A Folha de São Paulo, a Ditadura e o Cinismo
Pois no dia 17 passado, o jornal Folha de São Paulo publicou um editorial em que, para insinuar que o presidente Hugo Chávez é um ditador, chama o que houve no Brasil entre 1964 e 1985, de "ditabranda". Abaixo o trecho do editorial da Folha de São Paulo.
"Outra diferença em relação ao referendo de 2007 é que Chávez, agora vitorioso, não está disposto a reapresentar a consulta popular. Agiria desse modo apenas em caso de nova derrota. Tamanha margem de arbítrio para manipular as regras do jogo é típica de regimes autoritários compelidos a satisfazer o público doméstico, e o externo, com certo nível de competição eleitoral.
Mas, se as chamadas "ditabrandas" -caso do Brasil entre 1964 e 1985- partiam de uma ruptura institucional e depois preservavam ou instituíam formas controladas de disputa política e acesso à Justiça-, o novo autoritarismo latino-americano, inaugurado por Alberto Fujimori no Peru, faz o caminho inverso. O líder eleito mina as instituições e os controles democráticos por dentro, paulatinamente."
Quem escreve os editoriais da Folha de São Paulo está devendo uma definição de "ditabranda". Talvez seja uma ditabranda aquela em que os governantes de plantão matam, digamos, menos de mil pessoas. Assim, como a regime de 1964-1985 executou cerca de 400 a 500 , é uma ditabranda. Os generais argentinos que mataram cerca de 30.000 pessoas criaram uma ditadura. O general Suharto, da Indonésia, que nos dias seguintes ao seu golpe que depôs Sukarno, na década de 1960, matou mais de 500.000, sem contar mortos e torturados até sua queda no final dos anos 1990 criou uma grande ditadura.
Não contente com isso, no dia 20, quando os professores Maria Victoria Benevides e Fábio Konder Comparato contestaram o disparate do editorial da Folha, provavelmente os mesmos editorialistas resolveram dizer que a indignação dos professores era mentirosa e cínica, acredito que pelo fato destes professores não condenarem o regime cubano. Mas me parece que não é necessário condenar Cuba e Fidel Castro para dizer que a ditadura do Brasil, foi, bem, uma ditadura.
Sim, porque ditabrandas não existem. 400 mortos pelo regime é muita gente! Milhares de pessoas perderam seus direitos políticos, centenas foram exilados, ou se exilaram porque não sentiam segurança que a sua integridade física estaria assegurada.
Aí, no painel do leitor da Folha, houve diversas manifestações de indignação, além da dos professores acima mencionados. Mas me chamou a atenção a dos "solidários" à direção da Folha.
Por exemplo, o senhor Edmar Damasceno Fonseca, de Belo Horizonte, com correspondência publicada no painel no dia 21, declarou:
"Em relação à "Nota da Redação" em resposta às cartas do senhor Comparato e da senhora Benevides, advirto a Folha de que, apesar de correta, a referida nota despertará a fúria da militância esquerdista. Logo a Redação receberá mais um exemplar da mais profícua produção intelectual da esquerda brasileira: os abaixo-assinados."
No mesmo sentido vai a correspondência do sr. Carlos Eduardo Cunha, também publicada dia 21, de São Paulo, quando afirma que, "Aqui não houve culto a personalidade, embora tenha havido violência e injustiças. Aqui não houve milhões de mortos nem fuga em massa para o exterior. Todos esses regimes se enquadram na definição de ditadura, mas as cores e a profundidade da falta de liberdade foram completamente diferentes."
Pessoalmente este blogueiro acredita que Cuba é sim, uma ditadura. Há restrições ao direito de ir e vir, não há liberdade de expressão, há prisão de opositores ao regime. Mas a questão não é sobre Cuba. É sobre Brasil. Veja que o leitor Edmar Fonseca afirma que a nota da redação declarando que a indignação dos professores era mentirosa e cínica é "correta".
E me chamou a atenção também a carta do capitão-de-mar-e-guerra reformado Paulo Marcos G. Lustoza, do Rio de Janeiro, publicada no painel do leitor do dia 20. O capitão Lustoza declara que:
"Com certeza o leitor Sérgio Pinheiro Lopes não entendeu o neologismo "ditabranda", pois se referia ao regime militar que não colocou ninguém no "paredón" nem sacrificou com pena de morte intelectuais, artistas e políticos, como fazem as verdadeiras ditaduras. Quando muito, foram exilados e prosperaram no estrangeiro, socorridos por companheiros de esquerda ou por seus próprios méritos. Tivemos uma ditadura à brasileira, com troca de presidentes, que não vergaram uniforme e colocaram terno e gravata, alçando o país a ser a oitava economia do mundo, onde a violência não existia na rua, ameaçando a todos, indistintamente, como hoje. Só sofreu quem cometeu crimes contra o regime e contra a pessoa humana, por provocação, roubo, sequestro e justiçamentos. O senhor Pinheiro deveria agradecer aos militares e civis que salvaram a nação da outra ditadura, que não seria a "ditabranda"."
Eu diria que está enganado o capitão Lustoza. Tivemos uma ditadura aqui. Os militares e civis golpista de 1964 quebraram a ordem constitucional, depuseram o presidente eleito democraticamente, cassaram colegas (isto é, outros militares que não compartilhavam as idéias dos golpistas), cassaram parlamentares e juízes, cancelaram eleições, e mataram sim, diversos opositores. Se não houve paredón, como ele afirma, houve as masmorras da operação OBAN, e dos CODI-DOI's , onde a tortura era prática de interrogatório. Na luta de constra-insurgência do Araguaia, as forças armadas executaram guerrilheiros que estavam presos e desarmados, além de enterrá-los em lugares incertos e não sabidos (muitos desses corpos até hoje não foram encontrados, impedindo familiares de promoverem os atos fúnebres cabíveis, e poderem chorar os seus entes queridos mortos). Vladimir Herzog provavelmente entra na conta de "provocador", contra o regime. Ele foi prestar depoimento à Polícia do Exército e no dia seguinte foi encontrado morto. Ou talvez o capitão acredite que Herzog se suicidou mesmo.
E por um pequeno detalhe, podemos lembrar que os generais argentinos, aqueles que mataram 30.000, que sequestraram crianças cujas mães eles assassinaram, também "trocaram presidentes, e colocaram terno e gravata", como ele diz.
Uma ditadura usará a força e a repressão contra opositores que ela tiver que usar para manter o controle social da nação. Para os militares brasileiros, o preço foi a morte de menos de 500 pessoas, para os uruguaios 3.000, para os argentinos 30.000 . Mas em qualquer caso, é uma ditadura. O resto é cinismo, como fez a Folha com seu neologismo bastardo, ou os defensores da "benignidade" do regime militar brasileiro pelas suas "relativamente poucas" mortes e prosperidade econômica.
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