quinta-feira, maio 28, 2009

No coração da fome

No coração da fome

Bruno Philip

Nenhum jornalista, escritor ou pesquisador chinês jamais havia ousado fazer um trabalho como o que Yang Jisheng fez: escrever um relato meticuloso e detalhado sobre a catástrofe econômica e humana do "Grande Salto" (1958-1961). Fruto das visões delirantes de Mao Tsé-tung, o plano de industrializar drasticamente a China se revelou um grande salto para trás, e provocou uma epidemia de fome que, segundo

algumas fontes, deixou mais de trinta milhões de mortos.

Outros livros, publicados por estrangeiros, foram escritos sobre esse desastre. Mas nenhum jamais havia sido tão preciso.

Yang Jisheng, 69, um antigo jornalista da agência estatal de notícias Xinhua que entrou para o Partido Comunista em 1964, tem razões pessoais para ter se lançado à redação do livro que traz o título evocativo de "Mu Bei", algo como "Lápide Sepulcral". Seu pai foi vítima da fome enquanto ele, que estudava na província de Hubei, sobreviveu a esse período a duras penas. "Mesmo que os estudantes tivessem uma nutrição melhor, durante três anos, eu só comi arroz, arroz e mais arroz".

Em frente a uma xícara de café num bar típico de Pequim, ele conta que, na época, passava "fome o tempo inteiro. E além disso, tínhamos que ir trabalhar nos campos, arar a terra, ir colaborar para aumentar as quotas de produção de aço, construir diques..."

Mao lançou o Grande Salto depois da campanha antidireitista (1957), ao final da qual, usando o terror político, livrou-se de um grande número de adversários potenciais ou declarados e viu seu poder se reforçar ainda mais no aparelho do partido. Durante uma sessão excepcional do 8º Congresso do Partido Comunista Chinês, convocado em Pequim em maio de 1958, o slogan "alcançar a Inglaterra" - na época a segunda maior potência econômica mundial - foi lançado.

"Todos aos fornos!" poderia ser uma outra palavra de ordem, uma vez que, no contexto da crescente coletivização no seio das comunas populares, os camponeses foram obrigados a produzir aço. Os agricultores também foram mobilizados para as grandes obras de desenvolvimento industrial ou para hidrelétricas. Enquanto os agricultores balançavam alegremente suas panelas e outros utensílios de metal nos alto-fornos artesanais, as colheitas apodreciam nos campos desertos.

Quando os responsáveis do partido viajavam pelas províncias para verificar as formidáveis realizações do Grande Salto, os governos locais ofereciam, sorrindo, números fantasiosos e forjados sobre a produção agrícola.

Foi essa mentira que Yang Jicheng dediciu denunciar no livro, proibido na China desde sua publicação em Hong Kong, em 2008. E foi sua passagem pela agência Xinhua que permitiu que ele mobilizasse seus antigos contatos durante a investigação, seguindo o costume dos jornalistas investigativos, um papel pouco habitual para os repórteres da agência de notícias chinesa.

Por muito tempo, embora ele nunca tivesse medido a amplitude da catástrofe – suas descobertas ultrapassaram em muito o que imaginava a princípio -, ele pressentiu que a verdade sobre o Grande Salto jamais havia sido contada. Ele ficou sabendo, por exemplo, nos anos 60, que haviam acusado o secretário do partido da província de Hubei de ser o responsável pela morte de 300 mil pessoas durante o Grande Salto. "Na época, eu não duvidei exatamente da versão oficial, mas imaginei que havia mais coisa escondida por trás disso".

Rumores e suposições não eram suficientes para desenterrar uma verdade que, mesmo que reconhecida com relutância pelas autoridades e descrita como resultado de uma mistura de "desastres naturais e erros humanos", continua, em parte, indizível. A segunda etapa dessa confissão aconteceu há trinta anos, durante a desmaoização e o lançamento da política de reformas econômicas.

Faltava, portanto, ir a campo, investigar, descobrir sobreviventes, tudo isso com discrição. Ele visitou doze províncias do centro, noroeste e leste da China. Com a desculpa de fazer uma investigação sobre as questões agrícolas, ele encontrou com os antigos responsáveis locais, camponeses e até mesmo membros do partido. "Eu acabei tendo acesso às estatísticas oficiais que me permitiram reconstituir a história e ter uma ideia mais precisa do número de mortos em cada distrito, em cada vilarejo..."

No coração da província central de Henan, Yang Jisheng chegou até a organizar uma mesa redonda com moradores, que o levaram até os túmulos dos mortos. No distrito de Tongwei, em Gansu, no noroeste do país, contaram para ele que durante a fome, os cadáveres cobriam os campos aos milhares. "Lá, um terço da população morreu", afirma.

Os meios de comunicação do regime e os responsáveis do partido observam, evidentemente, um silêncio total sobre o conteúdo das mais de mil páginas escritas pelo velho jornalista. "Mu Bei" está disponível em chinês, mas apenas em Hong Kong.

Yang Jisheng, entretanto, não foi incomodado pelas autoridades, embora ele não meça suas palavras para exprimir críticas audaciosas: "A catástrofe do Grande Salto não é somente resultado de uma política errônea, mas também da natureza totalitária do sistema".

Ele reconhece que depois das reformas, o sistema evoluiu. Mas isso não é suficiente: a economia de mercado deve ser acompanhada pela democracia. "Sob pretexto de enfatizar as características chinesas, o regime ainda nega a universalidade dos valores".

Hoje ele é redator-chefe adjunto da prestigiada revista Yanhuang chunqiu (As crônicas históricas), de Pequim, uma publicação mensal que não esconde suas inclinações pró-democráticas. Ele observa com interesse o desenrolar do ano de 2009, quando a China comemora o 60º aniversário da criação da República Popular e o 20º da repressão do movimento na praça Tiananmen.

É em memória de seu pai "morto de fome em 1959", e dos "36 milhões de chineses que sucumbiram" na época do Grande Salto, que ele chamou seu livro de "Lápide Sepulcral". Para ele, toda essa história traz à tona a memória e o oposto dela, ou seja, o esquecimento e os tabus. "Uma nação que não é capaz de enfrentar seu passado não pode ter um futuro".

Tradução: Eloise De Vylder

Texto do Le Monde, no UOL.

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