Desgosto
Desgosto
ESCREVO COM tristeza, embora a história comece com um cartaz da Lega Nord que achei hilário.
A Lega Nord é um partido político italiano que pregava o separatismo do norte da Itália, apostando no desprezo dos italianos do norte pelos meridionais pobres e roceiros que migravam rumo aos pólos industriais do norte do país (imagine, no Brasil, uma "Liga Sul" que quisesse um país de Espírito Santo para baixo, sem retirantes nordestinos).
A Lega Nord, ao ganhar expressão nacional, teve que converter seu separatismo em exigências de autonomia regional. Como reanimou suas tropas? Simples. Na Europa, o vínculo do cidadão com sua terra é atávico e facilmente exclusivo -não é, como nas Américas, o fruto do sonho de antepassados que imigraram. Foi fácil, para a Lega, tornar-se o partido dos descontentes com as ondas de imigrantes externos dos últimos anos: africanos, asiáticos e europeus do Leste.
Volto ao cartaz: é o perfil de um índio norte-americano, com seu cocar. Legenda: "Eles sofreram a imigração. Agora vivem em reservas. Pense nisso". Fiquei pasmo: os italianos não participaram da conquista do Oeste, mas muitos deles "fizeram a América"; agora deveriam se identificar com os índios norte-americanos e sua história? Qualquer coisa vale para tirar proveito da insegurança econômica e social das classes médias transformando-a em pavor do estrangeiro, do diferente, do outro afoito e rapace que estaria querendo nosso trabalho e nossas mulheres.
O cartaz (www.leganord.org/ilmovimento/
É um jeito de festejar o endurecimento da política italiana contra os imigrantes no novo governo Berlusconi, do qual a Lega é um componente essencial.
Posso entender (em termos) que um governo criminalize o acesso e a permanência ilegais no país.
Imagino (em termos) que um grupo étnico, encabeçando as estatísticas do crime, venha a ser discriminado no dia-a-dia do trabalho de polícia (em muitos países, se um branco assalta um negro, a polícia, chegando, primeiro prende o negro e depois se preocupa com a reconstituição dos fatos). Mas começo a me horrorizar quando, encorajados pelas idéias ambientes, uns amalucados, como aconteceu na Itália, organizam pogrons para incendiar acampamentos de comunidades ciganas.
Agora (Folha de 11 de julho) o governo italiano (apesar dos protestos da União Européia e da ONU) decretou um censo da população cigana nômade que vive na periferia das grandes cidades, crianças incluídas, com impressões digitais etc. -ou seja, um registro específico e detalhado que se torna obrigatório para uma etnia só. Note-se que um terço da dita população cigana não é imigrante, é italiana. E acrescente-se que o governo nomeou um responsável para a "questão cigana". Isso lembra alguma coisa?
Nada parecido aconteceu, num país ocidental, desde o começo da exterminação dos judeus, dos homossexuais, dos ciganos (coincidência) etc., durante o nazismo e o fascismo.
O próximo passo será uma estrela cravada no peito? Ou talvez, por os ciganos serem nômades, uma roda de charrete? Que cor?
O governo italiano afirma que tudo isso é para proteger as crianças ciganas que são forçadas a pedir esmola nas esquinas. Em suma, é para o bem dos ciganos. A justificativa dá arrepios: no começo, os nazistas diziam que a deportação protegeria os judeus contra a hostilidade dos arianos.
A oposição italiana e o papa se declararam contra. Poucas centenas de manifestantes apareceram em frente ao Parlamento, e só.
Neste espaço, em maio, estando na Itália, escrevi que, com a chegada de um presidente da Câmara que já foi do MSI (partido herdeiro do fascismo italiano), ficava claro que o passado da luta antifascista não era mais o divisor de águas da política italiana (ou européia).
Numa lápide murada no município de Cuneo (Piemonte), há um poema de Pietro Calamandrei, endereçado ao general nazista Kesserling, que acaba assim: "Por essas estradas se quiseres voltar/ aos nossos postos nos encontrarás/ mortos e vivos com a mesma garra/ povo reunido ao redor do monumento/ que se chama/ agora e sempre/ Resistência". Aparentemente, sobraram só os mortos.
Resta esperar que os italianos daqui, quando votarem para as eleições na Itália, não se esqueçam.
Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo, de 17 de julho de 2008.
Marcadores: Contardo Calligaris, discriminação, fascismo, Governo Berlusconi, Itália, racismo
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