sexta-feira, maio 30, 2008

Brasil, 1968

Brasil, 1968

A PIOR SAUDADE é daquilo que não se viveu. O saudosismo de 68 no Brasil tem muito do que ficou só na promessa.
A ditadura militar amputou um movimento que poderia ter sido muito mais do que foi. Produziu ainda um outro efeito limitador, talvez mais importante: separou o 68 brasileiro em duas metades, uma política, outra cultural.
As imagens mais poderosas do 68 norte-americano ou francês mostram uma revolução que não separava política e cultura, que pensava a encenação pública das transformações do cotidiano como a nova política. Foi essa união que não se completou no Brasil.
Nossa parca tradição democrática e a repressão ditatorial empurraram para uma concepção estreita de ação política, em boa medida calcada na experiência dos partidos de esquerda tradicionais. E foi essa metade política limitada que dominou o 68 brasileiro, enquadrando sua metade cultural.
No Festival Internacional da Canção de 1968, Caetano Veloso defendeu, com "Os Mutantes", a música "É Proibido Proibir", slogan do 68 francês. Foi recebido com ovos, tomates e vaias. Sua resposta foi um longo discurso em que disse: "Se vocês, em política, forem como são em estética, estamos feitos".
Disse ainda: "Vocês têm coragem de aplaudir, este ano, uma música, um tipo de música, que vocês não teriam coragem de aplaudir no ano passado". Foi certeiro. Quem no auditório sobreviveu à ditadura ou não estava no exílio curtiu como nunca antes o seu disco "Qualquer Coisa", de 1975.
Isso porque, a partir de 1974, o general de plantão adotou uma estratégia de descompressão seletiva e gradual. A idéia parecia ser a de liberar a circulação de alguns bens culturais com muito maior velocidade do que fazer a "abertura política". A censura continuava, mas o diminuto público universitário podia ler Marx e ouvir Caetano.
Foi nesse novo quadro ainda restritivo que a metade cultural de 68 surgiu sem estar mais subordinada à política. Mas também sem manter com a política aquela união prometida em 68.
Quando a esfera pública brasileira voltou às ruas, a partir de 1977, havia já novidades importantes nas formas de organização política do movimento pela redemocratização. É possível mesmo que a metade política estivesse mais bem preparada para lidar com sua metade cultural de uma maneira que não a da subordinação. Mas a metade cultural já tinha tomado rumos próprios.
O período que vai de 1977 a 1985 trouxe a sensação de que algo ia se completar, que iam finalmente se juntar as duas metades separadas em 1968. Mas o país e o mundo já eram outros.


Texto de Marcos Nobre, na Folha de São Paulo, de 27 de maio de 2008.

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2 Comments:

Blogger ZEPOVO said...

O pior foi que a ditadura erradicou uma geração de lideres jovens que deveria ter aparecido no período e não apareceu.
Com a queda da ditadura, parlamentares novos deveriam ter assumido, mas não foi o que aconteceu, e pior, muitos parlamentares que realmente combateram a ditadura foram excluidos do parlamento por velhas raposas que souberam conviver muito bem com a ditadura...
Ainda hoje nosso parlamento é dominado por lideranças antigas, ultrapassadas, e as jovens lideranças só podem erguer a cabeça com aval da velha guarda

4:34 PM  
Blogger José Elesbán said...

É. De fato...

3:08 AM  

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