E agora, liberais?
E agora, liberais?
A MAIOR OPERAÇÃO ideológica desde a queda do Muro de Berlim foi por água abaixo. Fizeram do secretário do Tesouro dos EUA, Henry Paulson, um super-herói que iria salvar o planeta de um gigantesco acidente natural chamado crise financeira.
Colocaram no roteiro verdadeiras crises de consciência: o herói faria o salvamento ao preço de enorme sacrifício pessoal, imolando suas mais caras convicções liberais no altar da estatização.
Na seqüência, fizeram com que o já entronado grão-vizir das finanças públicas negociasse com os legítimos representantes do povo. Os superpoderes se tornariam então poderes supervisionados e delegados pela vontade da maioria.
O acordo entre Hollywood e o Capitólio foi selado no domingo e derrubado no dia seguinte. Para o Congresso dos EUA não foi suficiente dizer "desculpe, foi engano" depois de décadas de exaltação às maravilhas da desregulação econômica.
A situação é inédita. Pela primeira vez o capitalismo enfrenta uma crise global sem ter adversário. Não há movimento social e político de importância a confrontar o capital e a sua forma de distribuir a riqueza. E, nesse momento, a premissa de toda a encenação desmorona: não há harmonia preestabelecida entre capitalismo e democracia.
Resta saber que figurino vai usar agora quem toca o bumbo do liberalismo econômico no Brasil. A primeira tentativa foi vender o resgate como salvação universal e defesa do bem comum em uma situação de emergência. Não colou. Nos últimos tempos, resolveram dar de analistas imparciais, que não têm nada a ver com isso.
Nos casos mais patológicos, mantiveram a beligerância de sempre, só que disfarçada. Em vez de falar da crise do mercado, disseram que a regulação estatal também produz crises. Recorreram a uma suposta experiência histórica para dizer que políticas adotadas para conter crises só fazem piorar as crises. Para completar, espreguiçaram na cadeira de balanço e pontificaram que a crise é uma oportunidade, uma pausa para a reflexão e para a reforma interior da pessoa humana.
Não é só cinismo. É arrogância própria de quem serve ao poder do capital da maneira que for necessária. Poder que detém um quase monopólio da tradução da crise para a sociedade na esfera pública.
Foi essa arrogância que produziu tantas trocas levianas de figurino ideológico em tão pouco tempo. A dança descompromissada do liberalismo confiou em que um Congresso não desafiaria um plano que se apresentou desde o início como inevitável, sem alternativa. Vão ter de fazer muito melhor agora.
Texto da Folha de São Paulo, de 30 de setembro de 2008.
Marcadores: capital especulativo, capitalismo, crise, economia
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