terça-feira, maio 27, 2008

A outra revelação do computador de Reyes

A outra revelação do computador de Reyes


Maria Teresa Ronderos
Bogotá, Colômbia

Na semana passada, a Interpol anunciou formalmente em uma coletiva de imprensa realizada em Bogotá que, apesar de as autoridades colombianas terem apreendido um dos computadores das Forças Armadas Revolucionárias Colombianas (Farc) confiscados na selva equatoriana depois de um ataque da força pública colombiana ao acampamento de Raúl Reyes, ex-membro do Secretariado - como é chamado a junta diretora dessa guerrilha -, não haviam manipulado seu conteúdo.

Como se nunca tivesse passado pela cabeça dele que alguém colocaria as mãos em seus equipamentos, Reyes tinha ali todos os documentos, cartas, fotos e vídeos que os chefes das Farc trocaram entre eles, com seus aliados, com pessoas a quem queriam conquistar como amigos e com os milhares de negociantes que lhes ofereciam todo tipo de parafernálias de guerra, desde 1999. Conhecemos apenas uma parte do enorme arquivo, e já apareceram conexões desse movimento de guerrilha com meio continente. Com Chávez e algumas figuras de seu regime, eles conversaram sobre um plano estratégico para impulsionar mutuamente seus fins: o bolivarismo dos primeiros e a queda do governo colombiano, para os segundos. Isso incluiu contatos para compras de armas na Rússia e Belarus, petrodólares, declarações e gestos com benefícios mútuos (Chávez pediu para as Farc o reconhecimento internacional como força beligerante, e as Farc fizeram do mandatário venezuelano um príncipe da paz quando liberaram seqüestrados depois que ele intercedeu).

Até onde se envolveu Chávez em semelhante despropósito pela obsessão de conseguir a libertação dos seqüestrados, e até onde, como asseguram os chefes das Farc em suas comunicações, seus fins reais incluía negócios menos altruístas, como a venda de armas, os aportes em dinheiro e a cumplicidade em crimes de guerra colombiana contra venezuelanos, será questão a ser definida em investigação futura (já que é possível que as Farc não tenham conseguido tudo que dizem).

Também aparecem no computador trocas de mensagens com os grupos mais extremos de produtores de coca, os de Quispe, na Bolívia, que pediam treinamento para seus homens; com alguns representantes do PT brasileiro; com outros da ala mais esquerdista da aliança liderada por Correa no Equador; com os da Pátria Livre, do Paraguai, bem como conexões com o Panamá, transações financeiras na Costa Rica e a lista segue...

A informação apresentada revela as alianças políticas internacionais que as Farc construíram, e ajuda a entender como um exército de homens, mulheres e crianças provenientes das margens mais esquecidas do campo colombiano despejavam tanta soberba. Olhavam-se em um espelho a partir do qual dirigentes políticos de quase toda a América os louvavam, pediam seu apoio e treinamento, manifestavam sua solidariedade. Como não iam se sentir transcendentais e filantropos?

Mas esses computadores de Reyes permitiram descobrir outro fato muito mais importante para a Colômbia: a absoluta ineficácia de sua política externa. Ou, para expressar a descoberta em outros termos, os profundos equívocos na linha adotada pela Colômbia para convencer os latino-americanos a não apoiar as Farc. A Colômbia, preocupada porque podia perder os milionários recursos do Plano Colômbia depois do 11 de setembro de 2001, resolveu se abrigar desde então, sem reparo nenhum, sob a cantata antiterrorista dos Estados Unidos de George W. Bush. No governo de Uribe, as Farc deixaram de ser uma guerrilha colombiana, produzida por erro e estupidez locais, e se converteram, como por magia, em uma força terrorista alienígena. E os diplomatas de Uribe saíram a alardear que o movimento não merecia apoio porque, como a Organização para o Tratado do Atlântico Norte (Otan), a Colômbia estava lutando contra as forças terroristas das Farc.

Qualquer pessoa que se defina como progressista, esquerdista ou nacionalista na América Latina não dá ouvidos a esse discurso, porque cheira a "made in USA". A Colômbia deveria, em lugar disso, ter explicado a seus vizinhos americanos que precisa que eles não apóiem as Farc porque a guerrilha causa danos à população colombiana mais pobre, sabota a produção e agrava a injustiça, e tornou os dirigentes colombianos mais retrógrados e assustadiços, já que associa as mudanças sociais necessárias à subversão e ao comunismo. Caso a Colômbia tivesse explicado aos vizinhos que é exatamente porque as Farc são sua responsabilidade, seu Frankenstein, surgido da inépcia de um Estado que jamais ocupou todo seu território com outra coisa que não armas e também, em parte, da concentração de terras e da desigualdade, não precisaria que ninguém desse à guerrilha razões para continuar existindo, do exterior. O panorama seria outro.

Caso a Colômbia houvesse construído um discurso próprio, autêntico e veraz para convocar a solidariedade dos povos irmãos em sua busca de reconciliação, é muito provável que as Farc obtivessem êxito muito menor em seus esforços de conquistar aliados em quase todos os países americanos. Caso Chávez, Rafael Correa e os partidos de esquerda soubessem com certeza que abrir espaço às Farc equivale a prolongar o conflito colombiano por anos, porque graças a elas se justifica a direita violenta, e isso os torna cúmplices da crueldade como método de domínio político e aliados de um movimento cujos ideais estão carcomidos por negócios lucrativos... Mas não. O governo colombiano constata o enorme fracasso de sua política externa nos computadores de Raúl Reyes, mas insiste em manter a mesma receita. A linguagem de Bush permeia a tal ponto seu discurso que o senhor Noble, da Interpol, colocou sua credibilidade em grande risco ao apresentar seu relatório por classificar as Farc como "terroristas".

Tomara que um novo governo colombiano, com mentalidade menos colonizada, aproveite a descoberta dos computadores de Reyes não só para desarticular os negócios montados pela guerrilha em todos os caminhos americanos mas também para reconhecer que as Farc só puderam chegar tão longe graças à nossa política externa falida, e que portanto é urgente corrigi-la.

Texto do Terra Magazine.


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