segunda-feira, maio 26, 2008

Texto de Elio Gaspari: De PedroSegundo@edu para Lula@org.br - Amazônia e Internacionalização da Amazônia

De PedroSegundo@edu para Lula@org.br

ESTIMADO PATRÍCIO,
Vosmecê não sabe como vivo bem. Leio os jornais do dia sem ter de esperar os navios que vêm da Europa. Sábado passado o correspondente do "New York Times" escreveu um artigo sobre a Amazônia, perguntando-se quem é o dono da região. O jornalista definiu como "protecionismo territorial" aquilo que nós, bem como os ianques, conhecemos como soberania nacional. Dias antes, uma folha londrina dissera que os brasileiros precisam entender que a Amazônia é algo muito importante para ser coisa só deles. Na mesma direção já se manifestaram em anos passados o presidente comunista francês François Mitterrand e o ex-vice-presidente americano Albert Gore. Durante o meu reinado já prosperava junto aos povos cultos a idéia de que o nosso vale amazônico é ocupado por gente "imbecil e indolente". Isso dá gravidade ao tema. Não se trata apenas de achar que a Amazônia não é brasileira, mas que, por ser o que é, brasileira não pode ser.
Vossa maçada chama-se meio ambiente. A minha chamou-se "livre navegação". Remanchei o quanto pude para evitar que embarcações estrangeiras subissem o Amazonas. À época sofremos enorme pressão internacional, sobretudo americana. Sei que por aí há uns grosseirões que ainda me chamam de "Pedro Banana", um dissimulado sacerdote do atraso. Quero ser claro: ao lado das sinceras manifestações em defesa do meio ambiente há interessados em mutilar nossa soberania.
Conhecendo minha circunspecção e a maneira como pondero cada palavra, pois os monarcas não devem sair por aí dizendo tolices (os presidente podem), vosmecê avaliará minha preocupação. Quero trazer à memória do patrício uma encrenca do meu tempo.
Em 1850 o governo americano pediu-nos licença para que William Herndon, um oficial de sua Marinha, descesse o Amazonas com uma embarcação tripulada por umas dez pessoas. Falavam em "curiosidade científica" na busca de "conhecimentos geográficos". Havia na Secretaria dos Negócios Estrangeiros quem quisesse negar a permissão, mas acabamos concendendo-a, pois sempre fui um soldado da ciência. Outro dia o tenente Herndon me foi apresentado pelo general Vernon Walters. É um careca destemido e carrancudo. Na nossa conversa, voltou a reconhecer que estava atrás de outra coisa. O governo de Washington estudava a possibilidade de transferir a escravaria do Sul dos Estados Unidos para a Amazônia. Iam além: admitiam a possibilidade de instalar no nosso vale o próprio empreendimento escravocrata americano. Se hoje os americanos falam em "protecionismo territorial", em 1852 o tenente Herndon falava em "trabalho compulsório" para povoar o protetorado da Amazônia norte-americana.
Dissimule muito, esbraveje pouco, mas não ceda. O que eles querem é a nossa soberania. Em 1867, quando eu abri a navegação do Amazonas, os americanos não tinham mais escravos, pois a guerra civil acabara dois anos antes.
Despeço-me desejando-lhe êxito na sua experiência republicana e transmitindo-lhe os cumprimentos da imperatriz a Dona Letícia. Como o senhor sabe, ambas têm a cidadania italiana.
Pedro de Alcântara
Por favor, propague a encrenca do século 19. Sugira a reedição do livro "A liberdade de navegação do Amazonas", de Fernando Saboia de Medeiros, publicado em 1938.

Texto de Elio Gaspari, publicado na Folha de São Paulo, de 21 de maio de 2008.


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