terça-feira, março 03, 2009

A lição da vizinha

A lição da vizinha

Militares e civis argentinos foram igualados para todos os efeitos da cidadania; é um avanço de civilização

O ACASO cuidou de dar ao contraste o realce de um pormenor histórico muito especial. Em tantos dias de elaboração do documentário sobre Manuel Fiel Filho, companheiro de classe operária do então metalúrgico Lula, na quinta-feira 26 o hoje presidente Lula gravou para o filme a sua primeira definição pública sobre a tortura e os assassinatos, como o de Fiel Filho, nos quartéis da ditadura: subscreveu a impunidade absoluta para os torturadores e assassinos.
Por justa coincidência, na mesma quinta 26 a Argentina, onde numerosos repressores e mesmo ditadores/"presidentes" estão condenados e presos, pôs em vigência o feito mais extraordinário dos dois governos Kirchner: os militares acusados de delitos (futuros) passam a ser julgados pela Justiça Federal e pelo Código Penal, como os civis, e não mais sob o privilégio corporativista de uma Justiça Militar. Militares e civis foram igualados para todos os efeitos da cidadania.
É, em relação a qualquer parte do mundo, um avanço de civilização no sentido mais poderoso dessa palavra.
O argumento de Lula para defender o acobertamento dos criminosos da ditadura, como expôs para o cineasta Jorge Oliveira, é de que a Lei da Anistia precisa ser respeitada porque foi aprovada pelo Congresso. Se a aprovação parlamentar de uma lei a tornasse definitiva e imutável, como se explicaria que a Câmara e o Senado, desde a primeira posse de Lula, estejam sempre entupidos de medidas provisórias que alteram leis aprovadas pelo Congresso?
Nem se trata, porém, de alterar sequer uma vírgula da Lei de Anistia criada pelo sistema militar para proteger seus criminosos, sob a roupagem de "perdão" às suas vítimas que sobreviveram. Como o persistente ministro Paulo Vannuchi, de Direitos Humanos, tem sustentado no governo com a aliança do ministro da Justiça, Tarso Genro, necessário é o reconhecimento de que tortura e assassinato são crimes comuns, não crimes políticos. E, portanto, não beneficiados pela anistia aprovada para reais ou alegados crimes de ordem política.
Se a posição e o argumento de Lula decorrem de convicção, no entanto contraditada por sua prática diária de governo, ou decorrem de pusilanimidade, não faz diferença para o essencial. São os mesmos os resultados moral e de relação com a justiça implícita nos direitos humanos e de cidadania. Concepções em que a Argentina -agora acabando também com a punição à homossexualidade de militares- está tão adiante do Brasil, que o cargo correspondente, lá, ao do armamentista Nelson Jobim é exercido por uma mulher. A Nilda Garré, ministra da Defesa, deve-se grande parte da lição civilizatória argentina, que ela sintetiza nesta formulação simples:
"Os militares, em um Estado democrático de Direito, são cidadãos antes de qualquer outra condição. E, como militares, devem ser vistos e considerar-se como servidores públicos especialistas em defesa nacional".
Lula prefere os homens dos porões. Ou das cavernas.


Texto de Jânio de Freitas, na Folha de São Paulo, de 1. de março de 2009.

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