quinta-feira, janeiro 29, 2009

Um crime com dez anos

Um crime que persiste há dez anos

JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI

NÃO SEI qual é o limite da irresponsabilidade no meu país. Darei um exemplo fictício e depois me referirei ao fato. Um ladrão e sua gangue roubam o Estado, na área da saúde, durante dez anos, com estratégia perfeita e proteção garantida; o tempo passa, uma prova aqui, outra ali, e eles se sentem inseguros. O chefe do grupo lidera a correção do grande e contínuo furto, como se ele não tivesse existido ou como se não existissem culpados nem lesados. Os jornais publicam, o povo aplaude.
O leitor deve estar lembrando de vários fatos recentes que aí se encaixam. Vou mencionar apenas um, que é o "ressarcimento" determinado pela lei 9.656, de 1998, e que rouba do SUS cerca de R$ 2 bilhões por ano, além do espaço nos únicos hospitais reservados aos seus pobres pacientes. A lei determina o óbvio (artigo 32): que todos os procedimentos a que o usuário de plano de saúde tem direito pela operadora e são feitos no SUS devem ser ressarcidos -não pelo paciente, lógico, mas pela operadora. A responsável legal pelo recolhimento é a ANS (Agência Nacional de Saúde).
Pois bem, nesses dez anos, ele nunca foi feito por inteiro tampouco eficientemente. A ANS só cobra internações, deixando de lado o mais caro, que são os procedimentos ambulatoriais de alto custo (quimioterapias, hemodiálises, radioterapias, tomografias etc.), como ficou provado em duas auditorias do TCU (acórdãos 771/2005 e 1.146/2006).
Minha luta contra esse crime à saúde dos brasileiros é conhecida no Parlamento (16 discursos, projetos de lei, artigos etc.). Em todas as tentativas fui vencido por ouvidos moucos, lobbies eficientes e leniência da ANS, para dizer pouco, até que resolvi atuar de modo diferente. E foi isso que motivou a ANS (como na historinha que contei) a mudar cinicamente de posição, com mínimos efeitos práticos até agora, e mandar notícias para os jornais, sem constrangimento. Ao assumir a presidência da Comissão de Fiscalização e Controle (CFC), com a preciosa ajuda do TCU e dos sérios deputados lá presentes (da oposição e da base do governo), aprovamos duas audiências públicas, nas quais ouvimos a confissão despudorada do representante das operadoras e do presidente da ANS de que não cumprem a lei 9.656/98.
O TCU mostrou, sem contestação, que mais da metade não é cobrada quando a ANS deixa de lado ilegalmente os procedimentos ambulatoriais e, do cobrado, o SUS recebe menos de 20%, com atrasos frequentemente maiores do que cinco anos. É o próprio negócio da China: o SUS faz o atendimento e o usuário paga a operadora. Dez anos! A desculpa esfarrapada de ambos (ANS e operadoras) é a existência de uma Adin no Supremo Tribunal Federal, mas que de forma nenhuma invalida a lei 9.656/98 (seria fácil derrubar todas as leis simplesmente formulando Adins). Outra desculpa da ANS, inacreditável, é a dificuldade de cobrança. Será que os planos têm dificuldades de cobrar 30 milhões de usuários, o governo, de receber as taxas e impostos de 180 milhões de brasileiros, e os bancos, de cobrar suas taxas e juros?
A máscara caiu. O deputado Juvenil, infenso a lobbies, formulou um processo de fiscalização e controle que foi aprovado. Mandamos um expediente para o Ministério Público e procurei informar o STF sobre a questão. Só assim os bandidos saíram da toca e querem agora demonstrar publicamente que desejam fazer correções. Quero ver quem paga o prejuízo financeiro de dez anos ao SUS e as vidas perdidas.
Essa questão deve envolver mais de R$ 2 bilhões anuais, pelos cálculos da oposição de sete anos atrás, pelos dados que coletei de 12% e 15% dos usuários com planos em dois hospitais públicos de São Paulo, que dirigi, e pelos dados obtidos pelo TCU. Chego até a entender o apetite das operadoras, pela lógica imperativa do lucro e imersas nesse processo feroz de privatização consentida da saúde brasileira. Entendo a passividade dos usuários do SUS, que não compreendem, pela complexidade do processo, por que seu atendimento é precário.
Mas é impossível entender: a ANS, órgão governamental, que participa com ilegalidade, leniência e incompetência; parte do Congresso, que tem se rendido a esse lobby; e os governos, os quais venho prevenindo há tanto tempo. Todos eles poderiam, mas não fizeram nada para coibir esse crime praticado contra o próprio governo e, especialmente, contra os usuários pobres do SUS.


JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI, 74, é deputado federal (DEM-SP), professor emérito da USP e da Unicamp e membro da Academia Nacional de Medicina. Foi secretário de Ensino Superior (governo Serra), da Saúde (governo Quércia) e da Educação (governo Montoro) do Estado de São Paulo, reitor da Unicamp e presidente da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia.

Texto publicado na Folha de São Paulo, de 26 de janeiro de 2009. Até algum político do DEM pode dizer algo importante, vez por outra.

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