quinta-feira, julho 31, 2008

Triste Europa

Triste Europa

RICARDO SEITENFUS e DEISY VENTURA


UM ESTADO pode prender e expulsar um menor desacompanhado só porque ele é estrangeiro e não possui os documentos que o próprio Estado não quis lhe conceder? E, na mesma situação, os idosos, as grávidas e os portadores de deficiência? E os que, no país de origem, foram vítimas de tortura, estupro ou outras formas graves de violência?
Pois a nova norma sobre "o regresso de nacionais de terceiros países em situação irregular", recentemente aprovada pelo Parlamento Europeu, não apenas permite que um país o faça como estende uma tenebrosa concepção jurídica da imigração aos Estados-membros da União Européia.
Tanto essa diretiva como as leis de certos países que a inspiraram são incompatíveis com as Constituições nacionais dos Estados-membros. São ilegais em relação ao direito internacional dos direitos humanos, arduamente tecidos após a Segunda Guerra Mundial. E colidem com o próprio direito regional -especialmente a Carta dos Direitos Fundamentais da UE (Nice, 2000) e a Convenção Européia dos Direitos Humanos (Roma, 1950).
De ardilosa redação, a norma, a um só tempo, refere os direitos humanos e institucionaliza sua violação sistemática. Uma alínea assegura um direito, enquanto outra mais adiante o condiciona ou lhe rouba o sentido.
Sob o pretexto de organizar a expulsão, batizada de "afastamento", o estrangeiro pode ser detido por até 18 meses. As condições de detenção e expulsão são inaceitáveis: em princípio, há espaços isolados denominados "centros de retenção" (os que já existem lembram campos de concentração). Porém, havendo um número "excepcionalmente elevado" de estrangeiros, estes podem ser mesclados aos presos comuns, e as famílias podem ser separadas.
Acompanha a expulsão uma "interdição de entrada" em todo o território coberto pela diretiva, que pode durar cinco anos ou até se prolongar indefinidamente. Num processo apto a resultar em tão graves conseqüências, o Estado pode considerar desnecessária a tradução dos documentos, desde que "se possa razoavelmente supor" que o estrangeiro os compreenda.
Ademais, as informações sobre as razões de fato da expulsão podem ser limitadas, para salvaguardar, entre outros, a segurança nacional.
Infelizmente, a comunidade internacional não exagerou ao apelidá-la de "Diretiva da Vergonha". Ela constitui uma derrota mais grave do que o fracasso da Constituição Européia ou do Tratado de Lisboa, recentemente recusados por referendos populares.
Concluída a fusão dos mercados, em vez de rumar para a integração política e consolidar seu protagonismo na cena mundial, a Europa faz da integração um utensílio da exclusão. Claro está que Bruxelas não pode evitar a deriva à direita de certos Estados, mas tampouco necessita servir à regionalização da xenofobia.
Por outro lado, a diretiva complica ainda mais as já difíceis negociações inter-regionais com o Mercado Comum do Sul, Mercosul, cujos chefes de Estado se uniram para emitir um veemente protesto na recente Cúpula de Tucumán (Argentina).
Com efeito, além da ilegalidade, aqui há ingratidão. Os fluxos migratórios oriundos da Europa se espalharam por todos os continentes. Mais do que ninguém, os europeus sabem que não há emigração em massa sem fortes motivações, essencialmente de natureza socioeconômica.
Ora, as mazelas da imigração só podem ser resolvidas com a integração dos estrangeiros às sociedades, associada a uma enfática cooperação internacional, a fim de extrair da miséria e da desesperança a larga franja demográfica em que nascerá o futuro ser humano a expulsar.
Estima-se que possam ser expulsos da Europa 8 milhões de estrangeiros considerados em situação irregular, embora, em sua ampla maioria, não tenham praticado nenhum crime, trabalhem e recolham impostos.
Somando-se essa possibilidade à fresca barbárie do governo republicano dos EUA, o mundo desenvolvido desgasta aguda e paulatinamente sua autoridade moral para cobrar valores humanistas de outros governos.
Paradoxos da globalização: jamais a humanidade dispôs de tantas facilidades para se mover, mas nunca antes ela foi tão fortemente cerceada em sua liberdade.
A Europa crava tristes trópicos em si mesma. Estamos, ainda, distantes do fim do território nacional e do Estado como inospitaleiras construções do homem contra si mesmo. Razão a mais para acreditar que cabe ao Sul, e particularmente ao plural Brasil, a invenção de novos modelos, talvez menos opulentos, mas seguramente mais solidários, de convívio respeitoso entre os homens.


RICARDO SEITENFUS , 60, doutor em relações internacionais pela Universidade de Genebra (Suíça), é membro da Comissão Jurídica Interamericana da OEA (Organização dos Estados Americanos.
DEISY VENTURA , 40, doutora em direito internacional pela Universidade de Paris - Sorbonne (França), é professora do Instituto de Relações Internacionais da USP.

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