quarta-feira, novembro 03, 2010

Lula venceu

Lula venceu


ALGUNS FATOS devem ser analisados em sua enunciação bruta, sem "mas", "entretanto", "mesmo assim" ou condicionantes do gênero.
O resultado destas eleições é um destes casos. Lula venceu. Como se não bastasse, transformou-se no primeiro presidente da história brasileira a conseguir fazer seu sucessor em uma eleição realmente livre.
O nível de acirramento social, infelizmente, dificulta reflexões isentas sobre o que foi a era Lula, quais seus maiores legados e desafios. Esta é uma tarefa para a qual será necessário tempo.
Por enquanto, fica óbvio que ao menos duas características fundamentais do governo Lula foram decisivas para seu sucesso eleitoral.
Primeiro, Lula compreendeu claramente que programas de assistência social não são apenas programas de assistência social. Vinculado ao aumento efetivo dos salários, eles têm função decisiva na dinamização econômica de realidades sociais pauperizadas. Tal processo baseado na transferência direta de renda é, de fato, a maneira mais rápida e eficaz de provocar recuo da miséria e da pobreza, além de garantir bases para o desenvolvimento de economias locais. Por outro lado, ele permitiu a Lula ser uma espécie de Mata Hari do capitalismo global, modificando a situação de pauperização social sem colocar em risco os ganhos do sistema financeiro.
Segundo, Lula conseguiu, de uma certa forma, transplantar os conflitos sociais para dentro do Estado. O conflito entre o agronegócio e a reforma agrária virou um embate entre o Ministério da Agricultura e o Ministério da Reforma Agrária. O conflito entre os grupos de defesa dos direitos humanos e as viúvas da ditadura militar, um embate entre o Ministério da Defesa e a Secretaria dos Direitos Humanos; entre desenvolvimentistas e monetaristas, um embate entre Ministério da Fazenda e Banco Central.
O máximo desta lógica de transposição de conflitos ocorreu quando George W. Bush veio ao Brasil. Enquanto fazia um discurso, ao lado de Lula, saudando-o como grande amigo dos EUA, manifestações contra sua presença ocorriam no Brasil... organizadas pelo PT.
Desta forma, havia um reconhecimento das demandas de setores classicamente associados à esquerda, mesmo que esse reconhecimento fosse, em vários casos, muito mais simbólico do que realmente efetivo.
Essa forma de acolhimento conseguiu, no entanto, esvaziar qualquer oposição à esquerda do governo. Basta lembrar do resultado minúsculo de um partido como o PSOL no primeiro turno.
Assim, quando José Serra encampou de vez a agenda conservadora, toda ela centrada em: segurança, defesa dos "valores e crenças nacionais", defesa da "vida", denúncias contra a "república sindicalista", contra o terrorismo (das Farcs) etc., ficou fácil para o governo recompor a base de mobilização do antigo PT nas classes médias, acrescida agora do desenvolvimento do "lulismo" nas classes mais pobres.
Restou, ao menos a essa oposição, ser porta voz de uma agenda conservadora mundialmente presente e que demonstrou ter forte apelo eleitoral. Uma reconfiguração de discursos se anuncia.

Texto de Vladimir Safatle, na Folha de São Paulo, de 1º de novembro de 2010.


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