terça-feira, julho 29, 2008

EUA tentaram influenciar reforma política do Brasil

EUA tentaram influenciar reforma política do Brasil

Via agência federal americana, instituto gastou US$ 95 mil em seminário em Brasília

Governo americano queria fazer evento coincidir com a véspera do debate do tema no Congresso brasileiro, em 2005, segundo documentos


SÉRGIO DÁVILA
DE WASHINGTON

Em 2005, a Usaid, uma agência norte-americana ligada ao Departamento de Estado, gastou US$ 95 mil para promover um seminário sobre a reforma política brasileira. O evento aconteceu no Congresso brasileiro, teve uma entidade local como parceira e palestrantes estrangeiros e brasileiros.
O objetivo, segundo documentos obtidos pela Lei de Liberdade de Informação norte-americana e passados à Folha com exclusividade pelo pesquisador independente Jeremy Bigwood, era fazer o seminário coincidir com a véspera da discussão do tema no Legislativo brasileiro -e um ano antes da reeleição de Luiz Inácio Lula da Silva-, como maneira de "expandir o debate da reforma política brasileira".
Dois dos pontos que pareciam preocupar os proponentes norte-americanos do seminário eram a profusão de partidos pequenos no Brasil e a infidelidade partidária -e como isso parecia ocorrer com mais freqüência na direita do que na esquerda. "Embora esse padrão de fraca disciplina partidária seja encontrado em todo o espectro político, é menos freqüente nos partidos da esquerda progressista, como o Partido dos Trabalhadores", afirma um dos documentos.
"A cobertura máxima da imprensa deve ser buscada, com o objetivo tanto de instruir a imprensa política sobre as questões como estimular o debate nacional", continua o texto, que traz o título "Brazil - Support for Activity to Promote Broad Public Discussion on Political Reform" (Brasil -Apoio para Atividade de Promover Ampla Discussão Pública sobre Reforma Política).
O sucesso do programa seria avaliado conforme seis critérios, informa o documento, entre eles a "influência da conferência no debate nacional (incluindo a cobertura da mídia)" e a ""nacionalização" da conferência, de maneira que essa não seja vista como divulgadora da perspectiva dos EUA".
Essa preocupação em parecer local e não americano se manifesta em outro trecho, em que é exortado que haja contato com a consultoria legislativa via Setor Político da Embaixada dos EUA no Brasil, "devido à sensibilidade da questão".
O plano pede que todo o espectro político brasileiro seja contemplado entre os palestrantes convidados e é assinado pelo Consórcio para Fortalecimento dos Processos Políticos e Eleitorais (Cepps, na sigla em inglês), que reúne três grupos norte-americanos sem fins lucrativos que recebem fundos federais para ajudar países a desenvolver seus processos democráticos.
Um dos grupos era o Instituto Republicano Internacional (IRI), baseado em Washington, que capitaneou a operação. Criado em 1983 por iniciativa do então presidente Ronald Reagan (1981-1989), tem à frente o senador John McCain. O candidato da situação à sucessão de George W. Bush ocupa algum cargo no instituto desde 1993; hoje é o diretor de seu conselho.
Desde que Bush assumiu a Casa Branca, o orçamento anual do IRI dobrou para os atuais US$ 79 milhões. A verba vem principalmente da Usaid e do National Endowment for Democracy (fundo nacional pela democracia, ligado ao Congresso dos EUA).
Após contratempos e adiamentos, o IRI colocou o seminário em pé. Nos dias 9, 10 e 11 de agosto de 2005, no auditório Nereu Ramos da Câmara, foi realizado o evento "Reforma Política - Desafios e Perspectivas do Fortalecimento das Instituições Políticas Brasileiras".
A parceira local foi o Centro de Estudos das Américas da Universidade Candido Mendes, do Rio. Além do IRI, trabalharam na organização a norte-americana Fundação Internacional para Sistemas Eleitorais (Ifes, na sigla original) e a alemã Fundação Konrad Adenauer (KAS).
Na página da Câmara que anunciava o evento, o texto começava com a frase "A reforma política entrou de vez na agenda legislativa".
Ninguém recebeu cachê, e as despesas de viagem dos convidados estrangeiros foram pagas pela Usaid. Entre eles, pelo menos um nome hoje ligado à campanha de McCain.
A rigor, a entidade não quebrou nenhuma lei norte-americana. Por ser uma organização chamada 501 (c)(3), nome tirado da seção da Lei do Fisco dos EUA que a regula, ela pode operar em qualquer lugar do mundo que permita que ela opere. É o que disse à Folha Marcello Hallake, de escritório de advocacia Thompson & Knight, baseado em Nova York e especializado em organizações beneficentes. Quanto a atividades políticas, no entanto, há restrições quanto ao que uma 501 (c)(3) pode ou não fazer. Uma das proibições é lobby político -nos Estados Unidos.
Não é a primeira polêmica a envolver o IRI. A entidade foi acusada de ajudar a fortalecer os grupos que derrubaram o então presidente do Haiti, Jean-Bertrand Aristide, em 2004 -a organização nega as acusações.
Dois anos antes, no golpe frustrado que tirou do poder o venezuelano Hugo Chávez por algumas horas, o IRI soltou comunicado em que comemorava a vitória da democracia naquele país. O instituto depois se desculpou.
"Pelo passado da entidade, não me surpreende essa atuação do IRI no Brasil", disse Sarah Hamburger, do progressista Council on Hemispheric Affairs, de Washington.
Foi o último seminário do tipo do instituto no país. A reforma política brasileira não passou no Congresso até hoje.

Texto da Folha de São Paulo, de 22 de julho de 2008.


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