quinta-feira, março 04, 2010

A morte corajosa de Zapata

A morte corajosa de Zapata



Mauricio Vicent

Em Havana



O governo dos Castro desacredita o dissidente morto, chamando-o de "preso comum". Seus companheiros de luta lembram sua humildade e destacam sua coragem



Antes de se transformar em mártir e símbolo da dissidência cubana, Orlando Zapata Tamayo era um opositor desconhecido, calado e com pouco peso específico. Nunca se destacou nem teve laivos de protagonista. Talvez por isso, em 20 de março de 2003, quando foi detido em Havana junto com Marta Beatriz Roque e outros quatro dissidentes, o governo o excluiu do grupo dos 75 que julgaria depois por "conspirar" com os EUA.



Enquanto estes foram condenados imediatamente a penas de até 28 anos de prisão, Zapata, um humilde pedreiro negro que tinha então 35 anos, ficou fora do castigo.



Seu julgamento não foi sumaríssimo. Realizou-se meses depois, e ele foi sancionado a três anos de privação de liberdade por desobediência e desacato. Orlando Zapata nunca chegou a ser o nº 76 daquele grupo seleto de dissidentes, mas afinal se transformou no primeiro da lista devido a uma greve de fome de 85 dias que o deixou no caminho e que mobilizou como nunca antes o movimento de oposição cubano.



Ativistas da velha guarda como Óscar Espinosa Chepe, um dos 75 condenados naquela primavera de 2003, afirma que sua morte provocou uma "comoção sem precedentes" nas fileiras da dissidência. "Nos últimos 50 anos não acontecia nada parecido", afirma esse economista de 70 anos, condenado a 20 de prisão naqueles processos e depois libertado com uma "licença extrapenal" por motivos de saúde.



"Era um homem muito humilde, não queria falar nem aparecer nas fotos. Foi o regime que o transformou em líder e mártir com sua intolerância", diz Chepe.



No seu entender, a morte de Orlando Zapata marca "um antes e um depois" em seu país, "e não só para a dissidência, mas também para o governo". De maneira semelhante pensam todos os opositores consultados para esta reportagem, de todas as tendências (muitas vezes discordantes): o critério geral hoje é que o "caso Zapata" fomentou a união e serviu de estímulo para o movimento de oposição, enquanto para o governo, em termos de imagem, o resultado é demolidor.



Nos últimos dias, meia dúzia de presos políticos e um jornalista dissidente declararam greve de fome na ilha, além de vários outros em jejum, para protestar pela morte de Orlando Zapata. Também exigem a libertação de todos os prisioneiros políticos, que segundo dados da Comissão de Direitos Humanos e Reconciliação Nacional (CDHRN) são cerca de 200, 65 deles adotados pela Anistia Internacional como prisioneiros de consciência.



Orlando Zapata Tamayo era um desses presos de consciência. Mas a história de como esse jovem pedreiro de uma pequena localidade do leste cubano chegou a se transformar no mártir da dissidência é longa e obscura. Zapata foi o segundo filho de uma família humilde de Banes, uma cidade de 35 mil habitantes situada a 830 km a leste de Havana. Dali era originário Fulgencio Batista, contra quem se levantaram em armas Fidel e Raúl Castro, que nasceram a poucos quilômetros do lugar, no povoado de Birán.



Zapata nunca se destacou nem teve carisma, é claro. Seus companheiros de dissidência lembram dele como alguém "muito simples" e "de poucas palavras", mas "corajoso". "Não tinha medo", afirma Marta Beatriz Roque, a dissidente do grupo dos 75 que foi presa junto com ele em 20 de março de 2003. "Naquele dia, quando a polícia chegou e nos deteve, o agrediram: a cada golpe ele gritava 'Vivam os direitos humanos!'." Marta Beatriz (condenada a 20 anos de prisão, em liberdade por motivos de saúde) admite que então quase ninguém o conhecia e que até pouco tempo atrás poucos se preocupavam com sua situação, "embora agora todo mundo fale dele e lhe queira muito bem".



É claro que Orlando Zapata não foi um dissidente midiático e, além disso, havia chegado relativamente tarde à oposição. Nos anos 1990 emigrou de Banes para a capital cubana e tentou ganhar a vida como pôde, basicamente trabalhando de operário e pedreiro. Roque conta que teve muitos problemas... "Pagavam-lhe pouco, o tratavam mal, sentia-se enganado e dizia que constantemente violavam seus direitos... Foi assim que, aos poucos, entrou em contato com o movimento de direitos humanos."



Inicialmente ligou-se ao grupo de Oscar Elías Biscet, líder da Fundação Lawton, também apoiou nas ruas a iniciativa do Projeto Varela, de Oswaldo Payá, e militou no Movimento Alternativo Republicano, um pequeno grupo de oposição. Mas sua trajetória como ativista foi curta.



A polícia a interrompeu em dezembro de 2002, quando se dedicava a atividades de oposição junto a Biscet. Foi acusado de "alteração da ordem" e "desordens públicas", mas, em 9 de março de 2003, saiu em liberdade condicional. Poucos dias depois aderiu a um jejum em demanda da liberdade de Biscet, organizado por Roque, o opositor Nelson Molinet - outro preso do grupo dos 75, condenado a 20 anos - e outros três dissidentes.



Daqui em diante sua história é conhecida. Descartado como dissidente de primeira divisão, os tribunais o condenaram a uma sanção menor fora do grupo dos 75: três anos de privação de liberdade. "Mas Orlando era dos corajosos, dos que não se dobram nem toleram as injustiças", lembra Oswaldo Payá. "Na prisão o maltrataram brutalmente, mas ele sempre se rebelou", afirma o dissidente, explicando que só assim, "pela sanha dos carcereiros", conseguiu acumular 36 anos de condenações em julgamentos realizados dentro da própria prisão.



Elizardo Sánchez, presidente da CDHRN, considera que "a intolerância do regime totalitário" e a "crueldade" de seus agressores foi o que transformou Orlando Zapata em um símbolo da dissidência e um "mártir da nação cubana". "A responsabilidade é só deles, e agora vão tratar de desprestigiá-lo, mas sua morte vai representar um ponto de inflexão."



Sánchez lembra que Zapata iniciou a greve de fome só para exigir um tratamento humanitário. Mas agora, ele diz, seu símbolo vai "radicalizar o discurso e as ações" do movimento de oposição, e esta "indignação" vai se traduzir em uma maior "unidade". "Já estamos vendo mobilizados junto aos grupos da dissidência tradicional com as Damas de Branco e os blogueiros e ciberdissidentes", afirma.



No sábado, cinco dias depois da morte de Zapata, a imprensa cubana mencionou pela primeira vez seu caso, e efetivamente o fez para desacreditá-lo. Segundo o jornal oficial "Granma", "apesar de todas as maquiagens" Zapata era um simples "preso comum".



O jornal comunista diz que foi "processado pelos delitos de violação de domicílio (1993), lesões menos graves (2000), estelionato (2000), lesões e posse de arma branca (2000: feridas e fratura de crânio ao cidadão Leonardo Simón, com uso de um machado)". O jornal também afirma que "adotou o perfil político quando sua biografia penal já era extensa" e ratifica a posição oficial: todos os opositores são "mercenários" a serviço de Washington.



Dissidentes de todas as linhas, novamente unidos, criticaram o governo pela "canalhice" desses argumentos. A maioria concorda que, se Zapata teve antecedentes, também os tiveram muitos próceres cubanos, e isso não tira seus méritos. Ativistas da linha-dura e social-democratas como Manuel Cuesta Morúa consideram que "o importante é que esteve disposto a dar a vida pacificamente para demonstrar a soberba do governo". Cuesta Morúa afirma que "curiosamente, o governo o subestimou por ser negro, humilde e não pertencer a nenhum partido opositor conhecido"; e agora aquele "a quem deixou morrer", o preso que nunca foi dos 75, "se transformou no símbolo de uma sociedade que vive em um minuto de desespero histórico e que merece a atenção do mundo".



Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves



Notícia do El País, reproduzida no UOL.

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