quinta-feira, outubro 23, 2008

Guerra na Favela

Guerra nas favelas
Buscam, capturam e matam. "EL PAÍS" presenciou uma operação da brutal polícia de elite do Rio de Janeiro

Francho Baron
No Rio de Janeiro

Favela do Rebu, 9h30 da manhã. A hélice do helicóptero da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core), o eufemismo com que se denomina a tropa de elite da Polícia Civil do Rio de Janeiro, quebra com seu estrondo o silêncio do amanhecer na periferia oeste da cidade. Por terra, um comboio de 30 veículos todo-terreno liderados por um carro blindado (o temido Caveirão, na gíria carioca) ocupa e fecha o principal acesso ao subúrbio. Cento e vinte homens uniformizados de preto e equipados com armamento de guerra (fuzis de assalto M-16 e FAL-762, metralhadoras M-60 e coletes à prova de bala) formam duas colunas que rapidamente se dispersam pelos dois lados da principal artéria da favela.

Os becos estão desertos: alguém deu voz de alerta minutos antes do desembarque da polícia. Começa mais uma operação da Core, um dos dois corpos de elite do Rio, polêmico pela brutalidade com que atua onde a polícia convencional não se atreve a pisar.

Em Rebu a facção criminosa Comando Vermelho acampa à vontade. Os narcotraficantes estabeleceram nas ruelas mais largas da favela várias "bocas de fumo" (pontos de venda de droga) e ditaram leis paralelas para regulamentar a vida de seus moradores: todo mundo é obrigado a colaborar com a "firma" e não se permitem roubos dentro nem nas imediações da comunidade. O Comando Vermelho oferece em troca proteção aos moradores e, com a receita da cocaína, de vez em quando subvenciona pequenos gastos domésticos aos que pedem, como um botijão de gás ou um medicamento de urgência. Hoje, fato incomum, os criminosos não receberam com tiros a chegada da polícia.

A operação, lançada em julho passado, tem como objetivo capturar os chefes do narcotráfico, os donos das bocas de fumo, vivos ou mortos. No Rio se dá por fato que a Core, assim como o Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio (Bope), tem carta-branca para quase tudo: pode disparar à queima-roupa, revistar residências sem autorização judicial, submeter a dramáticos interrogatórios qualquer suspeito de ocultar informação sobre pessoas procuradas.

Ronaldo Oliveira, chefe do Grupo Especializado em Roubos e Furtos de Automóveis (DRFA), chefia a coluna direita. Agora o silêncio na favela é quase absoluto, somente rompido pelo leve ruído do cascalho sob as botas dos policiais e pelo choro premonitório de um menino, que instintivamente percebe a violência que se aproxima. Oliveira não se dirige a seus soldados com palavras, mas com um intricado código de gestos que só os homens da Core e do Bope entendem.

O comandante dá ordem e sua coluna abandona a artéria principal, deslocando-se com agilidade por uma ruela adjacente. Começam as revistas. O grupo é encabeçado por um sujeito coberto por um capuz preto e um chapéu de camuflagem; é o condutor da operação, o que se conhece na gíria do crime como um X9, um informante ou desertor do narcotráfico que pretende pagar algum favor à polícia entregando cabeças mais importantes que a sua. O indivíduo indica com o dedo a porta de um casebre.

A Core não costuma bater à porta; diretamente tenta abri-la pelos métodos civilizados e, se não conseguir, a derruba a pontapés ou, como último recurso, recorre aos explosivos. Não sabemos se este é o caso, já que a polícia afirma que foram os traficantes que lançaram uma granada contra a porta, mas a explosão provocou pânico na favela e agora o cheiro de pólvora, a fumaça, a poeira e os estilhaços se misturam aos gritos das mulheres e ao choro compungido das crianças.

Oliveira pede cobertura a seus homens e entra primeiro na casa, apontando um M-16 contra tudo o que parece se mover entre a fumaceira. Sai uma mulher do quarto pedindo entre soluços misericórdia para seu marido. O policial nem se incomoda em responder; simplesmente a afasta de seu caminho com o antebraço e entra no quarto, onde encontra escondido em um armário A.R.M., um dos principais cabeças do tráfico na favela de Rebu, que se entrega sem opor a menor resistência.

O criminoso é levado ao acesso principal da favela, onde fica exposto, como se fosse um troféu de caça, aos jornalistas que cobrem a operação. Junto dele estão algemados outros quatro supostos criminosos, alguns deles com claros sinais de violência no rosto (um olho roxo, um pouco de sangue coagulado nos lábios...). Não são pessoas com aspecto de criminosos perigosos, mas adolescentes sem camisa, com os olhos injetados de sangue de fumar maconha ou crack.

A seus pés também ficaram expostos o abundante material bélico e as drogas apreendidas: três subfuzis Uzi, dois AK47, duas pistolas, várias bombas de fabricação artesanal (cilindros de alumínio cheios de pólvora e fragmentos) e várias centenas de papelotes de cocaína. Esses são os temíveis "soldados" do narcotráfico do Rio: deserdados da terra, em muitos casos sem noção de bem e de mal, drogados e armados até os dentes.

"Os crimes aqui são muito violentos. Normalmente são cometidos por jovens de 17 a 25 anos com capacidade mental muito reduzida, que saem à rua para ganhar um dinheiro rápido e acabam matando sua vítima e cometendo outras atrocidades", explica de maneira bastante gráfica o delegado Oliveira.

Hoje, no Rebu, a Core foi razoavelmente cirúrgica e não houve vítimas fatais, mas a poucos quilômetros daqui, na favela da Coréia, a polícia militar interveio com menos consideração e matou três pessoas.

No Rio de Janeiro, isso deixou de ser notícia há tempo: a imprensa local tem seções fixas nas quais quase todos os dias se narra a guerra nas favelas e se contabilizam os mortos. Segundo os dados da própria Polícia Militar, em 2007 ocorreram 20 baixas de efetivos em choques armados no município do Rio. Em 2008 dez policiais militares morreram. Esses números contrastam de forma suspeita com as baixas contadas do outro lado; segundo o Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, só no primeiro semestre deste ano foram registrados 472 civis mortos no que a polícia considera baixas legítimas, provocadas pela resistência dos criminosos à autoridade. No mesmo período do ano passado, o número de mortos chegou a 509.

"Estamos diante de uma eficácia policial absurda", comenta para este diário o sociólogo espanhol Ignacio Cano, membro do Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). "Não conhecemos outra polícia no mundo que cause tantas mortes em suas intervenções como a do Rio. Infelizmente, esta realidade corresponde a uma concepção política da segurança pública", acrescenta.

Segundo Cano, a polícia de operações especiais carioca tem três características próprias que a diferem de qualquer outro corpo policial do planeta. Primeiro, trata-se de uma força militarizada que responde a uma estratégia militar; isto é, os objetivos são eliminar o inimigo e ocupar seu território. Em segundo lugar, conta com um poder de fogo indiscriminado que causa grande número de vítimas inocentes. Por último, e em conseqüência das anteriores, os cidadãos passam para um segundo plano quando se toma a decisão de intervir. "Uma polícia européia que atuasse assim em áreas densamente povoadas como são as favelas seria inaceitável", concluiu o especialista em violência policial.

No último relatório anual da ONG Human Rights Watch, na rubrica dedicada à violência policial no Brasil, afirma-se: "Os policiais que cometem abusos raramente são sancionados e algumas vezes esses abusos são justificados pelas autoridades como uma conseqüência inevitável de seus esforços para combater os altos índices de criminalidade no Brasil".

Na mesma linha, o tarimbado repórter carioca Bartolomeu Brito, com 25 anos de experiência na cobertura de conflitos em favelas (suas reportagens inspiraram o roteiro do filme "Cidade de Deus", do diretor Fernando Meirelles), opina que a polícia "primeiro dispara e depois pergunta". "Existe uma solução em longo prazo: que as autoridades desmantelem as favelas e removam seus moradores para locais decentes. Mas infelizmente os políticos só pisam nesses lugares quando precisam pedir votos. Depois que passam as eleições tornam a desaparecer", denuncia o jornalista.

O comentário vem a propósito, porque no próximo domingo (26) será disputada a prefeitura do Rio de Janeiro, entre várias outras, no segundo turno das eleições municipais brasileiras. Nesses dias os candidatos a prefeito e a vereadores se empenham em tirar fotos, sorridentes, junto com os moradores das favelas, onde se concentram 19% da população carioca.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

Texto do El País, no UOL.

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