Ditadura e ditabranda
Ditadura e ditabranda
EDITORIAL RECENTE da Folha criou discussão não sobre o gênero, mas sobre o grau totalitário do movimento militar que perdurou até 1985, período que a história decidiu classificar como "anos de chumbo".
O trocadilho usado (ditabranda em vez de ditadura) pode ter sido infeliz, mas nem por isso errado de todo. O que houve entre as duas datas (1964 e 1985) foi realmente uma ditadura gradual, que chegou a seu ponto-limite em 1968, com a edição do AI-5. Abandonando qualquer disfarce cínico e jurídico, precipitou a nação num regime de brutalidade e desrespeito à dignidade humana.
Digo repetidas vezes que nada entendo de política e nada entendo de nada, mas as circunstâncias daquela época me pegaram desprevenido. E, como escrevia artigos e crônicas num grande jornal da época, fui obrigado a me manifestar, sendo punido com seis prisões e um processo que o então ministro da Guerra, general Costa e Silva, moveu contra mim por infração prevista na Lei de Segurança Nacional da época.
Meus artigos começaram no dia seguinte ao golpe, a 2 de abril de 1964. Eram violentos e apaixonados justamente porque não entendia direito o que estava acontecendo, a não ser o ritual da opressão. O processo contra mim foi instaurado em julho daquele ano, e eu tive o direito de ter advogado, o ex-ministro Nelson Hungria, que se ofereceu de graça para me defender, chegando a obter do Supremo Tribunal Federal um habeas corpus que descaracterizou o processo, o qual passou a correr não mais pela LSN, mas pela Lei de Imprensa.
Fui condenado a três meses da prisão. A justiça não fora de todo abolida após a edição do primeiro Ato Institucional. Havia brechas do Estado de Direito, os tribunais funcionavam, outros habeas corpus foram concedidos a perseguidos pelo movimento militar, como os ex-governadores Miguel Arraes, Mauro Borges e Plínio Coelho.
Houve violência na repressão, mas alguns resíduos de legalidade permaneceram após a primeira fase da ditadura. O regime militar, que fora apoiado pela maioria da sociedade civil e pela totalidade da mídia, tentava manter uma aparência de legalidade. Aos poucos -repito, gradualmente-, a cortina de chumbo desceu sobre a nação, sobretudo após 1968, que iniciou o período de horror na vida pública nacional, não apenas no setor político, mas no seio das universidades, dos sindicatos e das instituições públicas e particulares.
A ditadura gradual não foi uma exceção aqui no Brasil. O exemplo mais radical de Estado totalitário, pelo menos no século 20, foi o da Alemanha nazista. Em 1933, quando o presidente Hindenburg, vencendo sua repugnância pessoal por Hitler, chamou-o para formar o novo gabinete, foi convencido por Von Papen de que o novo chanceler seria contido pelos sociais democratas que formariam o governo. Dos cinco ou seis ministros do primeiro gabinete, apenas dois pertenciam ao Partido Nazista: o próprio Hitler e Goering, a quem seria destinada uma pasta ainda inexistente.
Sabemos o que aconteceu pouco depois: o edifício do parlamento pegou fogo, Hitler assumiu poderes totais -e a humanidade conheceu um dos regimes mais abomináveis da história.
Outra ditadura gradual foi, paradoxalmente, a "era do terror" da Revolução Francesa, o curto mas truculento período dominado por Robespierre, ele próprio vítima da violência que instaurou.
Citei dois exemplos da graduação dos regimes de força. Acredito que o mesmo critério pode ser aplicado ao movimento de 64. É ocioso relativizar a prática de crimes continuados, mas, em alguns casos, torna-se patente o aumento do grau em qualquer tipo de aberração política ou moral, embora o gênero permaneça o mesmo.
Caso mais antigo e bem mais ilustrativo seria a ditadura de César, também gradual. Somente com a eliminação de Pompeu, na batalha de Farsália, ele se tornaria o tirano que seria apunhalado nos idos de março pelos liberais do Império Romano, "so are they all, all honourable men" -segundo o discurso que Shakespeare colocou na boca de Marco Antônio.
Por definição, não há brandura nas ditaduras. Em Cuba e no Chile, por exemplo, elas já começaram realmente duras, para valer. No caso brasileiro, houve uma graduação na violência, uma graduação que não a redime do horror que provocou e ainda provoca na memória nacional.
Texto de Carlos Heitor Cony, na Folha de São Paulo, de 20 de março de 2009.
EDITORIAL RECENTE da Folha criou discussão não sobre o gênero, mas sobre o grau totalitário do movimento militar que perdurou até 1985, período que a história decidiu classificar como "anos de chumbo".
O trocadilho usado (ditabranda em vez de ditadura) pode ter sido infeliz, mas nem por isso errado de todo. O que houve entre as duas datas (1964 e 1985) foi realmente uma ditadura gradual, que chegou a seu ponto-limite em 1968, com a edição do AI-5. Abandonando qualquer disfarce cínico e jurídico, precipitou a nação num regime de brutalidade e desrespeito à dignidade humana.
Digo repetidas vezes que nada entendo de política e nada entendo de nada, mas as circunstâncias daquela época me pegaram desprevenido. E, como escrevia artigos e crônicas num grande jornal da época, fui obrigado a me manifestar, sendo punido com seis prisões e um processo que o então ministro da Guerra, general Costa e Silva, moveu contra mim por infração prevista na Lei de Segurança Nacional da época.
Meus artigos começaram no dia seguinte ao golpe, a 2 de abril de 1964. Eram violentos e apaixonados justamente porque não entendia direito o que estava acontecendo, a não ser o ritual da opressão. O processo contra mim foi instaurado em julho daquele ano, e eu tive o direito de ter advogado, o ex-ministro Nelson Hungria, que se ofereceu de graça para me defender, chegando a obter do Supremo Tribunal Federal um habeas corpus que descaracterizou o processo, o qual passou a correr não mais pela LSN, mas pela Lei de Imprensa.
Fui condenado a três meses da prisão. A justiça não fora de todo abolida após a edição do primeiro Ato Institucional. Havia brechas do Estado de Direito, os tribunais funcionavam, outros habeas corpus foram concedidos a perseguidos pelo movimento militar, como os ex-governadores Miguel Arraes, Mauro Borges e Plínio Coelho.
Houve violência na repressão, mas alguns resíduos de legalidade permaneceram após a primeira fase da ditadura. O regime militar, que fora apoiado pela maioria da sociedade civil e pela totalidade da mídia, tentava manter uma aparência de legalidade. Aos poucos -repito, gradualmente-, a cortina de chumbo desceu sobre a nação, sobretudo após 1968, que iniciou o período de horror na vida pública nacional, não apenas no setor político, mas no seio das universidades, dos sindicatos e das instituições públicas e particulares.
A ditadura gradual não foi uma exceção aqui no Brasil. O exemplo mais radical de Estado totalitário, pelo menos no século 20, foi o da Alemanha nazista. Em 1933, quando o presidente Hindenburg, vencendo sua repugnância pessoal por Hitler, chamou-o para formar o novo gabinete, foi convencido por Von Papen de que o novo chanceler seria contido pelos sociais democratas que formariam o governo. Dos cinco ou seis ministros do primeiro gabinete, apenas dois pertenciam ao Partido Nazista: o próprio Hitler e Goering, a quem seria destinada uma pasta ainda inexistente.
Sabemos o que aconteceu pouco depois: o edifício do parlamento pegou fogo, Hitler assumiu poderes totais -e a humanidade conheceu um dos regimes mais abomináveis da história.
Outra ditadura gradual foi, paradoxalmente, a "era do terror" da Revolução Francesa, o curto mas truculento período dominado por Robespierre, ele próprio vítima da violência que instaurou.
Citei dois exemplos da graduação dos regimes de força. Acredito que o mesmo critério pode ser aplicado ao movimento de 64. É ocioso relativizar a prática de crimes continuados, mas, em alguns casos, torna-se patente o aumento do grau em qualquer tipo de aberração política ou moral, embora o gênero permaneça o mesmo.
Caso mais antigo e bem mais ilustrativo seria a ditadura de César, também gradual. Somente com a eliminação de Pompeu, na batalha de Farsália, ele se tornaria o tirano que seria apunhalado nos idos de março pelos liberais do Império Romano, "so are they all, all honourable men" -segundo o discurso que Shakespeare colocou na boca de Marco Antônio.
Por definição, não há brandura nas ditaduras. Em Cuba e no Chile, por exemplo, elas já começaram realmente duras, para valer. No caso brasileiro, houve uma graduação na violência, uma graduação que não a redime do horror que provocou e ainda provoca na memória nacional.
Texto de Carlos Heitor Cony, na Folha de São Paulo, de 20 de março de 2009.
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