segunda-feira, maio 11, 2009

Os Estados Unidos têm uma tradição de torturas

Os Estados Unidos têm uma tradição de torturas

Noam Chomsky

Os relatórios de tortura divulgados pela Casa Branca provocaram choque, indignação e surpresa. O choque e a indignação são compreensíveis - especialmente em relação ao Relatório do Comitê do Senado para os Serviços Armados, sobre o Tratamento de Detentos, que recentemente deixou de ser classificado como sigiloso.

Conforme o relatório revela, no verão de 2002, interrogadores em Guantánamo passaram a sofrer pressões cada vez mais intensas dos escalões superiores da cadeia de comando no sentido de estabelecer um vínculo entre o Iraque e a Al Qaeda. O waterboarding (prática de tortura que consiste em provocar uma sensação de afogamento, despejando água sobre o rosto, coberto por um pano, de um prisioneiro imobilizado sobre uma tábua ou mesa), entre outros tipos de tortura, finalmente gerou as "evidências" por parte de um detento, que foram utilizadas para ajudar a justificar a invasão do Iraque no ano seguinte por Bush-Cheney.

Mas por que a surpresa com os relatórios de tortura? Mesmo sem o inquérito, fazia sentido supor que Guantánamo fosse uma câmara de tortura. Para onde mais enviar prisioneiros de forma que eles estivessem fora do raio de ação da lei - aliás, um local que Washington está usando em violação a um tratado que foi imposto à Cuba sob a mira de armas? É difícil levar a sério a lógica da segurança que foi apresentada.

Um motivo mais abrangente para haver pouca surpresa é o fato de a tortura ser uma prática rotineira desde o início da conquista do território nacional, e para além deste território, à medida que as aventuras imperiais do "infant empire" (império na sua fase inicial) - como George Washington chamava a nova república - estendiam-se até as Filipinas, ao Haiti e a outros países.

Além do mais, a tortura era o menos grave dentre os diversos crimes de agressão, terror, subversão e estrangulamento econômico que ensombreceram a história dos Estados Unidos, assim como ocorreu no que se refere à história de outras grandes potências. As atuais revelações de torturas expõem mais uma vez o conflito entre "aquilo que representamos" e "aquilo que fazemos".

A reação foi veemente, mas sob certos aspectos isso gera algumas questões. Por exemplo, o colunista do "New York Times" Paul Krugman, um dos mais eloquentes e contundentes críticos das más ações de Bush, escreve que no passado nós éramos "uma nação de ideais morais", e que nunca antes de Bush "os nossos líderes traíram tão flagrantemente tudo o que a nossa nação representa".

Para dizer o mínimo, essa visão generalizada é uma versão bem distorcida da história. É um artigo de fé, quase uma parte do credo nacional, a noção de que os Estados Unidos são corretos, ao contrário de outras grandes potências, do passado e do presente - a ideia que é chamada de "excepcionalismo norte-americano".

Uma correção parcial disso pode ser a história recém-publicada pelo jornalista britânico Godfrey Hodgson, "The Myth of American Exceptionalism" ("O Mito do Excepcionalismo Norte-Americano"). Hodgson conclui que os Estados Unidos são "apenas um grande, mas imperfeito, país entre outros".

O colunista Roger Cohen, do "International Herald Tribune", ao comentar o livro no "New York Times", concorda que as evidências sustentam a avaliação de Hodgson, mas discorda de um ponto fundamental: segundo ele Hodgson não conseguiu entender que "os Estados Unidos nasceram a partir de uma ideia, e, portanto, o país tem necessariamente que levar essa ideia à frente".

A ideia é revelada pelo nascimento dos Estados Unidos como uma "cidade no topo de uma montanha", escreve Cohen, uma "ideia inspiradora" que mora "nas profundezas da psiquê norte-americana".

Em suma, o erro de Hodgson consiste em aceitar "as distorções da ideia norte-americana nas décadas recentes". Voltemo-nos agora para a "ideia" dos Estados Unidos.

A frase inspiradora "cidade em uma montanha" foi criada por John Winthrop em 1630, que a tomou emprestada dos Evangelhos, e que delineia o futuro glorioso de uma nova nação "comandada por Deus".

Um ano antes a sua Colônia da Baía de Massachusetts criou o seu Grande Selo. Ele mostra um índio com um pergaminho saindo da boca. No pergaminho estão escritas as palavras: "Venham e nos ajudem". Assim, os colonos britânicos eram humanistas benévolos, que respondiam aos apelos dos nativos miseráveis para que fossem salvos de seu amargo destino pagão.

Essa proclamação inicial de "intervenção humanitária", para usar o termo atualmente popular, mostrou-se bastante semelhante às suas sucessoras, deixando horrores ao longo do seu percurso.

As vezes há inovações. No decorrer dos últimos 60 anos, vítimas de todo o mundo enfrentaram aquilo que o historiador Alfred McCoy descreve como "a revolução da CIA na ciência da dor", no seu livro de 2006 "A Question of Torture: CIA Interrogation, from the Cold War to the War on Terror" ("Uma Questão de Tortura: Interrogatórios da CIA, da Guerra Fria à Guerra Contra o Terror").

A atividade de tortura é frequentemente transferida para subsidiárias. Mas o waterboarding é um dos métodos utilizados há décadas que aparece com poucas modificações em Guantánamo.

A cumplicidade com a tortura destaca-se com frequência na política externa dos Estados Unidos. Em um estudo feito em 1980, o cientista político Lars Schoultz descobriu que o auxílio financeiro dos Estados Unidos "tende a fluir desproporcionalmente para governos latino-americanos que torturam os seus cidadãos,... para os violadores relativamente ostensivos dos direitos humanos fundamentais".

O estudo de Schoultz e outros que chegaram a conclusões similares precedem a era Reagan, quando não valia a pena estudar o tópico porque as correlações eram demasiadamente evidentes. E essa tendência continua até o presente sem nenhuma modificação significante.

Não é de se surpreender que o presidente nos aconselhe a olhar para frente, e não para trás - uma doutrina conveniente para aqueles que empunham os porretes. Mas aqueles que são espancados tendem a enxergar o mundo de forma diferente, para grande irritação nossa.

Entre os impérios, o "excepcionalismo" é provavelmente quase universal. A França exaltava a sua "missão civilizadora" enquanto o ministro francês da Guerra pedia o "extermínio da população nativa" da Argélia.

A nobreza britânica era uma "novidade no mundo", declarou John Stuart Mills, enquanto rogava que a sua potência angelical não postergasse mais a conclusão da sua campanha de libertação da Índia. O clássico ensaio de Mills, "A Few Words about Non-Intervention" ("Umas Poucas Palavras Sobre Não Intervenção"), foi escrito logo após a revelação pública das atrocidades horríveis cometidas pela Grã-Bretanha ao suprimir a rebelião de 1857.

Tais ideias "excepcionalistas" não são apenas convenientes para o poder e o privilégio. Elas são também perniciosas. Um dos motivos para isso é que elas mascaram os crimes reais em andamento. O massacre My Lai durante a Guerra do Vietnã foi apenas uma nota de rodapé para as atrocidades muito maiores dos programas de pacificação pós-Tet. A invasão de uma sala em Watergate que derrubou um presidente dos Estados Unidos foi sem dúvida criminosa, mas o furor provocado por ela desviou a atenção de crimes incomparavelmente piores perpetrados nos Estados Unidos e no exterior - o bombardeio do Camboja, para mencionar apenas um exemplo horrível. É muito comum que atrocidades seletivas exerçam essa função.

A amnésia histórica é um fenômeno muito perigoso, não só porque ela mina a integridade moral e intelectual, mas também porque cria as fundações para os crimes que serão cometidos adiante.

Texto do The New York Times, no UOL.


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