Alfonsín e Perón
Alfonsín e Perón: duas faces da história
Tomás Eloy Martinez
Dos Estados Unidos
Quando estas linhas forem publicadas, já terão sido mencionadas na Argentina todas as qualidades de Raúl Alfonsín, o ex-presidente que faleceu de câncer no dia 31 de março: a sua honestidade como governante, uma virtude que seus sucessores tornaram mais evidente; a sua vocação republicana, que o levou a travar lutas incansáveis contra a intervenção da Igreja nos assuntos do Estado, com a importante vitória de promover a lei do divórcio; a sua coragem para processar os ditadores que tinham sido donos do país e ainda tinham força para proteger a sua impunidade.
Também terão mencionado seus erros: A sua tortuosa relação com o poder econômico, o desacerto do pacto de Olivos, que tentava instaurar uma república parlamentarista e só conseguiu fortalecer a onipotência presidencial e desgastar as instituições. Terá se repetido muitas vezes, mas nunca o suficiente, que em sua bússola só existiu o norte da consolidação da democracia recuperada em 1983, para que fosse definitiva, depois de cinco décadas de golpes de Estado.
Nenhum país do Cone Sul assolado pelas ditaduras do fim da Guerra Fria levou os chefes militares a juízo como fez Alfonsín na Argentina: uma intervenção exemplar dos poderes do Estado para que nunca mais os valores amparados pela Constituição fossem atropelados.
Esse gesto e sua terceira resistência à adversidade deram esperança às populações do Uruguai, Brasil e Chile, que recuperariam a liberdade logo após. E no seu tempo, ameaçado por três levantamentos militares, Alfonsín promoveu as leis do Ponto Final e da Obediência Devida, que a Suprema Corte declarou inconstitucionais anos depois.
A arrasadora campanha presidencial de Alfonsín, em outubro de 1983, deve ter sido a última demonstração espontânea de fé política, sem ônibus alugados carregados de eleitores pagos por um caudilho regional em busca de favores, e sem a intervenção decisiva da televisão. Com aquela campanha, Alfonsín conseguiu, pela primeira vez e por vias legais, ganhar do peronismo, coisa que a truculenta ditadura não tinha conseguido. Então, ele teve o maravilhoso valor de tocar o coração dos argentinos ao lembrar-lhes como tinham decidido construir uma nação para buscar a paz e o progresso.
Naqueles dias, bastava que ele recitasse o preâmbulo da Constituição para que sua voz se transformasse em uma íntima lembrança, para resgatar o estado de direito que muitos tinham desprezado ao ver os grotescos carnavais de Isabel Perón e o seu astrólogo, ou as utopias do socialismo, quando o muro de Berlim ainda estava de pé. Ao repetir várias vezes as linhas do preâmbulo, reivindicou o respeito pela voz alheia e pelo diálogo civilizado com os adversários.
Essas são as imagens preservadas pela história. Eu quero contribuir para a sua memória com o relato de um episódio menor, que reflete o reverso dessas medalhas, mas que, ao mesmo tempo, o mostram de corpo inteiro.
Eu conheci Alfonsín em Caracas, em 1981. Ele estava hospedado na casa do seu amigo Adolfo Gass, que seria eleito senador pelo radicalismo quando voltou do exílio. Alfonsín estava de cama, abatido por uma gripe tropical, e não vi nele nada que me impressionasse. O seu aspecto e seu modo de falar pareciam os de um homem comum, sem sinais que revelassem o futuro presidencial que lhe vaticinavam tanto Gass como o matemático Manuel Sadosky, que tinha me levado para conhecê-lo.
Talvez porque a gripe o desanimava, não vi no Alfonsín daquele dia o brilho político necessário para que os argentinos o seguissem, para que se libertassem da indiferença e do medo impostos pelo poder autoritário. Confessei as minhas impressões a Gass e a Sadosky, e ambos concordaram que o Alfonsín de pijama que eu acabara de conhecer, de aparência tão cinza e modesta, era um gigante nas tribunas, no parlamento e nos discursos públicos.
"Alfonsín jamais esquece que a história está de olho nele", disse Gass, "e que a história contabiliza tudo o que ele diz e faz".
Voltei a estar com ele em agosto de 1987, poucos meses depois das rebeliões dos caras-pintadas, ocasião em que não se deixou levar pelo clamor da multidão que o apoiava. Fui visitá-lo na residência de Olivos para adiantar-lhe os assuntos gerais da entrevista que lhe faria naquela mesma noite na televisão. Ele não fez objeções às minhas perguntas e me incentivou a questioná-lo com total liberdade.
"Só lhe peço", disse, "que se for acusar a mim ou algum dos meus colaboradores, tenha a certeza de estar se baseando em provas muito sólidas. Quando fazem intrigas sobre a honestidade de um funcionário, não há defesa possível, porque a suspeita fica pairando no ar e continua manchando por muito tempo o mais inocente dos inocentes".
Ninguém jamais se atreveu a pôr em dúvida a sua honestidade, saiu da política tão limpo como quando entrou.
Quando nos despedimos, disse-lhe que ainda não entendia por que tinha preferido negociar com os rebeldes caras-pintadas, em vez de enfrentá-los seguido pelas cem mil pessoas que repudiavam o golpe na Praça de Maio e se ofereciam para defender a recente democracia com as próprias vidas.
"Se aceitássemos esse caminho corríamos o risco de perder tudo: a democracia e muitas vidas", respondeu. "Pensei no meu papel perante a história. E não tive dúvidas".
"O senhor fez algo parecido com o que fez Perón", disse, "quando perguntei a Perón por que, se acreditava ser mais forte do que os rebeldes em 1955, não tinha tentado se defender".
Na ocasião, Perón me explicou que "não queria carregar na consciência um derramamento de sangue. Esses atos a história não perdoa".
O sorriso do presidente Alfonsín se fechou e a luz do meio-dia levou a cordialidade que tinha conduzido o nosso diálogo. Naquela noite, nos estúdios da televisão, ele voltou a ser o mesmo de sempre: preciso, rápido nas respostas, certeiro ao evocar os índices econômicos sem desviá-los nem um décimo.
Quando nos encaminhávamos para a saída, Alfonsín me colocou a um lado e me disse com firmeza: "Fiquei pensando no seu comentário de hoje pela manhã. Quero lhe dizer que Perón não vai me vencer na história".
Pois ali estava a invisível mãe de todas as batalhas, a história. Perón, na Puerta de Hierro, a sua residência, tinha reagido com raiva quando o fiz notar que Evita estava à sua frente no duelo pela posteridade. Agora Alfonsín, sem raiva, mas com a mesma firmeza, afirmava que a história o colocaria à frente de Perón, preferiria a ele e não a quem permitiu que a classe trabalhadora participasse da vida política e econômica.
Agora que os elogios e reprimendas que surgem com a morte vão de desvanecendo, os grandes homens vão ficando sozinhos, esperando que a história se pronuncie. Eles a escolheram como juiz e lhe cederam a última palavra.
Texto do Terra Magazine.
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