segunda-feira, fevereiro 02, 2009

Bate-boca entre primeiro-ministro turco e presidente israelense a respeito de Gaza em Davos

Israelense briga com amigo turco em Davos

Premiê da Turquia, que medeia negociação entre Israel e Síria, se retira de debate após Shimon Peres defender ação em Gaza

Discussão vira comício em que presidente de Israel é acusado de levar palestinos à fome e responde culpando Hamas e Irã por conflito

CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A DAVOS

A guerra em Gaza chegou ontem aos usualmente mansos salões de Davos, na forma de um agitado bate-boca entre o presidente de Israel, Shimon Peres, e o primeiro-ministro da Turquia, Recep Tayyp Erdogan, que abandonou o plenário pisando duro e anunciando que nunca mais voltaria a Davos, a cidadezinha suíça que é o palco, todo janeiro, dos encontros do Fórum Econômico Mundial.
"Justamente o melhor amigo de Israel entre os países muçulmanos", balançava a cabeça Gareth Evans, presidente do Internacional Crisis Group, para assinalar uma possível consequência política do entrevero. De fato, quatro dias antes dos primeiros bombardeios a Gaza, o premiê israelense Ehud Olmert estava na Turquia, em negociações indiretas com a Síria.
O debate sobre Gaza acabou se transformando em um comício em que Peres ficou em nítida desvantagem, já que a ação de Israel na faixa litorânea governada pelo Hamas foi duramente atacada não só por Erdogan mas também por Amr Mussa, o secretário-geral da Liga Árabe, e até pelo secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon.
Ban criticou acima de tudo o ataque às instalações da ONU em Gaza, por ele qualificado de "chocante, alarmante e inaceitável". A crítica já havia sido feita antes, assim como as que Mussa e Erdogan fizeram, mas o problema é que, desta vez, estava presente uma alta autoridade israelense.

"Prisão a céu aberto"
O premiê turco, falando alto e em turco, criticou o embargo israelense a Gaza. "Nem uma caixa de tomate pode entrar sem autorização de Israel", afirmou, para emendar afirmando que o território era "uma prisão a céu aberto".
Atacou também a destruição provocada por Israel, ao afirmar que "nem US 1 bilhão ou US$ 2 bilhões bastarão para a reconstrução", em alusão aos US$ 613 milhões que Ban Ki-moon mencionara como primeira quantia a ser levantada para o território palestino.
Erdogan fez questão de defender um tema caro aos judeus, ao afirmar que sempre dissera que "o antissemitismo é um crime contra a humanidade". Mas engatou: "A islamofobia também é um crime contra a humanidade".
Mussa, por sua vez, negou que o ataque israelense tivesse sido uma reação ao contínuo disparo de foguetes pelo grupo fundamentalista Hamas. Disse que o problema de fundo é "a ocupação militar estrangeira" (israelense, no caso). E, também, a fome a que os habitantes são levados pelo bloqueio.
Peres foi o último a falar e usou tom de voz idêntico ao de Erdogan, como se ambos estivessem em um comício. Rebateu as acusações, leu trechos da carta de constituição do Hamas, que pede a morte de todos os judeus, e gritou: "A tragédia de Gaza não é Israel, é o Hamas, uma ditadura feia, muito feia".
Erdogan pediu direito de resposta, ganhou um minuto do mediador David Ignatius, editor-associado do "Washington Post", mas foi além, sempre em turco, que a intérprete não tinha condições de verter para o inglês, pela rapidez com que o premiê falava e pelas intervenções contínuas de Ignatius.
O premiê acabou levantando-se e saindo, sem cumprimentar Peres ou Ban. Só parou para receber caloroso aperto de mãos de Amr Mussa.
Depois, em rápida entrevista coletiva, Erdogan disse que Peres mentira sobre a guerra, mas deixou claro que sua irritação maior era com o mediador que lhe dera metade do tempo destinado ao israelense. "Assim não dá para ter uma discussão séria", afirmou.
Antes do incidente, Peres havia tocado incidentalmente em um aspecto que é chave para a crônica crise na região, ao dizer que ela se deve "à ambição do Irã de controlá-la". Um andar acima do debate sobre Gaza e meia hora antes, o chanceler iraniano, Manouchehr Mottaki, negava-se por duas vezes a dizer que seu país aceita a solução de dois Estados, o palestino e o israelense.
Em vez de responder, Mottaki sugeriu um plebiscito entre os palestinos para que decidam o que querem. "Não temos o direito de tomar decisões em nome do povo palestino", afirmou, no que parece um belo exercício democrático, mas tem o grave inconveniente de que, se a proposta fosse levada adiante, os palestinos é que acabariam tomando a decisão a respeito de Israel.
Somados os dois debates, Peres ficou isolado também no quesito Hamas: Mottaki, o chanceler iraquiano Hoshyar Zebari, Mussa e Erdogan defenderam a participação dos fundamentalistas nas negociações de paz.

Texto da Folha de São Paulo, de 30 de janeiro de 2009.


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