A tortura por herança
Herança deixada para os mais pobres
Maria Inês Nassif
01/04/2010
A história é um processo, mas em alguns períodos os sobreviventes de um tempo conseguem perceber quase na pele que vivem um momento em que uma página é virada e outra se inicia. Nessas ocasiões, a impressão é a de que cada um de um vasto número de incógnitos atores sociais conseguiu imprimir a sua assinatura num capítulo da história e que os dias, meses e anos passaram a andar porque foram movidos por uma vontade coletiva. São momentos de explosão social de emoção indescritível e, quando eles acontecem, os consensos formados no tecido social têm conteúdo positivo – a construção do novo. Embora sejam situações que exijam a coragem coletiva da mudança, e isso sujeita a sofrimentos, elas trazem junto a alegria da superação. Não apenas uma superação pessoal, mas coletiva.
O golpe de 1964 completou 46 anos ontem. Há 25 anos, o país passou por um momento histórico de superação. O país, que vivera a quebra da ordem institucional com relativa indiferença, do ponto de vista da maioria não engajada partidariamente; que assistira a um início de resistência de massa nos movimentos populares de 68; que caíra novamente na letargia no período do milagre econômico e de feroz repressão do governo Médici; que lutou com dificuldade no governo Geisel, aquele presidente que manobrou maiorias parlamentares, aumentou a lista de desaparecidos políticos e interviu no Judiciário – esse país chegou ao governo Figueiredo tecendo consensos. A redemocratização foi um consenso; a anistia foi uma convicção coletiva; a luta pelas eleições diretas ganhou as ruas. O primeiro presidente civil não foi eleito pelo voto direto, mas certamente assumiu porque o fim do regime militar tornou-se uma explosão de consenso: se Tancredo Neves foi o escolhido pelo Colégio Eleitoral numa transição negociada com os militares, ele também foi ungido pelo consenso das ruas.
Esses momentos, todavia, são o limiar de um tempo. Embora tragam uma intenção construtiva, são capazes exclusivamente de operar a mudança da página. Não trazem, em si, a energia da superação que transforma. As letras que carregam das páginas da história passada apenas são efetivamente reescritas no momento em que, já virada a folha, se opera a reflexão, letra por letra, das páginas anteriores. É a única forma de conseguir que as folhas seguintes se livrem da sombra do passado.
Os governos pós-ditadura, na revisão do passado, andaram um tanto que impede acusá-los de não andar nada, mas andaram tão pouco que deixaram por escrever as páginas anteriores, que permanecem nas sombras. A Comissão da Memória e da Verdade, que tanto assombra os militares, é um exemplo. Não consegue sair do papel; como não sai, não reescreve o passado; como não reescreve o passado, não vira a página para o futuro. A reivindicação de decortinar as circunstâncias da morte e desaparecimento político dos adversários do regime militar e apontar os torturadores que operaram a máquina repressiva da ditadura não é um mórbido desejo de sobreviventes e familiares de recontar sofrimentos. É coragem de expor feridas para que outras não sejam abertas.
A recusa em mexer no lixo da repressão da ditadura cobra seu preço. A conta está nas delegacias de polícia, nos presídios e nos centros de detenção de menores. Está nas favelas, onde o crime incorporou a prática como punição, amedrontamento e técnica de interrogatório. Segundo relatório da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados oferecido como subsídio à missão oficial da ONU, em 2001, a tortura é “o principal mecanismo de investigação policial” no Brasil; “é largamente aplicada como meio de pressão e imposição de disciplina em presídios e em centros de cumprimento de medidas socioeducativas para adolescentes”. O relatório de 2005 traz uma análise de casos de tortura e crimes correlatos no banco de dados do SOS Tortura. De 1.863 dos casos coletados entre 31 de outubro de 2001 até 31 de janeiro de 2004 (que estão longe de representar a totalidade dos casos ocorridos no período), São Paulo foi responsável por 306 deles; Minas, por 283; Pará, por 168; Bahia, por 145; Rio de Janeiro, por 96; Distrito Federal; por 82; Maranhão, por 74, entre outros. Segundo a pesquisa, 40% desses casos aconteceram em delegacias de polícia e 21% em unidades prisionais. Segundo as vítimas, 38% dos casos de torturas foram operados como castigos e 33% para obtenção de informações.
A seccional da OAB do Estado do Maranhão acaba de entregar às autoridades uma lista com 43 pessoas mortas em presídios e delegacias do Maranhão desde 2008 e denúncias de torturas contra presos. O Espírito Santo foi denunciado na 13ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU pelas violações que ocorrem em seu sistema prisional.
Hoje, as principais vítimas de torturas e de violações de direitos dentro do aparelho policial e no sistema prisional são pessoas pobres; sofrerão mais abusos, tanto no sistema como fora dele, impostas pelo representante do Estado ou por aqueles que “substituem” sua autoridade pela força nas comunidades carentes, quanto mais pobres forem, e serão mais atingidos, entre os pobres, os negros.
A ditadura acabou; a tortura, não. Ela está impregnada no aparelho policial porque a história de superação da ditadura não a superou: protegeu-a sob o manto de um pseudo-esquecimento. Esse legado da ditadura a sociedade brasileira transferiu para as classes mais pobres, que estão pagando a conta.
Texto do Valor Online, mas visto no blog do Luís Nassif.
Marcadores: Brasil, tortura, violação de direitos humanos, violência, violência policial
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