quarta-feira, novembro 03, 2010

Arqueologia vira arma política em Israel

Arqueologia vira arma política em Israel

Descobertas questionáveis de relíquias são usadas por nacionalistas para reforçar ocupação de áreas palestinas

Da mesma forma, palestinos negam que tenha havido templos antigos do judaísmo na cidade de Jerusalém

MARCELO NINIO
DE JERUSALÉM

Com o Velho Testamento numa mão e a réplica de um antigo selo hebreu na outra, o jovem guia israelense incendeia a imaginação do grupo de turistas em Jerusalém.
"Aqui, estão as ruínas do palácio de Davi. Aqui, os profetas Jeremias e Isaías disseram suas palavras eternas", diz ele, diante das escavações na Cidade de Davi, parque multimídia que atrai 400 mil visitantes por ano.
Situado no bairro árabe de Siluan, um dos pontos mais sensíveis do conflito palestino-israelense, o parque também se transformou em foco de intensa polêmica no mundo da arqueologia.
Para muitos estudiosos do assunto em Israel, há abuso político da arqueologia no local para justificar o direito histórico dos judeus sobre a terra e o desalojamento de residentes palestinos.
No centro da polêmica está uma organização privada chamada Elad, também conhecida como Fundação Cidade de Davi, que controla as escavações em Siluan.
Criada por David Beeri, ex-comandante de uma unidade militar de elite, a Elad tem o objetivo declarado de aumentar a presença de judeus em Siluan.
Para isso, conta com doações de judeus milionários do exterior e as bênçãos do governo israelense e da prefeitura de Jerusalém.
O bairro fica na área de Jerusalém ocupada por Israel em 1967 e que os palestinos veem como parte de sua futura capital.
Aumentando a sensibilidade, a poucos passos dali está o ponto nevrálgico da disputa religiosa: Monte do Templo para os judeus, onde teriam sido erguidos e destruídos os dois templos sagrados, Esplanada das Mesquitas para os muçulmanos, onde o profeta Maomé teria subido aos céus.

NACIONALISMO
Com ordens judiciais ou comprando propriedades por meio de terceiros, a organização Elad instalou cerca de 500 colonos, cercados de forte segurança, no meio da população de 45 mil palestinos de Siluan, criando um foco de tensão permanente.
A arqueologia reforça o argumento dos colonos. Para eles, a "Bacia Sagrada", como também é conhecido o vale de Siluan, faz parte inseparável da história judaica.
Foi dali, afirmam, que o rei Davi unificou as tribos e converteu Israel num império, três milênios atrás.
Doron Spielman, porta-voz da Elad, não esconde a ligação entre arqueologia e nacionalismo. Ele explica que soldados israelenses são levados à Cidade de Davi para entender que a fundação de Israel representa a volta do povo judeu a sua origem.
Nos últimos anos, arqueólogos identificados com a direita exibiram descobertas que comprovariam as histórias da Bíblia, principalmente da época de Davi.
O caso mais proeminente é o de Eilat Mazar, da Universidade de Jerusalém. Em 2005, ela anunciou ter achado uma parede do palácio de Davi.
Neste ano, voltou ao noticiário ao encontrar resquícios de uma construção que diz ter sido obra do rei Salomão, no século 10 A.C.
Tais achados são questionados pela maioria dos arqueólogos de Israel, muitos deles frustrados com a inclusão da disciplina na agenda da direita nacionalista.

RELÍQUIAS NO ENTULHO
"Que deixem Abraão, Davi, e Salomão descansar em paz", diz Yoni Mizrahi, diretor do grupo Emek Shaveh, que prega a separação entre arqueologia e política. "A arqueologia não pode ser usada para provar posse".
A disputa pelo passado se estende ao outro lado do conflito. A liderança palestina nega que um dia existiram os templos sagrados do judaísmo em Jerusalém.
Em 1997, o fundo islâmico Waqf, que administra a Esplanada das Mesquitas, causou revolta em Israel ao retirar toneladas de terra do local numa escavação secreta. Mais tarde, foram achadas relíquias arqueológicas no entulho.
"Há absurdos de ambos os lados. Não há santos em Jerusalém", diz Israel Finkelstein, um dos mais respeitados arqueólogos israelenses. "Pelo bem da ciência, é preciso tirar a arqueologia do campo minado da política."

Notícia da Folha de São Paulo, de 1º de novembro de 2010.


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