Escravidão pelo carnê
Escravidão pelo carnê
HISTÓRIA DO Brasil? História da civilização ocidental? Esses temas, típicos dos livros que eu tinha de ler no ginásio, passaram de moda. A própria história os engoliu, e hoje temos outro tipo de títulos no mercado.
História da beleza. História do corpo. História da loucura. História da histeria. Como os contêneires mudaram a história do mundo. Uma história natural das sementes. História da paz.
Qualquer livro sobre esses temas pode ser facilmente encontrado pela internet, em português ou inglês. Gostaria de sugerir a eventuais doutorandos um tema de pesquisa interessante no contexto brasileiro: a história do crediário. A meu ver, nunca se inventou um mecanismo tão eficiente de submissão social.
Desde a invenção do crediário, foi-se o tempo em que Marx e Engels podiam gritar ao proletariado que ele nada tinha a perder, exceto os próprios grilhões. O proletariado sempre teve muito a perder, a começar pelo próprio emprego. Mas sua maior preocupação haverá de ser o nome no Serasa. Seu grilhão, como o de qualquer empresário, é hoje em dia o nome na praça.
O Serasa representa, hoje, uma força repressiva equivalente às tropas armadas de sabre do general Cavaignac, massacrando a França insurgente de 1848.
Condena-se muito, hoje em dia, a situação do lavrador pego em escravidão por dívida. O infeliz, no meio do Pará, contrai dívidas impossíveis de pagar e termina trabalhando de graça para o dono da terra. Ai dele se tentar fugir.
Sua fuga será vista como um calote, e alguns capangas irão encarregar-se de lhe ensinar o basilar princípio do direito civil, segundo Kelsen: "Pacta sum servanda". Contratos existem para serem cumpridos.
Será que nas grandes cidades a situação é diferente? Quem passa pela avenida Paulista vê anúncios colados em todos os postes, prometendo dinheiro na hora. Agiotagem pura e simples.
Mesmo sem recorrer a agiotas, o trabalhador comum está pendurado no seu carnê. Comprou uma geladeira, uma televisão, um carro com prestações a perder de vista. Com isso, o cidadão perdeu de vista muita coisa. Será o último a entrar em greve, por exemplo. Está preso a seu salário, que pagará a prestação. Comprou, junto com a geladeira, o seu futuro. Foi comprado, junto com a geladeira, pelas Lojas Brasilândia.
Nas suas "Teses sobre a Filosofia da História", o filósofo Walter Benjamin ironizava a ideia de que todo sacrifício no presente haverá de beneficiar as gerações futuras.
O crediário resolveu esse paradoxo. Beneficia agora (sua geladeira chega hoje) o sacrifício que você tem de fazer nos próximos 36 meses. No fundo, é o mesmo sistema vigente entre os escravos do Pará.
Surgem alguns problemas, contudo, nessa fórmula mágica.
Não sou economista, mas registro o que vejo ao redor. Não conheço empregada doméstica que não esteja enforcada pelo cartão de crédito. Mesmo na classe média, o uso do cheque especial se tornou hábito.
Estão todos consumindo além da conta. Como deixariam de fazer isso? Tudo é tão fácil, e todo mundo é tão ruim em matemática...
Danem-se os juros altos, dane-se o velho espírito poupador do puritano pré-capitalista. Mesmo o mais fervoroso evangélico está devendo nas Casas Bahia.
Não quero ser pessimista, mas conheço esse filme. Se aumentar o desemprego no Brasil, todo esse povo não terá como pagar suas prestações. Imagine-se a falência de empresas de cartões de crédito, de financeiras ligadas às lojas de varejo.
Seria uma catástrofe capaz de destruir todas as nossas construções a respeito de uma relativa imunidade brasileira diante da crise financeira internacional.
Os argumentos correntes vão no sentido contrário. Baixando os juros, estimula-se a economia e a produção. Os bancos são criticados pelo fato de não repassarem ao consumidor a baixa dos juros decidida pelo Banco Central.
Fico amedrontado. Crédito barato enterrou a economia norte-americana. No Brasil, o crédito caríssimo não impediu ninguém de se endividar. Baixem os juros ao consumidor, diz a opinião geral por aqui. Mais endividamento? Mais empregadas domésticas pedindo seus vales ao patrão?
A meu ver, estamos montando um castelo de cartas. Todo mundo, no Brasil, está gastando agora para pagar depois. A conta, como em toda operação de crédito, poderá revelar-se alta demais.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo, de 20 de maio de 2009.
Marcadores: Brasil, escravidão, escravidão por dívida, juros, taxa de juros
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