Chosen Soren, não teria sido tão grande se outros interesses não tivessem interferido: “Os da direita japonesa, que queria se livrar de uma comunidade indesejável, e os da esquerda, que procurava promover a imagem de uma Coreia socialista”, explica o professor Fumiaki Yamada, diretor de um organismo de auxílio aos refugiados da Coreia do Norte em Osaka.



A Cruz Vermelha internacional, que forneceu apoio para o repatriamento, é criticada por não ter procurado conhecer melhor os motivos que levaram esses coreanos a partir (os preconceitos do qual eram vítimas), nem o destino que os esperava na Coreia do Norte.



Os dirigentes da Coreia do Norte, por sua vez, viam no repatriamento diversas vantagens: uma leva de mão-de-obra e de técnicos, mas também um “coringa” nas negociações com o Japão que pretendia se livrar dessa minoria, vista como potencialmente subversiva, e indesejada pelo Sul.



Os Estados Unidos queriam evitar qualquer conflito com o Japão opondo-se a um repatriamento desejado por Tóquio, uma vez que estavam negociando a renovação do tratado de segurança entre os dois países (1960). O Kremlin, fornecedor dos navios, via nesse primeiro êxodo em massa de um país capitalista para um Estado socialista um tema de propaganda e um meio de contrabalançar a influência da China na Ásia.



E foi assim que os repatriados do Japão foram os reféns desse emaranhado de maquinações políticas e de indiferença que fez deles os esquecidos da História.



Tradução: Lana Lim



Reportagem do Le Monde, reproduzida no UOL.



http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/lemonde/2010/03/24/os-refens-da-historia-da-imigracao-para-a-coreia-do-norte.jhtm


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