O México vive sob o terror do narcotráfico
O México vive sob o terror do narcotráfico
O México vive dias de chumbo e sangue. Os narcotraficantes, infiltrados na polícia e na política, responderam à pressão do Exército e dos federais com uma guerra sem quartel. Ninguém está a salvo
Pablo Ordaz
Baixa a voz, olha de soslaio para um casal que toma café numa mesa vizinha e solta a pergunta:
- Contaram para você o que aconteceu num salão de cabeleireiro de Culiacán?
O barulho de um helicóptero do Exército voando muito baixo interrompe todas as conversas na praça de Morelia, capital do Estado de Michoacán. A cidade colonial está tomada desde que, na noite de 15 de setembro, que coincidiu com a celebração do grito de independência, duas granadas lançadas contra a multidão causaram a morte de nove pessoas e feriram uma centena.
Os soldados e os policiais, alguns deles encapuzados e portando rifles R-15, cruzam com vendedores de balões e casais de adolescentes de mãos dadas. Um segundo helicóptero segue o rastro do primeiro. Ninguém mais levanta os olhos. Numa das esquinas da catedral - em frente ao Palácio de Governo - continuam acesas as velas que os moradores colocaram para honrar as vítimas do primeiro atentado narcoterrorista da história do México. A noite vai se tingindo com os brilhos azuis e vermelhos dos carros da polícia.
- Onde?
- Num salão de cabeleireiro de Culiacán, no Estado de Sinaloa...
O cabeleireiro estava atendendo uma cliente regular. Outra mulher esperava sua vez folheando uma revista. A cliente se queixava com amargura da onda de violência inusitada da qual o México padece, sobretudo nos Estados do norte. Entre eles, a cidade de Sinaloa, berço dos narcotraficantes mais famosos; um lugar onde a metade das mortes acontece por tiros e onde os jovens assassinos mortos em combate descansam em mausoléus de mármore adornados com seus retratos. Há murais de até cinco metros nos quais é possível admirá-los empunhando um chifre de cabrito (o famoso rifle AK-47) ou posando em frente ao avião Cessna que pilotavam, carregado de drogas. A mulher se queixava no salão do mesmo que todo mundo se queixa no México. "Os traficantes já não matam apenas entre si". Em sua corrida ensandecida pelo controle dos lugares, em seus enfrentamentos quase diários com o Exército, já não importa que morram inocentes. O caso mais doloroso é o de Creel, uma cidade turística do Estado de Chihuahua. Um bebê e 12 adultos foram crivados com balas capazes de esburacar blindados. As pessoas recolheram 170 cápsulas do chão. Havia muito sangue. A polícia demorou muito tempo para chegar. Estranhamente, não havia nenhum policial nas proximidades. O crime das vítimas foi cruzar a rua principal da cidade junto com dois jovens assassinos, no mesmo momento em que um cartel rival estava atrás deles. Cento e setenta disparos.
- Já não dá mais para viver aqui - queixou-se a cliente para o cabeleireiro -, não podemos nem deixar nossos filhos brincarem na rua. E tudo por culpa do maldito narcotráfico...
Nesse momento, a segunda mulher, que havia permanecido em silêncio todo o tempo, levantou os olhos e disse uma palavra, só uma, dirigindo-se ao cabeleireiro:
- Raspe! [a cabeça dela].
O homem, assustando, tentou mediar, mas a ordem repetida era muito clara. Sobretudo porque vinha enfatizada por um revólver que a mulher acabava de tirar do bolso.
- Raspe!
Só quando se certificou de que o cabeleireiro havia começado a cumprir sua ordem, a desconhecida levantou-se e dirigiu-se à porta. Antes de ir embora, encarou a mulher e a advertiu:
- E não use peruca. Se usar, eu te mato.
O policial, sentado sob a galeria da praça de Morelia, ri da história. Diz que tem todo um repertório de casos iguais ou piores que esse. Histórias de terror que demonstram que o narcotráfico mexicano - conhecido como "el narco" no país - está deixando de ser um assunto distante, um mito refugiado nas mansões inacessíveis da terra quente de Michoacán ou nos corredores do tráfico de Los Tigres Del Norte. O narcotráfico está cada dia mais presente na vida cotidiana de muitos mexicanos. "E a razão é muito simples e muito complicada ao mesmo tempo", explica o policial, "mas não se apresse, vou explicar".
Sua análise coincide com a de outras fontes consultadas, e, ainda que cheia de matizes, pode ser resumida assim: os narcotraficantes mexicanos têm cada vez mais problemas para transportar a droga pelo México para introduzi-la nos Estados Unidos. Em primeiro lugar, a culpa é do governo de Felipe Calderón, que está transformando a luta contra o crime organizado no eixo de sua legislatura. Empenhou-se em retirar os corruptos da polícia - tarefa nada fácil; estudos dizem que 80% dos policiais são corruptos -, e também colocou o Exército na guerra contra os cartéis. A segunda dificuldade que os narcotraficantes enfrentam - a redução do comércio com o norte - tem, por sua vez, dois motivos: os controles fronteiriços cada vez mais difíceis de driblar e uma queda bastante pronunciada da demanda de cocaína nos Estados Unidos. O resultado de tudo isso é que grandes quantidades de cocaína estão ficando no México. Para abrir mercado, os cartéis estão distribuindo-a a preços tão acessíveis que já são muitos os mexicanos - sobretudo os mais jovens - que estão se viciando. As principais organizações fragmentaram-se em outras menores e já não buscam tanto o mercado externo, mas sim o interno. Mais do que manter abertas as rotas tradicionais de tráfico, o que lhes interessa agora é conseguir o controle dos Estados e das cidades. Bairro por bairro. Praça por praça. Do narcotráfico ao narcovarejo. Para isso, necessitam controlar os políticos locais e manter os grupos rivais na linha. Para o primeiro, precisam de muito dinheiro. Para o segundo, de muito chumbo.
O casal vizinho se levanta, dá boa tarde e se vai. O policial federal - que faz parte de uma equipe de investigação - introduz um pen drive no computador portátil deste repórter.
- Quer ver como atua o narcotráfico aqui em Michoacán? Mas não vá desmaiar...
A primeira coisa que aparece na tela do computador é um título que diz: "La Familia. Informe confidencial". La Familia é o nome do cartel mais poderoso que opera em Michoacán. Depois, uma fotografia. Nela vêem-se as cabeças cortadas de cinco homens jovens, ainda com sangue, espalhadas pelo cenário de um clube de strip tease da cidade de Uruapan. "Quer ver mais ou já é suficiente?"
Sem esperar resposta, o agente vai percorrendo com o cursor todo o informe. Há mais fotos. E uma parte muito extensa dedicada aos 'narcorecados'. Junto a cada acerto de contas, La Familia deixa um cartaz com os motivos de seu assassinato (por delatar, por não respeitar La Familia, por não respeitar os acordos), os nomes, sobrenomes e indicações dos próximos na lista negra (policiais, políticos, jornalistas, assassinos dos cartéis rivais) e com sua assinatura inconfundível: "O ódio não é esquecido. Isso é justiça divina. Atenciosamente. La Familia de Michoacán". Mas há outra parte do informe que impressiona ainda mais que a imagem dos executados. É a que resume o poder do grupo armado. Ele opera em 87 dos 112 municípios do Estado de Michoacán. Controla diretamente os cabarés, as máquinas de caça-níquel, o negócio milionário da pirataria, muitos dos 2.100 pontos de venda de droga que há no Estado, as madeireiras ilegais, a venda de armas... E oferece proteção obrigatória aos donos dos postos de gasolina, aos produtores de abacate, às lojas de alimentos... A tarifa é de 2.500 a 25 mil dólares. Em dinheiro. Não se admite um não.
- Há alguns meses - conta um advogado de Morelia - um espetáculo muito famoso em todo o México veio para a cidade. Desculpe mas não posso dizer o nome. O fato é que, quando estavam montando o espetáculo, uns sujeitos visitaram o empresário e ofereceram proteção. O homem, que não conhecia o cotidiano daqui, disse que muito obrigado, mas não precisavam de proteção, que ele já contava com a polícia e com a Cruz Vermelha em caso de incidentes.
Eles responderam que não era suficiente, que o espetáculo necessitava de proteção. "Mas, de quem?", atreveu-se a perguntar o empresário. "De nós", foi a resposta... O empresário teve de pagar 5 mil dólares. E o espetáculo, é claro, aconteceu sem incidentes.
Sabendo de tudo isso - afinal ele nasceu aqui, onde sua mãe e irmão ainda moram - o presidente Felipe Calderón colocou Michoacán na mira da Polícia Federal e do Exército. Não somente para combater o narcotráfico, mas também - ou principalmente - para tentar evitar a desaparição paulatina do Estado em favor dos cartéis. Foram feitas apreensões importantes de drogas e armas, detenções, e ainda assim o crime organizado foi capaz de seqüestrar em plena luz do dia Maribel Martínez Martínez, secretária da prefeitura de Uruapan - a 45 minutos de carro de Morelia.
Levaram-na quando ela saia de um ato na Casa de Cultura. Um acompanhante e dois policiais foram feridos gravemente. O suposto motivo da ação está em toda imprensa local: "La Familia financiou a campanha eleitoral do presidente municipal, Antonio González. Em troca queriam que a administração de Segurança Pública, a de Obras Públicas, o mercado e o palanque ficassem com homens de sua confiança. González - que pertence ao PAN, o mesmo partido do presidente da República - não cumpriu seus compromissos com a máfia e agora eles estão acertando contas". Maribel Martínez foi seqüestrada há dois meses. Segundo fontes da polícia, ainda está viva.
Assim estavam as coisas quando, às onze da noite de 15 de setembro, duas granadas explodiram em frente ao Palácio de Governo de Morelia. O primeiro atentado narcoterrorista da história do México deixou nove mortos e mais de cem feridos. Mas, além disso, revelou as vergonhas de um país que sangra por todos os poros.
Nos dias seguintes ao atentado, foram se revelando os detalhes que passariam por fantasiosos na história mais disparatada. O governador, Leonel Godoy, sabia que os narcotraficantes haviam ameaçado atentar contra o desfile do dia 16, mas - pelo menos oficialmente - não se preocupou em reforçar a segurança na noite do dia 15. Um grupo de policiais cuja missão era mesclar-se à paisana na multidão para evitar incidentes, não se apresentou na praça. Um dos chefes recebeu um telefonema misterioso e o obedeceu. Imagens de vídeo mostram os policiais de elite alterando a cena do crime e depois lavando as mãos com uma lata de refrigerante. Um bom número de testemunhas assegura que os que jogaram a granada estavam vestidos de uniforme preto - muito parecido com o usado pelo Grupo de Operações Especiais - e que um deles se chamava El Zorro, mas nenhuma das testemunhas é da polícia. Poucas horas depois do crime - e para finalizá-lo com um surrealismo macabro - o cartel La Familia colocou cartazes por toda a cidade de Morelia condenando o atentado, assegurando que não foram eles os responsáveis, e comprometendo-se a "investigar os fatos".
Hoje, entretanto, junto às velas acesas no lugar do atentado, há um cartaz gigante colado no chão que diz "Paz", assinado por La Familia. Ninguém, nem de uniforme, nem à paisana, atreveu-se a retirá-lo.
- Mas, foram eles?
- Talvez. Ou talvez tenham sido Los Zetas [um grupo de assassinos em guerra aberta contra La Familia]. Ou talvez não tenham sido os narcotraficantes...
Os fantasmas andam a solta pelo país que conhece de cor a árvore genealógica de seus narcotraficantes. Duas semanas depois dos atentados, ninguém sabe ao certo quem é responsável ou por que eles aconteceram em Morelia. Há quem diga que foi um aviso para Calderón: somos capazes de cometer atentados a três quadras da casa de sua mãe.
E há quem - citando fontes fidedignas - assegura que o aviso era para Leonel Godoy, governador de Michoacán, em resposta a uma dívida obscura pendente com La Familia. Outros apostam que o aviso foi para o Exército: vejam o que podemos chegar a fazer se vocês continuarem nos pressionando. Porque o Exército - e nisso todos concordam no México - transformou-se na principal bandeira de Calderón em sua luta desigual contra o narcotráfico. Até os mais próximos - ainda que em privado - reconhecem que o presidente da República pecou por ingenuidade ou atrevimento quando anunciou a guerra aberta contra o narcotráfico. "Somos todos contra o tráfico. E sem dúvida limpar o país dos delinqüentes é vital para o nosso futuro. Mas sim, talvez ele devesse ter contado as balas que tinha antes de sacar o revólver", comenta um dirigente do PAN - o partido do presidente -, sem dúvida alarmado com o desgaste.
Todos os dias, nos principais jornais do México, aparece um quadro com dois números. "El Universal" intitula o quadro de "Baixas do narcotráfico". O primeiro número se refere aos mortos do dia anterior. Na quarta-feira passada 25 pessoas foram mortas em execuções ou tiroteios. O segundo número informa o total. No período de um ano, 3.337 pessoas morreram assassinadas no México. Debaixo desses dois números, há uma coluna de texto - com não mais do que 30 linhas - na qual se resume o que aconteceu no dia anterior. O texto publicado pelo El Universal na quarta-feira intitulava-se "Pepenador encontra crânio em Juárez".
O texto dizia: "A espiral de violência em Chihuahua deixou 11 homicídios e um policial municipal seqüestrado nas últimas 24 horas. Em Ciudad Juaréz, um grupo de homens encapuzados matou a tiros Miguel Ángel Ramírez e Efraín Gallardo Ramírez, que viajavam num Cadillac. Em outro caso, Francisco Cevallos Gálvez morreu baleado na frente de sua mulher e filho. E Félix Antonio García Ramírez, de 17 anos, faleceu num hospital, para onde foi levado com ferimentos a bala. No lixão municipal de Ciudad Juárez, um catador encontrou um crânio que ainda tinha pele no rosto. O corpo não foi localizado. Enquanto isso, foram localizados cinco corpos do sexo masculino nas imediações da capital de Chihuahua..." Esse trecho é apenas 30% de uma coluna perdida no meio do jornal. Só quando o crime alcança conotações especiais vai para a primeira página. E, para desgraça dos mexicanos, o mês de setembro foi especialmente negro. Uma caminhonete cheia de homens sem cabeça. 24 jovens abandonados em La Marquesa - parque natural na entrada da Cidade do México - amarrados, torturados e com um tiro de misericórdia. Um motim em Tijuana com um número de mortos e desaparecidos ainda indeterminado...
O crime organizado e desorganizado parecem ter se juntado para transformar o país - e principalmente o Distrito Federal - num lugar pouco recomendável. As estimativas de mais de 3 mil executados se unem às vítimas de seqüestros por resgate. Segundo números oficiais, em um ano foram seqüestradas 650 pessoas, e, entre elas, 130 ainda continuam em poder dos criminosos, ninguém sabe se estão vivas ou mortas, à espera de um acordo pelo preço do resgate. Mas esse número está, com certeza, muito aquém da realidade. Todos sabem que, aqui, denunciar não adianta muito, que 85% dos delitos ficam sem resolução e que procurar a polícia é às vezes mais perigoso do que lançar-se nos braços do criminoso. De fato, alguns bancos - entre eles o Santander - recomendam a seus clientes que, caso sejam parados por uma patrulha, a primeira coisa a fazer é trancar "todas as portas do carro".
O presidente Calderón passou a semana em Nova York. Lá, voltou a pedir a cumplicidade - e os fundos - do vizinho do norte para vencer a batalha contra o narcotráfico.
No país, enquanto isso, os membros de seu governo ligados à segurança têm sido atacados pela oposição, que - à sua maneira - também lhes pedem dinheiro ou chumbo.
Solução ou demissões. Diante da pressão, um dos homens fortes do governo, o secretário Juan Camilo Mouriño, chegou a reconhecer na tribuna da Câmara dos Deputados: "Não podemos garantir a segurança. A polícia foi infiltrada pelo crime organizado. Assim, até que isso não seja solucionado, não poderemos nem garantir a segurança, nem gozar da confiança dos cidadãos".
Enquanto o alto representando do governo pronunciava essa declaração sincera de impotência, onde estavam os mexicanos? Escondidos debaixo da cama? Enclausurados a sete chaves em suas casas? Nada mais longe da realidade. É verdade que a preocupação cresce e que há empresários que estão tentando colocar suas vidas e propriedades fora de perigo, mas a realidade retratada pelos dados e pelos jornais não é toda a realidade.
O México continua sendo um país amável, de trânsito caótico e natureza exuberante; de uma beleza dificilmente igualável; situado numa posição fundamental para o futuro da América e, talvez, a partir de agora, mais consciente do que nunca do perigo que o narcotráfico representa para seu próprio desenvolvimento. Uma corrente, ainda tímida, de indignação começou a percorrer o país. Umas velas acesas na praça de Morelia. Uma manifestação de milhares de pessoas no Distrito Federal. Uma pressão quase unânime dos meios de comunicação para que o presidente Calderón, uma vez abertos os cofres do trono, não caia na tentação de pactuar ou claudicar diante do terror.
O narcotráfico - tão celebrado até agora em romances e baladas de pistoleiros - já não assusta só os seus iguais. O medo foi esparramado, saiu nas ruas, e os mexicanos, colocados em frente ao espelho, começam a temer a própria imagem refletida diante de si mesmos e do resto do mundo. Há uma placa na entrada de Ciudad Juárez - onde este ano foram executadas mais de mil pessoas - que explica muito bem essa preocupação, esse medo que infunde medo:
- Bem vindo a Ciudad Juárez. Não somos como dizem que somos.
Tradução: Eloise De Vylder
Texto do El País, no UOL.
Marcadores: México, tráfico de drogas, violência, violência urbana
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