quarta-feira, dezembro 24, 2008

Duas ou três coisas sobre o AI-5

Duas ou três coisas sobre o AI-5

NA ALTURA da quinta ou sexta pergunta, a repórter me confessou que tinha apenas 28 anos, nascera depois daqueles tempos que ela considerava heróicos, quando a juventude e a sociedade em geral lutavam contra a tirania de um regime ditatorial.
Nas novas gerações, é comum este sentimento que beira a nostalgia por um tempo glorioso em que os bons e os maus estavam separados, os maus torturando os bons, os bons combatendo o bom combate da justiça e da liberdade.
A lembrança dos 40 anos da decretação do AI-5 provocou uma enxurrada de reportagens, documentários, mesas-redondas e quadradas, análises profundas e rasas daquela sexta-feira, 13, de um ano que realmente acabou.
Acontece que a história é um processo praticamente sem começo nem fim, os momentos se sucedem interligados, sem que se possa atribuir a uma data ou a um acontecimento a responsabilidade de gerar uma era na crônica da humanidade.
Para facilitar as coisas, sobretudo na mídia, destaca-se um ou outro episódio representativo de um tempo: os idos de março, a tomada da Bastilha, a batalha de Waterloo, a invasão da Normandia. Isto no plano da grande história. Na pequena história, os eventos são mais modestos, mesmo assim criam um painel que serve de referência para as gerações mais próximas.
Para quem viveu o período chamado de "anos de chumbo", a realidade não tem nada de heróica e muito menos de definitiva em termos históricos. Foi, como disse, um momento em que os desafios ideológicos, sociais e econômicos ganharam contornos explícitos. Em linhas gerais, a sociedade aprovou a ruptura da legalidade em 1964, embora sobrassem resíduos do Estado de direito que não foram aproveitados: habeas corpus, congresso aberto, liberdade de imprensa para aqueles que quisessem se manifestar.
Quatro anos mais tarde, a situação era diferente. Um largo escalão dos "revolucionários" de 64, jornais de peso e tradição liberal, políticos afoitos como Carlos Lacerda (que se considerava o delfim do movimento anterior), sofreu a decepção do segundo ato institucional que prorrogou o mandato de Castelo Branco e cancelou o calendário eleitoral do ano seguinte.
Aproveitando as brechas da legalidade que o primeiro ato não suprimiu, grandes parcelas da população se organizaram em movimentos de protesto contra as arbitrariedades do regime, o congresso estava aberto, habeas corpus eram concedidos, críticas e denúncias apareciam na mídia e nas ruas.
Veio então o AI-5. Em menor escala, repetiu-se o apoio da sociedade à medida de força, mas a reação foi engrossada por aqueles que esperavam maravilhas da quartelada de 64 e morreram na praia. O grau da repressão foi aumentado, nem por isso a sociedade deixou de dormir tranqüila. A luta contra a tirania não foi apoteótica como hoje se pensa. Os mártires tombados foram chorados postumamente, o "milagre brasileiro" enganava a realidade com estatísticas forjadas, o Brasil era o limite, "ame-o ou deixe-o", o último que apagasse as luzes do aeroporto.
O grande teste foi em 1970, na campanha pelo tricampeonato de futebol no México. Os que combatiam o regime queriam que o povo não tomasse conhecimento da seleção nacional. Seria uma traição à causa, um apoio afetivo e efetivo ao governo ditatorial que vivia então sua fase mais truculenta. Não deu pé. Tivemos uma festa verde-amarela, cores oficiais do regime.
Com o aumento da violência, mais chagas foram abertas na carne dos que se revoltavam contra o arbítrio. Mas nenhuma ditadura sobrevive tanto tempo sem o apoio tácito ou operacional da sociedade. Hoje, devido às numerosas celebrações daqueles anos, as novas gerações acreditam que tudo foi heróico e belo na luta contra a ditadura. A nostalgia se justifica. Como herança maldita daqueles tempos, o divisor de águas não é mais a justiça social e a liberdade. A repórter que me entrevistava, apesar de nostálgica pelo clima exaltado daquela época, me perguntou qual a banda que eu mais apreciava, o que achava do Marcelo Camelo e se eu já tinha comprado o ingresso para o show de Madonna.

Texto de Carlos Heitor Cony, na Folha de São Paulo, de 19 de dezembro de 2008.


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