segunda-feira, julho 26, 2010

O clube dos países atômicos

Em política internacional, se uma ação parece imprudente ou insensível e os responsáveis por ela não são malucos de carteirinha, em geral é porque foi feita para parecer assim, de propósito. Para mandar um recado.

Veja-se por exemplo o ataque de Israel em águas internacionais contra uma frota de barcos civis, que resultou na morte de nove passageiros turcos. Havia muitas maneiras que não implicavam o uso de violência para impedir que ela chegasse a um porto de Gaza; ou então, se os israelenses não se importavam em matar um ou dois passageiros para mandar um aviso de primeiro nível todos os candidatos a amigos humanitários de Gaza, poderiam ter esperado até que a frota tivesse efetivamente violado o bloqueio e atingido águas territoriais, onde se poderia dizer que Israel o direito de patrulhar e controlar, tornando qualquer possível dano que se abatesse sobre o responsabilidade dos que tentavam furar o bloqueio, e dando às ações de Israel pelo menos uma aparência de legalidade. Mas não, preferiram fazê-lo em águas internacionais, de um modo que garantisse a erupção de violência. E mataram nove civis desarmados no processo.

Pode-se dizer qualquer coisa sobre os militares israelenses, exceto que são incompetentes - e com certeza não são malucos. De modo que todas as desculpas esfarrapadas dadas depois sobre a “reação inesperada" das vítimas e o inquérito unilateral obviamente tendencioso sobre o incidente fazem parte do espetáculo: Israel não cometeu um "erro" ao decidir atacar a frota como o fez, nem os que executaram o ataque foram incompetentes. O recado foi bem claro: faremos o que for preciso para evitar o furo do bloqueio a Gaza, e não nos importamos com o que o resto do mundo pensa. Tão claro que, apesar das manifestações de indignação internacional sobre a morte de nove civis em águas internacionais, e apesar de toda a barulheira sobre o envio de "centenas" de novas frotas, até agora nada foi feito para responsabilizar Israel pelas suas ações, e os moradores de Gaza continuam abandonados à própria sorte, sendo coletivamente punidos por terem votado errado há quatro anos.

Acessoriamente, outro recado foi mandado: os israelenses são cães raivosos, vejam o que eles fizeram e pensem no que podem fazer se não forem apaziguados. Que esse “apaziguamento", sob a forma de sanções contra o Irã, tenha servido outros propósitos é apenas parte do jogo: nós arranjamos uma desculpa para vocês, vocês cobrem as nossas costas, e nós dois falamos sobre outra coisa enquanto fazemos o que temos de fazer. Mais do que nunca, o que se faz não importa, o importante é que se é visto fazendo - e "ver" está aberto a manipulações de todo tipo.

A invasão do Iraque em 2003 é outro exemplo, em uma escala maior. Depois de criado o precedente do Afeganistão e montada a base de propaganda pró-guerra sobre uma base de provas frágeis e – como foi revelado depois – francamente falsas, mesmo diante das maiores manifestações de massa em todo o mundo na história recente, o plano de guerra foi executado até a invasão e a ocupação de um país soberano, resultando na destruição quase completa da infra-estrutura econômica do Iraque e em incontáveis milhares de mortes de civis. Novamente, o recado foi claro: não ligamos a mínima para o que o mundo pensa, nem para as leis internacionais: vamos travar guerras preventivas de agressão contra qualquer país, no momento em que bem entendermos, por qualquer razão que julguemos adequada.

Quem disse que Israel limitou-se a empregar os meios à sua disposição impedir que artigos potencialmente perigosos chegassem às mãos dos "terroristas" de Gaza tinham razão afinal de contas, e nós estávamos errados, como de costume: a perigosíssima idéia de que cidadãos comuns possam passar por cima dos governos e tomar a questão de Gaza nas suas próprias mãos para acabar com o bloqueio precisava ser extirpada por qualquer meio, mandando um recado que matasse no berço quaisquer outras iniciativas semelhantes no futuro – o que estava em jogo era a segurança dos que controlam Israel e o uso do seu poderio militar. E aqueles que contrapunham as necessidades de "segurança mundial" às acusações de "roubo de petróleo" como a força motriz que conduziu à invasão do Iraque também estavam certos, e nós, outra vez errados: a guerra contra o Iraque não aconteceu por causa de petróleo (apesar de que ter o controle direto da terceira maior reserva de petróleo do mundo é um efeito colateral não desprezível): tratava-se de mandar um recado, e criar um precedente: temos o direito de decidir quem pode fazer o que, e vamos fazer cumprir este direito por qualquer meio, inclusive com guerras de agressão e matanças de civis. E, mediante manipulações, chantagens e ameaças, vamos fazer isto com o pleno apoio das instituições internacionais criadas justamente para nos impedir de o fazer.

Em um momento em que a emergência de novas potências mundiais começa a desafiar os proprietários deste mundo em todas as frentes, era urgente impor um limite: podemos aprender a conviver com a concorrência comercial e até mesmo incentivá-la dentro de certos limites para nos tornarmos mais competitivos, mas não vamos entregar o controle total que temos sobre os destinos do mundo. Continuaremos a tomar as decisões finais, e vocês vão continuar a cumpri-las. Podem fazer o que quiserem com os seus próprios vizinhos, contanto que nós possamos continuar fazendo o que quisermos com vocês - e, através de vocês, também com os seus seus vizinhos.

Há uma guerra acontecendo, e as potências nucleares vêm se preparando para ela, e tomando posições estratégicas, desde antes mesmo que os seus adversários percebessem que havia uma disputa. O Irã é o atual campo de batalha desta guerra, o lugar onde eles vão dar mais um passo para garantir o seu poder. É por isso que a Turquia e o Brasil não poderiam ser autorizados a negociar uma saída para o impasse nuclear iraniano, é por isso que a Declaração de Teerã tinha de ser ignorada e uma nova rodada de sanções precisava ser imposta ao Irã: a única solução aceitável para eles é que os iranianos renunciem ao direito de desenvolver a sua própria tecnologia nuclear para fins civis, independentemente de esse direito estar consagrado nas leis internacionais e em tratados internacionais em vigor. E essa "solução" tem de ser alcançado pelos seus próprios esforços e meios, e não pela intervenção de novatos intrometidos como o Brasil ou a Turquia. Esses países têm de ser mantidos no seu lugar como parte do problema e nem por um momento devem achar que podem ser parte da solução.

A meta atual das potências nucleares, que a vêm perseguindo com diligência nas duas últimas décadas, passo a passo, é fazer com que o desenvolvimento do ciclo completo da tecnologia nuclear para fins civis seja um monopólio de quem já o domina, os "estados nucleares" do Tratado de Não Proliferação. Os meios para esse fim são o Protocolo Adicional do TNP, tornando as inspeções intrusivas da AIEA obrigatórias para todos os países (exceto os estados nucleares, é claro), e a proibição de transferências internacionais de tecnologia nuclear, mediante novas regras sobre o comércio nuclear impostas pelo Grupo de Fornecedores Nucleares (GFN). Depois de estabelecido o precedente iraniano, fixando o “direito” das potências nucleares a forçar um país a renunciar aos seus direitos, eles vão resolver os "problemas" restantes: Brasil, Turquia, Argentina, Coreia do Sul, Paquistão, África do Sul e, em última instância, a Índia, já objeto de pesadas pressões americanas nas negociações do NSG, apesar de ter firmado em 2008 um acordo de cooperação nuclear com os Estados Unidos.

A justificação das potências nucleares para a tentativa de torpedear o Tratado de Não Proliferação é que este conteria “lacunas” que permitiriam que os seus signatários desenvolvam programas nucleares paralelos, clandestinos, para a confecção de armas atômicas. Esta alegação, porém, não resiste à análise: nenhum signatário do TNP jamais desenvolveu armas atômicas. A Coreia do Norte retirou-se do Tratado e expulsou os inspetores da ONU do país antes de desenvolver os seus fogos de artifício nucleares, e os únicos países possuidores de um arsenal nuclear além dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança são a Índia, o Paquistão e Israel, nenhum deles signatário do TNP, e todos aliados dos EUA. E, pelo menos no caso de Israel, esse arsenal atômico foi desenvolvido com o apoio ativo dos Estados Unidos, enquanto a Índia e o Paquistão beneficiaram-se do silêncio cúmplice das potências nucleares enquanto desenvolviam os seus brinquedos atômicos. Essa tentativa, feita pelos maiores responsáveis pela proliferação de armas atômicas e baseada em premissas falsas e portanto com objetivos não revelados (mas óbvios), precisa ser combatida com determinação pelos países para os quais o fim do TNP e a imposição de restrições ao desenvolvimento independente de tecnologia nuclear serão mais prejudiciais: Turquia, Egito, Coreia do Sul e Indonésia, entre outros. E, mais ainda que estes, o Brasil, por ter atingido, ao contrário do Irã, um estágio de domínio da tecnologia nuclear em que o desenvolvimento de armas atômicas é uma possibilidade concreta, não uma acusação infundada e desonesta.

Apesar de ser um dos principais interessados em combater essa tentativa, enquanto a Turquia assume uma posição firme no NSG contra mais restrições sobre o comércio internacional de tecnologia nuclear e continua forte e publicamente envolvida nas negociações do programa nuclear iraniano, o Brasil queima o capital político adquirido e, cedendo a pressões não declaradas de partes não esclarecidas, fica em casa lambendo os dedos queimados e em geral promete comportar-se direitinho de agora em diante. Porém, como mostra claramente o exemplo iraniano, "comportar-se" não é uma garantia de ser deixado em paz, e os brasileiros podem ter a certeza de que serão os próximos na fila para este tipo especial de imposição de “conformidade” se abandonarem o campo de batalha agora e permitirem que a violação dos direitos do Irã seja levada a termo.

Como já foi dito inúmeras vezes, a defesa dos direitos iranianos à tecnologia nuclear pacífica não é um capricho do presidente, nem uma tentativa da diplomacia brasileira de “projetar” o país no cenário internacional, ela é antes de mais nada uma defesa dos nossos próprios direitos a um desenvolvimento independente e, neste sentido, é vital para a nossa política externa. Abandoná-la agora atenta contra o interesse nacional, compromete o nosso futuro como nação desenvolvida plenamente autônoma e põe a perder a nossa reputação internacional de seriedade e honestidade. Se estamos sendo pressionados para sair de cena, o governo tem a obrigação de esclarecer quem o faz, e como o faz, para manter a nossa tradição de transparência nas relações internacionais e para que os cidadãos brasileiros possam decidir com conhecimento de causa se querem ceder a elas.


Texto de Tomás Rosa Bueno, disponível no blog do Luís Nassif.

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