História à brasileira
UMA VERGONHA , ao menos uma, o Brasil tem. É um tal de esconder ou falsificar a própria história, que este vício passa, ele próprio, a ser história. Só agora, passados 70 anos, liberam-se atas de reuniões do Conselho de Segurança Nacional da década de 30 -mas depois de extirpar-lhes mais de 400 linhas. As linhas encobertas são os esconderijos das verdades que mais importam para o conhecimento das posições, circunstâncias e decisões do momento em questão.
Na entrega das atas, que vão de 1935 a 88, o seu guardião nos últimos anos, ministro de Segurança Institucional, general Jorge Felix, deu a justificativa oficial para os vetos: "Os povos são muito emocionais. Poderíamos ter constrangimentos com países vizinhos por declarações feitas nos anos 30". Na prática, desde então são passadas três gerações. Como os demais países, o Brasil atual pode, eventualmente, explicar declarações (no caso, em reuniões fechadas) do passado, pode desautorizá-las, mas não pode responder por elas. Mesmo que expressem, mais do que opiniões pessoais, propósitos hostis. Como foi o caso do ministro da Justiça que propôs, na década de 60, a criação de um episódio bélico com o Paraguai (começava o assunto Itaipu), como pretenso recurso para unir a opinião pública brasileira em torno dos militares.
Os aspectos mais decisivos no desencadear do golpe de 64 tornam-se progressivamente disponíveis graças à abertura de arquivos dos Estados Unidos. O embaixador Lincoln Gordon, até hoje vendido aqui como pessoa íntegra e bem intencionada em relação ao Brasil, já em seu primeiro encontro com Kennedy, na Casa Branca, propôs um golpe aqui. Isso se sabe por recentes liberações de documentos nos EUA, onde já o governo Kennedy está escancarado e até material do pequeno Bush começa a estar ao alcance público.
O que já era o cofre inexpugnável da documentação brasileira, ganhou de Fernando Henrique um reforço de obscurantismo estarrecedor. O "intelectual príncipe da sociologia" passou a duração do sigilo de documentos oficiais, de 20, 30 anos, para três gerações nos casos mais brandos e, em outros, até a infinidade dos tempos. Já no governo Lula, Fernando Henrique quis explicar-se com a afirmação de que assinou o ato "sem medir as consequências".
Esquecido do que disse então, Fernando Henrique traz nova narrativa, reproduzida por Fernanda Krakovics e Luiza Damé no "Globo": assinou o decreto como ato "de rotina", ao recebê-lo "da secretaria que tratava de assuntos militares", o que caracterizou, "seja um descuido burocrático, seja má-fé de alguém não especificado".
Não especificado? Pois sim. O tempo não diminuiu a inverdade de Fernando Henrique para livrar a sua face comprometida como nenhuma outra. É grosseiramente claro que nenhum professor de sociologia, história ou afins deixaria de perceber as consequências óbvias da ampliação de sigilos documentais. Nem assinou como ato de "rotina" que, por descuido ou má-fé, o pegou desprevenido.
Tão logo o decreto obscurantista foi divulgado, ex-colegas de Fernando Henrique na universidade e muitos outros, inclusive no exterior, reagiram pelos meios de comunicação. Se vítima de inadvertência, Fernando Henrique teria emitido novo ato, com a correção do anterior, como fez inúmeras vezes.
Pressionado, Lula afinal se dispôs a alterar a regra de Fernando Henrique. Só, porém, para dizer que a alterara, porque até o sigilo infinito permaneceu.
Não é por acaso que um professor universitário de história faça a afirmação, por exemplo, de que "não é possível chamar de ditadura o período 1964-1968 (até o AI-5), com toda a movimentação político-cultural". Deu-se no artigo "Ditadura à brasileira", de Marco Antonio Villa, Folha de 5.mar.09.
Os militares derrubam um governo constitucional, prendem aos milhares pelo país afora, cassam mandatos parlamentares legítimos nas três instâncias legislativas; impõem ao Congresso subjugado a escolha entre três ou quatro generais, para figurar como presidente; governam por ato institucional e decreto-lei; extinguem os partidos; excluem do serviço público, das autarquias e estatais os opositores reais ou supostos, e, para não ir mais longe, instituem a espionagem no país todo. E, fato muito esquecido hoje em dia, iniciam a tortura nos quartéis e os assassinatos. Início bem comprovado, por exemplo, pela foto de Gregório Bezerra puxado por corda no pescoço em Recife. Ou pela celebridade de pessoas como o capitão Zamith, acusado da morte por tortura de um estudante de medicina na Vila Militar do Rio (tema da edição mais importante, até hoje, de "Veja"), e do sargento Raimundo, torturado no Exército e jogado no rio em Porto Alegre, morto ou para morrer.
Mas "não é possível chamar de ditadura" ao domínio do país por tal regime. Então só pode ser "a democracia" dos historiadores à brasileira. Até por ter "movimentação político-cultural", permitida entre 64-68 quando não incomodava o regime, servindo mesmo como válvula de escape, e reprimida com vigor quando incomodava.
Os historiadores à brasileira não sabem que as ditaduras vão até onde lhes é vitalmente necessário, e enquanto podem fazê-lo. A diferença entre elas não é a sua essência, nem a sua prática: é a medida do necessário.
Texto de Jânio de Freitas na Folha de São Paulo, de 8 de março de 2009.
Na entrega das atas, que vão de 1935 a 88, o seu guardião nos últimos anos, ministro de Segurança Institucional, general Jorge Felix, deu a justificativa oficial para os vetos: "Os povos são muito emocionais. Poderíamos ter constrangimentos com países vizinhos por declarações feitas nos anos 30". Na prática, desde então são passadas três gerações. Como os demais países, o Brasil atual pode, eventualmente, explicar declarações (no caso, em reuniões fechadas) do passado, pode desautorizá-las, mas não pode responder por elas. Mesmo que expressem, mais do que opiniões pessoais, propósitos hostis. Como foi o caso do ministro da Justiça que propôs, na década de 60, a criação de um episódio bélico com o Paraguai (começava o assunto Itaipu), como pretenso recurso para unir a opinião pública brasileira em torno dos militares.
Os aspectos mais decisivos no desencadear do golpe de 64 tornam-se progressivamente disponíveis graças à abertura de arquivos dos Estados Unidos. O embaixador Lincoln Gordon, até hoje vendido aqui como pessoa íntegra e bem intencionada em relação ao Brasil, já em seu primeiro encontro com Kennedy, na Casa Branca, propôs um golpe aqui. Isso se sabe por recentes liberações de documentos nos EUA, onde já o governo Kennedy está escancarado e até material do pequeno Bush começa a estar ao alcance público.
O que já era o cofre inexpugnável da documentação brasileira, ganhou de Fernando Henrique um reforço de obscurantismo estarrecedor. O "intelectual príncipe da sociologia" passou a duração do sigilo de documentos oficiais, de 20, 30 anos, para três gerações nos casos mais brandos e, em outros, até a infinidade dos tempos. Já no governo Lula, Fernando Henrique quis explicar-se com a afirmação de que assinou o ato "sem medir as consequências".
Esquecido do que disse então, Fernando Henrique traz nova narrativa, reproduzida por Fernanda Krakovics e Luiza Damé no "Globo": assinou o decreto como ato "de rotina", ao recebê-lo "da secretaria que tratava de assuntos militares", o que caracterizou, "seja um descuido burocrático, seja má-fé de alguém não especificado".
Não especificado? Pois sim. O tempo não diminuiu a inverdade de Fernando Henrique para livrar a sua face comprometida como nenhuma outra. É grosseiramente claro que nenhum professor de sociologia, história ou afins deixaria de perceber as consequências óbvias da ampliação de sigilos documentais. Nem assinou como ato de "rotina" que, por descuido ou má-fé, o pegou desprevenido.
Tão logo o decreto obscurantista foi divulgado, ex-colegas de Fernando Henrique na universidade e muitos outros, inclusive no exterior, reagiram pelos meios de comunicação. Se vítima de inadvertência, Fernando Henrique teria emitido novo ato, com a correção do anterior, como fez inúmeras vezes.
Pressionado, Lula afinal se dispôs a alterar a regra de Fernando Henrique. Só, porém, para dizer que a alterara, porque até o sigilo infinito permaneceu.
Não é por acaso que um professor universitário de história faça a afirmação, por exemplo, de que "não é possível chamar de ditadura o período 1964-1968 (até o AI-5), com toda a movimentação político-cultural". Deu-se no artigo "Ditadura à brasileira", de Marco Antonio Villa, Folha de 5.mar.09.
Os militares derrubam um governo constitucional, prendem aos milhares pelo país afora, cassam mandatos parlamentares legítimos nas três instâncias legislativas; impõem ao Congresso subjugado a escolha entre três ou quatro generais, para figurar como presidente; governam por ato institucional e decreto-lei; extinguem os partidos; excluem do serviço público, das autarquias e estatais os opositores reais ou supostos, e, para não ir mais longe, instituem a espionagem no país todo. E, fato muito esquecido hoje em dia, iniciam a tortura nos quartéis e os assassinatos. Início bem comprovado, por exemplo, pela foto de Gregório Bezerra puxado por corda no pescoço em Recife. Ou pela celebridade de pessoas como o capitão Zamith, acusado da morte por tortura de um estudante de medicina na Vila Militar do Rio (tema da edição mais importante, até hoje, de "Veja"), e do sargento Raimundo, torturado no Exército e jogado no rio em Porto Alegre, morto ou para morrer.
Mas "não é possível chamar de ditadura" ao domínio do país por tal regime. Então só pode ser "a democracia" dos historiadores à brasileira. Até por ter "movimentação político-cultural", permitida entre 64-68 quando não incomodava o regime, servindo mesmo como válvula de escape, e reprimida com vigor quando incomodava.
Os historiadores à brasileira não sabem que as ditaduras vão até onde lhes é vitalmente necessário, e enquanto podem fazê-lo. A diferença entre elas não é a sua essência, nem a sua prática: é a medida do necessário.
Texto de Jânio de Freitas na Folha de São Paulo, de 8 de março de 2009.
Marcadores: ditadura militar, Golpe de 1964, história, historiadores, Jânio de Freitas, Marco Antonio Villa
0 Comments:
Postar um comentário
<< Home