quinta-feira, janeiro 29, 2009

Medo de fantasmas, ou os mortos, ou retrospectiva de 2008.

Medo de fantasmas

NO CONTO "Os mortos", de James Joyce, Gabriel Conroy é o encarregado do discurso da festa na casa de suas tias, que acontece todo ano na época do Natal. Suas hesitações e contradições são as de uma pessoa viva.
Mas que pretende também representar uma nova geração, capaz de lidar com sucesso com o passado, com os mortos.
Diz ele no discurso: "Em encontros como este, sempre nos ocorrem tristes recordações: lembranças do passado, da juventude, de mudanças, de rostos ausentes, cuja falta sentimos. Nossa passagem pela vida é marcada por muitas dessas recordações e, se tivéssemos de pensar nelas todo o tempo, não nos sobrariam forças para desempenhar corajosamente nossas tarefas entre os vivos".
2008 mostrou que não é nem um pouco fácil viver entre os vivos.
Obama foi entendido como o Martin Luther King que sobreviveu e venceu. A crise econômica de hoje veio dizer que aprendeu a lição de 1929. Já a agitação de 1968 não teve repetição. Cartola e a bossa nova também não. São experiências que ficaram no passado. Não foram atualizadas como matéria viva do presente.
Reverências e homenagens protocolares receberam Antonio Vieira, Machado de Assis e Guimarães Rosa. E também a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Constituição de 1988. As comemorações da chegada da corte portuguesa, em 1808, ameaçaram fixar a data como a verdadeira fundação do Brasil. Uma vez mais, ficaram na superfície folclórica.
Em 2008, o passado surgiu, no geral, dessas maneiras assepticamente conservadoras: cuidadosamente progressista, saudosista, reverencial ou folclorizante. Um ano de muito pouco barulho. Como que para não perturbar o sono dos mortos. Medo de fantasmas, com certeza.
Um fantasma apareceu para Gabriel Conroy naquela noite. Sua mulher ouviu uma canção que a deixou triste e chorosa. Lembrou-a de sua juventude e de um rapaz de 17 anos, Michael Furey, que tinha se martirizado por amor a ela, no duro frio irlandês.
Pela primeira vez ela contava essa história trágica a Gabriel. E, pela primeira vez, ele penetrou no mundo de fantasmas em que vivem os vivos: "Sua alma acercava-se da região habitada pela vasta legião dos mortos. Pressentia, mas não podia apreender suas existências vacilantes e incertas. Ele próprio dissolvia-se num mundo cinzento e incorpóreo. O mundo real, sólido, em que os mortos tinham vivido e edificado, desagregava-se".
O passado e o presente estão repletos de Michael Fureys. Lembrar-se deles, deixá-los falar é a mais corajosa promessa que se pode fazer para o ano novo.

Texto de Marcos Nobre, na Folha de São Paulo, de 30 de dezembro de 2008.


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