quarta-feira, novembro 03, 2010

Os antigos papéis sexuais em um "novo" mundo

Em um novo mundo, os dois sexos desempenham os mesmos antigos papéis


Luisita Lopez Torregrosa

Em Nova York (Estados Unidos)


Esse tem sido o filme do momento desde que foi lançado no início deste mês, com sucesso nas bilheterias, expectativas quanto a um Oscar e dezenas de artigos e blogs que o dissecaram e elogiaram. Não há dúvida de que “The Social Network” (“A Rede Social”, Estados Unidos, 2010) – a história do Facebook e do seu cofundador, Mark Zuckerberg – é uma narrativa do milênio, um marco cultural, de ritmo rápido e fascinante, um drama explosivo sobre a nova geração da tecnologia.


Muito tem se questionado se a história narrada no filme respeitou a realidade na forma como retratou Zuckerberg, que atualmente, aos 26 anos de idade, é o mais jovem bilionário do mundo. O jovem Zuckerberg é retratado como sendo socialmente agressivo e egomaníaco, distante e evasivo. Teria ele roubado a ideia do Facebook, traído amigos e enganado sócios?


Talvez. Ele não admite nada disso, mas está pagando milhões de dólares em indenizações e multas para fazer com que o problema desapareça. Sem sucesso.


É claro que Zuckerberg não gosta nem um pouco da forma como é retratado no filme, mas aquela personalidade antipática aparentemente reflete de fato o Zuckerberg da vida real.


Aos 19 anos de idade Zuckerberg era um calouro arrogante, mas inseguro, da Universidade Harvard, quando jurou que se vingaria de uma namorada que terminou com ele e – pelo menos no filme – dos clubes sociais que o esnobaram.


Ele criou o Facebook com o seu companheiro de quarto na universidade, no seu computador, em fevereiro de 2004. Tudo começou como uma brincadeira, uma lista virtual de fotografias que classificava as alunas do campus pela beleza, com comentários progressivamente cruéis. A ideia foi recebida com entusiasmo e se espalhou rapidamente.


Zuckerberg teve um sucesso muito maior do que sequer poderia ter sonhado e deu continuidade à ideia, criando uma rede de mídia social que atualmente conta com 500 milhões de membros em todo o mundo.


O filme expõe as falhas de caráter de Zuckerberg, que emergem durante os seus dias de insônia quando ele era um hacker maníaco, e em encontros sociais e sexuais esquisitos.


Mas, talvez de uma forma mais penetrante, “The Social Network” expõe uma espécie de sexismo que é disseminada e profunda entre jovens empresários nerds e gênios geeks – os futuros construtores do império tecnológico da cultura da Web 2.0, todos homens que desejam ser os donos do universo.


E onde estão as mulheres na criação de um dos mais bem sucedidos websites do novo século?


No filme, pelo menos, as mulheres são peças decorativas nos bastidores, uma face que se funde à outra, corpos esguios idênticos.


É verdade que há muitas mulheres no filme – em sua maioria asiáticas (supostamente devido à concepção tão comum de que as asiáticas são boas em matemática). Elas são a versão no mundo da Web das groupies (tietes), toadies (bajuladoras), trophies (mulheres troféus), gold diggers (literalmente, “cavadoras de ouro”, mulheres que entram em relações amorosas em busca de dinheiro) e floozies (jovens mulheres sexualmente promíscuas).


Elas são sexy, sedutoras, oferecidas e ansiosas para servir os garotos, não sendo muito diferentes daquelas mulheres de cintura justa em “Mad Men”, a série norte-americana de TV a cabo sobre homens dominantes que controlam a indústria de publicidade e propaganda da Avenida Madison no auge dos anos sessenta.


É como se não se tivesse passado tempo algum em mais de meio século – as modas mudaram, mas a igualdade das mulheres ainda não passa de uma ilusão – talvez mais agora do que naquela época.


Mas, em ambos os mundos – o da década de sessenta e o da primeira década deste século – os homens é que são os lutadores, produtores, criadores, inovadores, empreendedores e, no fim das contas, bilionários.


Poucos críticos de cinema mencionaram o sexismo ostensivo que é revelado no filme – ou seja, um sexismo que aparentemente corria solto entre os jovens alunos da Universidade Harvard de alto nível de escolaridade, brilhantes e mal educados, criados na era do feminismo moderno (o Zuckerberg da vida real, filho único de uma mãe psiquiatra e de um pai dentista, nasceu e foi criado, juntamente com as três irmãs, no afluente condado de Westchester, na região suburbana de Nova York).


Mas não eram apenas Zuckerberg, com o seu pedigree da Academia Phillips Exeter, e o seu grupo de amigos geeks que tratavam as mulheres como objetos descartáveis para se usar durante uma única noite. Os rapazes que pertencem aos clubes mais graduados da Universidade Harvard – sociedades que estão mais para fraternidades meio secretas – participavam de noitadas agitadas, quando garotas das escolas próximas eram levadas para Cambridge para participarem de festas movidas a álcool, drogas e sexo.


Isso traz à tona a pergunta óbvia: o que há de errado com essas mulheres? Exceto pela garota que terminou o namoro com Zuckerberg na memorável cena de abertura do filme porque, entre outras coisas, ele era um “jerk” (gíria em inglês para designar um indivíduo imbecil, estúpido ou rude) – ela na verdade usa uma palavra mais forte –, todas as jovens mostradas no filme não passam de vadias manipuladoras de cabeça oca, fúteis e cheiradoras de cocaína.


O roteirista do filme, Aaron Sorkin (“The West Wing”), pode ter uma resposta para isso.


Sorkin diz ter ficado chocado com a intensidade do sexismo que descobriu ao fazer pesquisas para o seu roteiro e ler o livro no qual o filme se baseia, “The Accidental Billionaires” (“Os Bilionários Acidentais”), de Ben Mezrich.


“Não é difícil entender como mulheres brilhantes podem ficar horrorizadas com o que veem no filme, mas é preciso entender que eu escrevi a respeito de um universo bastante específico”, disse Sorkin em um recente comentário em um blog do escritor Ken Levine.


“O Facebook nasceu durante uma noite de incrível misoginia”, explicou Sorkin. “A ideia de comparar as mulheres a animais de fazenda, e a seguir compará-las entre si, de acordo com a aparência, e finalmente classificá-las publicamente em uma determinada ordem...”.


“Eu escrevi sobre um grupo de pessoas cheias de raiva e profundamente misóginas”, continuou Sorkin. “Não estamos falando daqueles nerds amáveis sobre os quais nós fizemos filmes na década de oitenta. Estes jovens ainda têm muita raiva pelo fato de a cheerleader ainda desejar sair com o jogador de futebol americano, em vez de com os homens (na verdade, garotos) que estão agora comandando o universo. As mulheres das quais eles se cercaram não são mulheres que os desafiam (e, francamente, nenhuma mulher que pudesse desafiá-los teria interesse algum de estar perto desses garotos)”.


A história de Zuckerberg e do Facebook encaixa-se neste novo mundo de hackers, algoritmos e gênios geeks. Não faz muito tempo que uma editora de um jornal da Web, uma mulher de meia idade, me disse que quando olha para as editorias digitais vê muitas produtoras e editoras do sexo feminino. No entanto, o que chama a sua atenção é o fato de os indivíduos que fazem projetos para a Web, os cérebros criativos, os inovadores, aqueles que têm uma chance de alcançar a glória, serem todos homens jovens.


“The Social Network”, não é simplesmente um filme. Não é um documentário. E tampouco uma biografia. Poderíamos parar por aqui, mas a dura verdade é que, ficção ou não, ele reflete com uma precisão assustadora uma realidade cultural.




Texto do International Herald Tribune, republicado no UOL.

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