quinta-feira, abril 23, 2009

A tragédia da migração por barco na Europa

A tragédia da migração por barco na Europa

Alexander Smoltczyk

Centenas de pessoas morreram na semana passada quando um barco levando migrantes virou na costa da Líbia. Este foi apenas o mais recente incidente em uma tragédia humana constante, que as medidas de combate à imigração apenas agravam.

É o mesmo tipo de areia, talvez a mesma areia de fato. As praias entre Siracusa e Gela estão cheias dela, uma areia desértica extremamente fina e ligeiramente vermelha. Os refugiados que sobreviveram à perigosa jornada do Saara líbio para a ilha italiana de Sicília estão habituados a esta areia. Eles sabem o gosto que tem e como dói nos pulmões quando inalada.

"Eles passaram por aqui; um deles acenou para mim", disse Carmelo Barbagallo, que gerencia o La Giara, um restaurante no cais do porto de pesca de Portopalo. Ele estava lá quando os 249 imigrantes desembarcaram na ponta sul da Sicilia na última segunda-feira. Eles estavam usando jaquetas de esqui velhas de segunda mão e seus bolsos continham areia da travessia do deserto e dos acampamentos no Saara. "Havia três mulheres grávidas entre eles", disse Barbagallo.

Ele mostra três barcos atracados no cais, pintados diversas vezes com cenas idílicas, símbolos de boa sorte e louvor a Alá. "Ninguém sabe como eles conseguiram chegar aqui, sem luz a bordo e sem comida", disse ele. "Devem estar tão desesperados que perderam o medo da morte."

Este barco também veio da Líbia, diz ele, apontando para outra embarcação. Assim como a que apareceu poucas horas depois na costa, a 70 km a oeste em Scoglitti, com 165 pessoas a bordo. Assim como o que emborcou perto da costa da Líbia poucas horas antes, depois de partir em meio a uma tempestade a oeste de Trípoli. Vinte sobreviventes foram encontrados boiando entre os corpos dos outros passageiros afogados.

A Organização Internacional de Migração estima que pelo menos 230 pessoas se afogaram no incidente, inclusive 69 mulheres e duas crianças. Aproximadamente 100 corpos foram recuperados até agora. O resto encontrou um túmulo de água no cemitério na porta da Europa chamado de Mediterrâneo.

Um segundo barco de pesca, com 357 pessoas a bordo, foi resgatado por um reboque napolitano, o Asso 22, pouco antes de afundar, e rebocado de volta para Trípoli. O capitão do Asso 22 falou da "cena apocalíptica" que o esperava quando centenas de figuras, umas abraçadas às outras para se salvar e gritando por ajuda, subitamente apareceram sob as luzes.

Uma minoria desesperada
O vento leva mais do que areia do Saara para a Sicília; leva pessoas para o norte desde os tempos antigos. São Paulo teve um acidente de barco na costa de Malta e, segundo a lenda, Maria Madalena foi levada para Provence. Desde 1988, quase 14.000 pessoas morreram fugindo para a Europa. Elas foram jogadas ao mar, surradas até a morte -ou simplesmente morreram de sede. E esse é apenas o número oficial de mortes registradas.

Há um elemento geopolítico por trás de todas as imagens de refugiados sofrendo com exaustão severa e exposição ao tempo. Os políticos nas capitais da Europa também decidem sobre as rotas e o carregamento transportado pelos contrabandistas de seres humanos. Tem a ver com gás natural, petróleo e urânio.

No final de março, por exemplo, o presidente da França, Nicolas Sarkozy, fez uma visita a Níger e assegurou à gigante de tecnologia nuclear francesa Areva que permaneceria uma parceira estratégica na produção de urânio até o ano de 2030. Esse urânio enche os barcos. "Milhares de jovens de Níger estão fugindo da guerra pelo controle dos depósitos de urânio e estão se agrupando na Líbia", disse Laurence Hart da Organização Internacional de Migração.

Em agosto de 2008, o primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi assinou um pacto de amizade com o líder líbio Muammar Kadafi. "Vamos receber mais gás e petróleo da Líbia e menos imigrantes ilegais", disse Berlusconi na época. Ele também concordou em pagar US$ 5 bilhões como compensação pelos anos que a Líbia foi colônia italiana. A firma de defesa italiana Finmeccanica também vai desenvolver um sistema de satélite para que a Líbia possa monitorar o fluxo de refugiados.

A ampla maioria de imigrantes ilegais, contudo, entra na Itália de forma perfeitamente legal. Eles chegam de avião, entram no país com visto de turismo e se escondem. Os refugiados que vão de barco são uma minoria de indivíduos desesperados que teriam poucas chances de serem admitidos por um consulado.

Resolver os "problemas da África"
A agência de segurança na fronteira externa da União Europeia, Frontex, tem base em Varsóvia. A Alemanha apoia seus programas "Hera" e "Nautilus". A ideia é impedir a vinda dos refugiados muito antes de chegarem às fronteiras da UE. Em 2004, o ministro do interior alemão da época, Otto Schily sugeriu usar fundos da UE para financiar campos no Norte da África para quem busca asilo. "Os problemas da África têm que ser resolvidos na África", disse ele.

Para deter o fluxo de refugiados, o Ministério do Interior em Roma equipou o Egito e a Tunísia com barcos para a guarda costeira, veículos com tração nas quatro rodas, binóculos de infravermelho e equipamentos para a polícia, além de organizar treinamentos. A Líbia, de sua parte, anunciou em janeiro de 2008 que ia destruir os barracos e acampamentos em seu território e imediatamente prender e expulsar todos os estrangeiros ilegais na Líbia. Contudo, desde que Kadafi foi eleito presidente da União Africana em fevereiro, este zelo aparentemente decaiu.

Organizações de ajuda denunciaram deportações para o deserto e campos de prisioneiros na Líbia e no Senegal onde os presos são brutalmente surrados e violentados, e as crianças passam fome. Para os que escapam desses acampamentos, o cruzamento noturno do Mediterrâneo em um barco de pesca provavelmente parece um pouco menos atormentador. De qualquer forma, o número de pessoas que chegam pelo mar na Itália aumentou fortemente no ano passado para 36.952.

Nesta semana, um destacamento da polícia italiana vai viajar para a Líbia para preparar a logística para patrulhas conjuntas dos dois países com um total de seis barcos. Será a primeira vez que os guardas costeiros de um país da UE será ativo nas águas territoriais da Líbia. Qualquer pessoa que for presa será colocada em um campo de deportação da Líbia -sem a possibilidade garantida pela constituição italiana de pedir asilo.

O ministro do Interior Roberto Maroni, do partido populista de direita Liga Norte, disse que a imigração ilegal da Líbia vai terminar assim que as patrulhas começarem, no dia 15 de maio. Nada poderia ser mais incerto. O que está claro, contudo, é que, quando controles mais rígidos são introduzidos, os contrabandistas escolhem rotas mais perigosas, e mais pessoas perdem suas vidas tentando entrar na Europa.

Desde que a Frontex conseguiu bloquear a passagem do Senegal para as Ilhas Canárias, os refugiados tiveram que fazer um desvio via Saara e Líbia. E desde que a data de 15 de maio foi anunciada, os contrabandistas da Líbia se apressaram em enviar seus barcos, em todo tipo de clima, tão lotados que quase afundam.

Uma guerra entre pobres
Hussein Gopalgong, 24, estudante de agronomia de Bangladesh, passou por tudo isso. Todo coberto com sua jaqueta polar de explorador no Ártico, está no portão do campo de refugiados Cassibilie, ao sul de Siracusa. É um dos sortudos que conseguiram chegar ao solo italiano. Ele pagou US$ 1.000 para a viagem de Trípoli pelo mar, seu pedido de asilo está sendo estudado e recebeu documentos de identificação das autoridades italianas. Pode começar uma nova vida.

Perto dele está Tonino, 47, gerente do armazém Magliocco & Sons, um homem todo arrumado, de barba grisalha. Tonino diz o que todos os italianos pensam, segundo ele. Ele fala das doenças que foram introduzidas, de tuberculose e AIDS, e da vida doce dos moradores dos campos, de sua arrogância, de seus acordos nebulosos, do dinheiro que recebem aos montes. "Mas quando você abre a boca, logo é taxado de racista", diz ele. "Ninguém diz nada, nem os políticos, nem a mídia, nem os juízes. Deve haver uma razão para isso, certo?"

Gopalgong ouve educadamente. Seu italiano ainda é rudimentar.

"Eles conhecem as leis melhor do que pessoas como nós. E quando seu pedido de asilo é rejeitado, eles fogem para o mato. É isso!" Tonino aponta para o outro lado dos trilhos onde, debaixo de um arbusto grande, um barraco feito de tábuas e lona pode ser visto. Ao ver o barraco seu tom se suaviza. "São uns pobres coitados. Como nós", diz Tonino.

Na Sicilia, o povo sabe o que é ser forçado a procurar uma nova vida em outro lugar. A edição desta manhã da "Gazzetta Del Sud", informou que o número de pessoas emigrando da província de Ragusa voltou a crescer. "O espectro da emigração voltou", diz a manchete.

"Se houver uma guerra aqui, será entre nós, os pobres, como sempre", diz Tonino. "É assim, não é?"

Gopalgong apenas sorri sob o capuz forrado de seu casaco e concorda hesitantemente com a cabeça. Ele parece incrivelmente feliz apenas por estar aqui.

Tradução: Deborah Weinberg

Texto da Der Spiegel, no UOL.

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2 Comments:

Blogger Leonardo said...

o cara tem como me flar q dia q foi isso?

6:14 PM  
Blogger José Elesbán said...

O texto no UOL é de 8 de abril. Não sei se ajuda.
Se não me engano, a Der Spiegel é uma revista semanal.

12:08 AM  

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