quarta-feira, setembro 16, 2009

Euclydes e identidade nacional

Euclydes e identidade nacional

COMEMOROU-SE recentemente o centenário da morte de Euclydes da Cunha. Entre as muitas perguntas que a obra do grande escritor sugere, uma questão básica foi a de saber por que esse autor se tornou tão importante para o Brasil, por que a única obra sobre o Brasil que rivaliza em importância com "Os Sertões" é "Casa Grande e Senzala", de Gilberto Freyre.
Dois ensaios publicados em "O Estado de S. Paulo" (12/8) ofereceram pistas importantes para responder a essa questão. Dão a "Os Sertões" um papel-chave na formação da identidade nacional.
Walnice Nogueira Galvão argumenta que "Os Sertões" implicaram uma "reviravolta de opinião". Quando, a partir da Proclamação da República, espocaram revoltas pelo país, todas elas, inclusive a de Canudos, foram entendidas pela opinião pública como um retrocesso, como uma conspiração monárquica.
Euclydes compartilhava dessa opinião e também de um relativo desprezo pelo povo mestiço que deu origem a essas revoltas, mas mudou de opinião ao perceber que Canudos foi, primeiro, uma revolta autêntica e, depois, um massacre de gente pobre, mal armada e mal alimentada.
Que foi uma revolta heroica de sertanejos mestiços.
É nesse ponto que se concentra o ensaio de Lilia Moritz Schwarcz.
Euclydes foi para Canudos apoiado em uma visão equivocada de Darwin e no preconceito então generalizado na sociedade brasileira contra a mestiçagem. Mas muda de visão quando se vê diante do sertanejo de Canudos, dessa "síntese do solo, do clima e das condições de vida".
Ele continua com sua visão negativa do mestiço litorâneo, mas, diante do sertanejo, enche-se de admiração. Daí sua frase, "O sertanejo é antes de tudo um forte". É um Hércules e um Quasímodo, ou, nas palavras de Lilia, "é um auge do jogo de antíteses (...), é forte e fraco; imenso e diminuto -mas, sobretudo, é um desconhecido".
Euclydes não faz o grande elogio da mestiçagem; esse papel será desempenhado mais tarde por Freyre.
Começa o trabalho, de forma contraditória, mas com grandeza. Não é por acaso que sua frase sobre a força do sertanejo é a mais célebre de todo o livro, senão de toda a literatura brasileira. Os sertanejos somos nós, brasileiros, ou é isso o que queremos ser: fortes; fortes porque sertanejos, segundo Euclydes; fortes porque mestiços, segundo Freyre. A identidade do Brasil está aí. Não está apenas na alegria e na sensualidade do trópico e do Carnaval, na esperteza e na sutileza do futebol; está também na força mestiça do sertanejo.
É verdade que essa identidade está sempre sob ameaça. Que nossas elites são ambíguas, divididas entre a dependência e a ideia de nação.
Que, desde que o regime autoritário militar se tornou nacionalista, a sociedade brasileira aprofundou essa ambiguidade e que, desde o início dos anos 1990, se submeteu ao Norte. Por essa razão, ficamos para trás no plano econômico; por isso nossa economia cresceu menos da metade do que poderia ter crescido se contássemos, como contam nossos concorrentes asiáticos, com uma estratégia nacional de desenvolvimento.
Essa dependência, porém, não é uma fatalidade. Afinal, nosso lado sertanejo, nossa força mestiça, nossa identidade cordial e firme também existem. E por isso nesta década estamos começando a reagir, a pensar em termos do grande país que somos.
De suas responsabilidades internacionais e, principalmente, de sua responsabilidade por si mesmo, por esta grande nação de sertanejos que somos ou queremos ser.


LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA, 75, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC), é autor de "Macroeconomia da Estagnação: Crítica da Ortodoxia Convencional no Brasil pós-1994".
Internet: www.bresserpereira.org.br

bresserpereira@gmail.com

Texto publicado na Folha de São Paulo, de 31 de agosto de 2009.


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