domingo, maio 24, 2009

Escravidão pelo carnê

Escravidão pelo carnê

HISTÓRIA DO Brasil? História da civilização ocidental? Esses temas, típicos dos livros que eu tinha de ler no ginásio, passaram de moda. A própria história os engoliu, e hoje temos outro tipo de títulos no mercado.
História da beleza. História do corpo. História da loucura. História da histeria. Como os contêneires mudaram a história do mundo. Uma história natural das sementes. História da paz.
Qualquer livro sobre esses temas pode ser facilmente encontrado pela internet, em português ou inglês. Gostaria de sugerir a eventuais doutorandos um tema de pesquisa interessante no contexto brasileiro: a história do crediário. A meu ver, nunca se inventou um mecanismo tão eficiente de submissão social.
Desde a invenção do crediário, foi-se o tempo em que Marx e Engels podiam gritar ao proletariado que ele nada tinha a perder, exceto os próprios grilhões. O proletariado sempre teve muito a perder, a começar pelo próprio emprego. Mas sua maior preocupação haverá de ser o nome no Serasa. Seu grilhão, como o de qualquer empresário, é hoje em dia o nome na praça.
O Serasa representa, hoje, uma força repressiva equivalente às tropas armadas de sabre do general Cavaignac, massacrando a França insurgente de 1848.
Condena-se muito, hoje em dia, a situação do lavrador pego em escravidão por dívida. O infeliz, no meio do Pará, contrai dívidas impossíveis de pagar e termina trabalhando de graça para o dono da terra. Ai dele se tentar fugir.
Sua fuga será vista como um calote, e alguns capangas irão encarregar-se de lhe ensinar o basilar princípio do direito civil, segundo Kelsen: "Pacta sum servanda". Contratos existem para serem cumpridos.
Será que nas grandes cidades a situação é diferente? Quem passa pela avenida Paulista vê anúncios colados em todos os postes, prometendo dinheiro na hora. Agiotagem pura e simples.
Mesmo sem recorrer a agiotas, o trabalhador comum está pendurado no seu carnê. Comprou uma geladeira, uma televisão, um carro com prestações a perder de vista. Com isso, o cidadão perdeu de vista muita coisa. Será o último a entrar em greve, por exemplo. Está preso a seu salário, que pagará a prestação. Comprou, junto com a geladeira, o seu futuro. Foi comprado, junto com a geladeira, pelas Lojas Brasilândia.
Nas suas "Teses sobre a Filosofia da História", o filósofo Walter Benjamin ironizava a ideia de que todo sacrifício no presente haverá de beneficiar as gerações futuras.
O crediário resolveu esse paradoxo. Beneficia agora (sua geladeira chega hoje) o sacrifício que você tem de fazer nos próximos 36 meses. No fundo, é o mesmo sistema vigente entre os escravos do Pará.
Surgem alguns problemas, contudo, nessa fórmula mágica.
Não sou economista, mas registro o que vejo ao redor. Não conheço empregada doméstica que não esteja enforcada pelo cartão de crédito. Mesmo na classe média, o uso do cheque especial se tornou hábito.
Estão todos consumindo além da conta. Como deixariam de fazer isso? Tudo é tão fácil, e todo mundo é tão ruim em matemática...
Danem-se os juros altos, dane-se o velho espírito poupador do puritano pré-capitalista. Mesmo o mais fervoroso evangélico está devendo nas Casas Bahia.
Não quero ser pessimista, mas conheço esse filme. Se aumentar o desemprego no Brasil, todo esse povo não terá como pagar suas prestações. Imagine-se a falência de empresas de cartões de crédito, de financeiras ligadas às lojas de varejo.
Seria uma catástrofe capaz de destruir todas as nossas construções a respeito de uma relativa imunidade brasileira diante da crise financeira internacional.
Os argumentos correntes vão no sentido contrário. Baixando os juros, estimula-se a economia e a produção. Os bancos são criticados pelo fato de não repassarem ao consumidor a baixa dos juros decidida pelo Banco Central.
Fico amedrontado. Crédito barato enterrou a economia norte-americana. No Brasil, o crédito caríssimo não impediu ninguém de se endividar. Baixem os juros ao consumidor, diz a opinião geral por aqui. Mais endividamento? Mais empregadas domésticas pedindo seus vales ao patrão?
A meu ver, estamos montando um castelo de cartas. Todo mundo, no Brasil, está gastando agora para pagar depois. A conta, como em toda operação de crédito, poderá revelar-se alta demais.

Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo, de 20 de maio de 2009.


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