A desordem das coisas
A desordem das coisas
A DISPUTA verbal de Lula e Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal, é uma confrontação de personalidades que se consideram cada qual detentora de poder maior que o da outra, na ordem institucional. Lula é o do "quem decide sou eu e mais ninguém". Gilmar Mendes é o do "eu sou o presidente de um dos Poderes", aquele Poder que julga e pode anular decisões dos outros dois. Mas a disputa reflete, sobretudo, a desordem em que anda a ordem, a ponto de tornar difícil caracterizar o regime político atual (mas não de hoje, propriamente).
Ninguém esperaria que Lula confirmasse estar fazendo, nos incontáveis comícios e solenidades com a ministra Dilma Rousseff a reboque, a apresentação eleitoreira de sua (até agora) candidata presidencial. De nada valem, portanto, as suas negativas. A quantidade de atos em que a ministra está presente pelo país afora, sem razão para isso, tanto desmente Lula quanto a apelação ridícula da própria, de que as críticas a respeito provêm de discriminação por ser mulher.
Apesar da transgressão das leis eleitorais, a sem-cerimônia com que o presidente do Supremo se põe a criticar a conduta de Lula, publicamente, não está na ordem das coisas.
Começa por haver nisso um sentido político implícito, senão mesmo partidário. Além disso, é assunto passível de julgamentos pelo Supremo, sobre o qual o presidente do tribunal emite pré-voto. O que não é incomum na sedução microfônica e televisiva que mobiliza Gilmar Mendes, mas não está na ordem das coisas.
O Legislativo, coitado (ou coitados de nós), está reduzido a uma secretaria abagunçada do Executivo. Lula o entope de medidas provisórias que contrariam as exigências constitucionais para sua emissão. Faz o próprio Congresso introduzir contrabandos nas medidas a serem votadas, depois dos congressistas terem decidido, várias vezes, proibir tal truque. Decide até o destino dos escândalos da Casa, ao determinar a conduta da "base aliada" diante deles. O Congresso está aberto, como queríamos, mas sua condição subalterna não está na ordem das coisas.
Logo no seu segundo artigo, componente "Dos princípios fundamentais" do regime e da ordem institucional, a Constituição diz que "são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário". O preceito não coincide com a realidade, em que o Legislativo perdeu para o Executivo a independência e o poder de iniciativa, o Executivo dispensa sem problemas a estrutura legal, e o Judiciário transborda seus limites ético-constitucionais e até legisla em matéria eleitoral, em matéria indígena e em matéria penal.
Agora também não sei nem em que regime vivemos. E o que não sabia já muito era sufocante.
Este texto é parte da coluna de Jânio de Freitas, na Folha de São Paulo, de 27 de outubro de 2009.
Marcadores: Brasil, Janio de Freitas, política, politicagem
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