quinta-feira, janeiro 29, 2009

Almirante Negro

O almirante negro

NADA COMO SENTENÇAS e pitacos sobre o passado para revelar cabeças e miolos do presente. Por dever de ofício, horas antes da inauguração da estátua do marinheiro de primeira classe João Cândido Felisberto, no dia 20 de novembro, indaguei à Marinha sua opinião acerca da homenagem.
O presidente da República participava do ato diante da baía de Guanabara, a mesma onde em 1910 mais de 2.000 marinheiros -boa parte negra- se sublevaram em quatro navios de guerra contra os castigos físicos que perduravam na Força, decorridos 22 anos da Abolição.
Foram mortos quatro oficiais a bordo e duas crianças em terra, quando a então capital foi bombardeada pelos rebeldes. O episódio se tornaria célebre como a Revolta da Chibata. A refrega foi determinante para o ocaso das atrocidades herdadas da escravidão.
Líder do movimento, João Cândido acabaria pouco tempo depois em cana, em uma ilhota junto com 17 companheiros. Só ele e um outro saíram vivos. O velho marinheiro morreria pobre em 1969. Aldir Blanc e João Bosco dedicaram-lhe um samba de antologia no qual foi aclamado como "Almirante Negro" -questões paralelas impuseram a mudança da letra para "Navegante Negro".
Noventa e oito anos após o levante, o Centro de Comunicação Social da Marinha respondeu que não identifica "heroísmo nas ações daquele movimento. Entretanto, nada tem a opor à colocação da estátua, desde que haja o cuidado de evitar inserções ofensivas à Força e às vítimas dos amotinados".
Por inserções ofensivas talvez se entenda a recusa ao hábito de açoitar o tronco dos marinheiros como o dos escravos nos pelourinhos décadas antes. Ainda hoje, a Marinha do Brasil ensina: tratou-se de "um triste episódio da história do país" -a Revolta da Chibata, não o cotidiano de corpos golpeados.
A Marinha, que em 1964 conheceu de perto a indisciplina militar, melhor faria se cultivasse a cautela. Enquanto Lula exaltava João Cândido e os revoltosos, a Força os condenava. Ao arrolar as atribuições do presidente, a Constituição obriga-o a "exercer o comando supremo das Forças Armadas". Chefe de um governo pusilânime diante dos militares, Lula fez que não ouviu a insubordinação.
Pior do que peitar o comandante das Forças Armadas -e as bases do Estado Democrático de Direito- é a sobrevivência de um pensamento que justifica as chibatadas, ao demonizar quem contra elas se insurgiu. A história, contudo, é implacável: enquanto a Marinha mantém a pregação anacrônica, João Cândido, feito estátua, contempla as águas da Guanabara onde um dia combateu o bom combate.


MÁRIO MAGALHÃES, repórter especial da Folha, escreve hoje excepcionalmente neste espaço.

Na Folha de São Paulo, de 24 de dezembro de 2008.


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