quarta-feira, setembro 23, 2009

Prisão de Bagram: a Guantánamo esquecida no Afeganistão

Prisão de Bagram: a Guantánamo esquecida no Afeganistão



Matthias Gebauer, John Goetz e Britta Sandberg


O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, manifestou-se contra o abuso de prisioneiros por parte da Agência Central de Inteligência (CIA) e quer fechar a prisão de Guantánamo. Mas ele tolera a existência da prisão militar de Bagram, no Afeganistão, onde mais de 600 pessoas estão encarceradas sem nenhuma acusação formal. Segundo um dos promotores militares, comparada a Bagram, Guantánamo parece "um bom hotel".

Raymond Azar foi levado a força para Bagram em um dia tranquilo em Cabul. Não houve nenhum ataque e o sol brilhava.

Azar, que nasceu no Líbano, é gerente de uma companhia de construção. Ele seguia para Camp Eggers, a base militar norte-americana próxima ao palácio presidencial, quando dez agentes armados do Birô Federal de Investigação (FBI) subitamente o cercaram.


Os homens, todos usando coletes a prova de balas, algemaram-no, amarraram-no e o empurraram para dentro de um automóvel utilitário esportivo (SUV). Duas horas depois, eles deixaram Azar na prisão militar de Bagram, que fica 50 quilômetros a nordeste de Cabul.

Conforme Azar contou mais tarde, ele foi obrigado a permanecer sentado durante sete horas com as mãos e os pés amarrados a uma cadeira. Ele passou a noite em um contêiner de metal frio, e ficou 30 horas sem receber nenhum alimento. Azar alegou que militares norte-americanos lhe mostraram fotos da sua mulher e dos quatro filhos, e lhe disseram que, se ele não cooperasse, jamais tornaria a ver a família. Ele disse ainda que foi fotografado nu e que depois lhe deram um macacão para vestir.

"Necessidade desse tipo de lugar"
Naquela data, 7 de abril de 2009, o presidente Barack Obama estava no cargo havia exatamente 77 dias. Pouco após a cerimônia de posse, Obama ordenou o fechamento do centro de detenção da Baía de Guantánamo e mandou a CIA abandonar as suas prisões secretas clandestinas, os chamados "black sites" ("locais negros"). Ele desejava acabar com o legado sombrio dos anos Bush - não deveria haver mais torturas, operações secretas para sequestros de suspeitos de terrorismo e as chamadas "renditions" (transferência de presos para prisões clandestinas em outros países, nos quais os detentos são frequentemente torturados).

Pelo menos essa foi a promessa de Obama. Ele não mencionou Bagram nos seus discursos.

Azar estava em Cabul a negócios. A sua companhia assinara contratos com o Pentágono no valor de US$ 50 milhões (34 milhões de euros, R$ 90,8 milhões) para obras de reconstrução no Afeganistão. Em 8 de abril, Azar foi colocado em um jato Gulfstream e mandado para o Estado de Virgínia, nos Estados Unidos, para ouvir acusações formais. Ele foi acusado de ter fornecido propinas ao seu contato no exército dos Estados Unidos a fim de garantir que os contratos militares seriam concedidos à sua companhia, que mais tarde foi considerada culpada de praticar corrupção.

Foi um caso clássico de corrupção, e não aquele tipo de crime devido ao qual um suspeito costuma ser enviado para uma prisão militar. Ninguém é capaz de explicar por que Azar foi levado para Bagram, onde as forças armadas dos Estados Unidos o trataram como um suspeito de terrorismo e, ao fazerem isso, proporcionaram a ele o vislumbre de um mundo que elas normalmente preferem manter secreto.

"Bagram é uma segunda Guantánamo que foi esquecida", afirma o especialista em direito militar norte-americano Eugene Fidell, professor da Faculdade de Direito da Universidade Yale. "Mas, aparentemente, continua havendo a necessidade desse tipo de lugar, mesmo durante o governo Obama".

"Desde o início Bagram já era pior do que Guantánamo", afirma Tina Foster, advogada de Nova York, que trabalhou em vários casos defendendo os direitos de detentos em tribunais dos Estados Unidos. "Bagram sempre foi uma câmara de torturas".

E o que diz Obama? Nada. Ele nunca menciona Bagram nos seus discursos. Quando fala sobre os maus tratos dispensados pelos Estados Unidos a detentos, ele só se refere a Guantánamo.

Localização sigilosa
O centro de detenção de Bagram, atualmente a maior prisão militar norte-americana fora dos Estados Unidos, não está assinalada em nenhum mapa. Na verdade, a sua localização precisa, em algum lugar na periferia da enorme base aérea a nordeste da capital afegão, é sigilosa. Ela consiste de dois prédios cor de areia que lembram hangares de aeronaves, rodeados por altos muros de concreto e por lonas com pintura verde de camuflagem. A instalação foi construída em 2002 como uma prisão temporária em uma antiga base aérea soviética.

Atualmente, os dois prédios contêm grandes celas, cada uma com espaço para 25 a 30 prisioneiros. A prisão tem capacidade para até mil detentos. Os presos dormem em colchonetes, e há um vaso sanitário atrás de uma cortina branca em cada cela. Uma obra de ampliação das instalações no valor de US$ 60 milhões (R$ 109 milhões) deverá ser concluída até o final do ano.

Ao contrário de Guantánamo, Bagram fica no meio da zona de guerra afegã. Mas nem todos os detentos foram capturados em áreas de combate. Muitos suspeitos de terrorismo vieram de outros países e foram transportados para Bagram para serem interrogados após a captura. Desde que a prisão militar entrou em operação, todos os detentos que lá estiveram foram
classificados de "combatentes inimigos", e não de prisioneiros de guerra, uma classificação que permitiria que ficassem sujeitos às normas da Convenção de Genebra


O mais famoso prisioneiro temporário de Bagram foi Khalid Sheikh Mohammed, o auto-proclamado arquiteto dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001. Após ter sido detido no Paquistão, Mohammed foi levado inicialmente para Bagram, onde ficou três dias, e a seguir foi enviado para uma prisão secreta na Polônia antes de ser mandado para Guantánamo. Ele disse a membros da Cruz Vermelha que, no Afeganistão, foi espancado, dependurado por correntes presas às suas mãos e sexualmente humilhado. "Me obrigaram a deitar no chão. Introduziram um tubo no meu ânus e injetaram água dentro de mim".

"Tendo visitado Guantánamo várias vezes, acredito que, comparada a Bagram, Guantánamo parece um 'bom hotel'", diz o promotor militar Stuart Couch, que teve acesso ao interior de ambas as instalações. "Em Bagram os homens não parecem ter permissão para se locomoverem. Eles sentam-se em filas no chão. O lugar tem o odor da 'gaiola dos macacos' de um jardim zoológico".

Privação de sono e humilhação sexual
Desde o início, Bagram ficou famosa pelas formas brutais de tortura lá empregadas. Indivíduos que lá estiveram detidos contam ter sido submetidos a privação de sono, espancamentos e várias modalidades de humilhação sexual. Em alguns casos, um interrogador colocava o pênis na face do detento enquanto este era questionado. Outros presos foram estuprados com pedaços de madeira e sofreram ameaças de serem submetidos a sexo anal.

Omar Khadr, um detento canadense que à época tinha 15 anos de idade, afirma que os militares o usaram como um 'esfregão vivo'. "A polícia militar jogava óleo de pinho no chão e em mim. E, a seguir, me colocavam deitado de bruços, com as mãos e os pés algemados juntos para trás, e me arrastavam para frente e para trás sobre uma mistura de urina e óleo de pinho no chão".

Pelo menos dois homens morreram durante a prisão. Um deles, um motorista de táxi de 22 anos chamado Dilawar, ficou suspenso no teto pelos pulsos durante quatro dias, tendo sido espancado repetidamente nas pernas, durante o período, por militares norte-americanos. No relatório da autópsia, um médico militar escreveu que os tecidos da perna do rapaz haviam se transformado basicamente em "uma pasta". Os interrogadores já sabiam - e mais tarde disseram isso em um depoimento - que não havia nenhuma prova contra Dilawar.

Segundo uma investigação militar interna dos casos de abusos cometidos contra prisioneiros na prisão Abu Ghraib, no Iraque, que geraram uma indignação internacional quando vieram a público em 2004, as práticas na instalação iraquiana foram inspiradas no tratamento recebido pelos detentos de Bagram.

Centenas de detentos inocentes
Até hoje, praticamente não há fotos do interior de Bagram, e os jornalistas jamais tiveram acesso ao centro de detenção. Embora os números exatos sejam desconhecidos, acredita-se que haja cerca de 600 detentos em Bagram, ou quase o triplo do número de prisioneiros que encontram-se atualmente em Guantánamo. Segundo um relatório do Pentágono de 2009, que ainda não foi oficialmente publicado, 400 dos detentos de Bagram são inocentes que poderiam ser libertados imediatamente.

Os detentos de Bagram ainda não têm direito a um advogado, o que significa que não contam com recursos legais contra a detenção e tampouco com a oportunidade de prestar depoimentos sobre os seus casos. Alguns estão lá há anos, sem saber por que.

Obama anunciou novas diretrizes para o tratamento dos detentos de Bagram, que exigiriam que um militar norte-americano fornecesse assistência a cada detento - não como advogado, mas como uma espécie de conselheiro individual. A seguir, esse militar poderia revisar as evidências e prestar um depoimento sobre o caso pela primeira vez. Ele poderia ainda solicitar que um comitê revisor examinasse o caso.

Os piores abusos
No entanto, a advogada Tina Foster acha que a nova iniciativa é apenas uma medida cosmética. "Não existe absolutamente nenhuma diferença entre as posições do governo Bush e as do governo Obama em relação aos direitos dos detentos de Bagram", disse ela durante uma entrevista a "Der Spiegel" no seu escritório no bairro novaiorquino de Queens.

Foster, uma mulher pequena de 34 anos, com olhos escuros e cabelos negros, trabalhou em casos de detentos de Guantánamo como advogada do Centro de Direitos Constitucionais, uma instituição de Nova York. Isso foi antes de ela descobrir que o piores abusos contra prisioneiros haviam ocorrido em Bagram, muito antes de os detentos terem chegado a Guantánamo.

Desde 2005, Foster trabalha exclusivamente com casos de Bagram. Ela já atuou em tribunais para solicitar habeas corpus para três detentos de Bagram. Normalmente, todo prisioneiro tem direito a habeas corpus, o que proporcionaria ao indivíduo a oportunidade de pedir a um tribunal dos Estados Unidos que investigasse as razões pelas quais foi preso.

"Esse capítulo feio da história norte-americana"
No início de abril deste ano um juiz deu parecer favorável à petição de Foster, argumentando que, como os três clientes dela, dois iemenitas e um tunisiano, não haviam sido "capturados em uma situação de campo de batalha" no Afeganistão, tendo sido, em vez disso, trazidos de um outro país para Bagram, eles também tinham direitos garantidos pela constituição dos Estados Unidos. "Foi um enorme sucesso", diz Foster.

Na segunda-feira (21), o Departamento de Justiça dos Estados Unidos submeteu um memorando de 64 páginas ao tribunal de apelação, recorrendo da decisão. Os advogados do Departamento de Justiça argumentam que, como prisão militar em uma zona de combate, Bagram constitui-se em um caso especial.

Foster, que apoiou Obama durante a campanha e voltou nele, está desapontada com o seu antigo ídolo. "Quando ouvi a declaração dele no sentido de fechar Guantánamo, dei um suspiro de alívio achando que talvez esse capítulo extremamente feio da história norte-americana fosse finalmente chegar ao fim", conta a advogada. "Infelizmente, desde então o governo Obama fracassou completamente no que se refere a implementar a mudança que prometeu".

Deixado de pé na neve
Foster pretende continuar lutando por essa causa, ainda que um dos seus clientes, cujo depoimento tem um papel proeminente no seu caso, esteja morto. Jawed Ahmad, conhecido como Jojo Yazemi, era um jornalista que trabalhava no Afeganistão para uma estação de televisão canadense. Ele tinha 22 anos quando foi preso em outubro de 2007.

Os norte-americanos acusaram-no de manter contato com o Taleban. Eles encarceraram Yazemi em Bagram, onde ele tornou-se simplesmente mais um "combatente inimigo" - o detento número 3.370. Eles o deixaram de pé na neve por seis horas, espancaram-no, ameaçaram-no e o submeteram a privação de sono durante semanas. Foi só quando colegas jornalistas de Nova York deram início a uma campanha na mídia em apoio a Yazemi que ele foi libertado - após 11 meses de prisão e sem nenhuma explicação sobre o motivo para a sua detenção.

Apenas seis meses após a sua libertação, homens armados dirigindo uma picape Toyota, o tipo de veículo preferido por vários talebans, mataram Yazemi a tiros em Kandahar. "Aquele foi um dos momentos mais terríveis da minha vida", diz Tina Foster. "Ele era uma grande pessoa e um amigo". Ele era também uma testemunha importante de Foster no seu processo contra Bagram.

Tradução: UOL


Texto da Der Spiegel, no UOL.

Marcadores: , , ,